É Cristo que passa
« APRESENTAÇÃO »
Ao iniciar estas páginas do primeiro volume de Homilias de Mons. Josemaría Escrivá de Balaguer, vêm-me à memória umas palavras que tive a oportunidade de lhe ouvir em múltiplas ocasiões, perante pessoas de muitos países e de todas as condições sociais: Eu sou um sacerdote que só fala de Deus. O Fundador do Opus Dei recebeu o Santo Sacramento da Ordem no dia 28 de março de 1925. Durante este quase meio século, ex hominibus assumptus, pro hominibus constituitur (Hebr. V, 1), escolhido dentre os homens, escolhido para benefício das almas, fez com que a vida cristã fosse uma realidade diária, entranhável, na inteligência e no coração de um número incalculável de pessoas.
A fecundidade do sacerdócio cristão, que só se explica por razões sobrenaturais, derramou-se numa pregação incansável., Com razão escreveu ele que a grande paixão dos sacerdotes do Opus Dei é a pregação. Desde 1925, Mons. Escrivá vem realizando um intenso trabalho pastoral: primeiro - por pouco tempo -, em paróquias rurais; mais tarde, em Madrid, principalmente nos bairros pobres e nos hospitais; na década de trinta, por toda a Espanha; a partir de 1946, quando fixou residência em Roma, com pessoas de todo o mundo.
Falando de Deus, aproximando os homens do Senhor: foi assim que o vi sempre, desde que o conheci, em 1934. Catequese, recolhimentos e retiros espirituais, direção de almas, cartas breves e incisivas, que em seus traços rápidos e definidos levavam a paz a muitas consciências. Nos primeiros meses de 1936, chegou a ficar doente; os médicos diagnosticaram apenas cansaço. Havia ocasiões em que pregava dez horas diárias. O clero de quase todas as dioceses espanholas escutou a sua palavra; os Bispos chamavam-no, e ele percorria o país, à sua própria custa - naqueles trens da época -, sem qualquer remuneração além da amorosa obrigação de falar de Deus.
"Dentre as lembranças que agora me vêm à memória, com viva atualidade - escreveu em certa ocasião - destaca-se uma dos meus tempos de jovem sacerdote. Desde então, davam-me com não pouca frequência, dois conselhos unânimes para fazer carreira: primeiro, não trabalhar, não desenvolver demasiada atividade apostólica, porque isso suscita invejas e cria inimigos; e, depois, não escrever, pois tudo o que se escreve - mesmo que se escreva com precisão e clareza - costuma ser mal interpretado. Dou graças a Deus Nosso Senhor por nunca ter seguido esses conselhos, e estou contente por não me ter tornado sacerdote para fazer carreira".
Eu diria que Mons. Escrivá de Balaguer, sem seguir nenhum desses dois conselhos, esqueceu sobretudo o primeiro: o de não trabalhar. Foi precisamente essa atividade apostólica diária que não lhe permitiu escrever mais para o bem de tantas almas. Autor de livros de espiritualidade difundidos em todo o mundo - como Caminho e Santo Rosário - e de finos estudos jurídicos e teológicos - como La Abadesa de las Huelgas -, escreveu sobretudo numerosas e extensas cartas, Instruções, Glosas, etc., dirigidas aos sócios do Opus Dei, tratando exclusivamente de temas espirituais. Avesso a qualquer forma de propaganda, raras vezes acedeu aos numerosos e constantes pedidos de entrevistas, por parte da imprensa, rádio e televisão de muitos países. Essas poucas entrevistas , que foram uma exceção, estão reunidas no livro Questões Atuais do Cristianismo (2a edição brasileira, 1975, Edições Quadrante. São Paulo), também traduzido para as principais línguas.
De toda a vasta catequese que tem sido a sua pregação durante quase cinqüenta anos de sacerdócio, existe um abundante material inédito. Neste volume publica-se uma pequena parte: algumas das homilias pronunciadas a propósito de festas litúrgicas.
Apresentar essas Homilias é supérfluo. A palavra e a alma sacerdotal do autor são sobejamente conhecidas, e nada de novo saberia eu dizer, que não se pudesse deduzir imediatamente da leitura de qualquer uma delas. mas talvez se possam destacar algumas da suas características constantes.
Em primeiro lugar, a profundidade teológica. Estas Homilias não constituem um tratado teológico, no sentido corrente da expressão. Não foram concebidas como um estudo ou uma investigação sobre temas específicos; foram pronunciadas de viva voz, perante pessoas das mais diversas condições culturais e sociais, com esse dom de línguas que as tornam acessíveis a todos. Mas são pensamentos e considerações entretecidos no conhecimento assíduo e amoroso da palavra divina.
Observe-se, por exemplo, como o autor comenta o Evangelho. Não é nunca um texto para erudição, nem um lugar comum para citações. Cada versículo foi meditado muitas vezes e, nessa contemplação, descobriram-se luzes novas, aspectos que tinham permanecido velados durante séculos. A familiaridade com Nosso Senhor, com sua Mãe , Santa Maria, com São José, com os primeiros doze Apóstolos, com Marta, Maria e Lázaro, com José de Arimatéia e Nicodemos, com os discípulos de Emaús, com as Santas Mulheres, é algo vivo, conseqüência e resultado de uma conversa ininterrupta, desse introduzir-se nas cenas do Santo Evangelho para ser um personagem mais.
Por isso não surpreende a coincidência dos comentários de Mons. Escrivá de Balaguer com os dos primeiros escritores cristãos, feitos há mais de quinze séculos. As citações dos Padres da Igreja surgem então engastadas com naturalidade no texto das Homilias, em fiel sintonia com a Tradição da Igreja.
A segunda característica é a conexão imediata que se estabelece entre a doutrina do Evangelho e a vida do simples cristão. Em nenhum momento as Homilias se situam num terreno desencarnado, abstrato; há sempre teoria, mas em contínua ligação com a vida. Mons. Escrivá não se dirige - deve-se ter presente que são textos falados - a um auditório de mentes especulativas, de curiosos da espiritualidade cristã. Fala a pessoas de carne e osso, que já têm a vida de Deus na alma, ou que vislumbram o amor divino e estão dispostas a aproximar-se dele.
Também não fala a um público especializado - mulheres, homens, estudantes, operários, profissionais... -; fala sempre a todos ao mesmo tempo, porque está convencido de que
a palavra de Deus, quando pregada na base do amor de Cristo, encontra sempre os caminhos para chegar a cada coração, um a um; e de que o Espírito Santo põe em cada alma essas moções íntimas, que não se percebem de fora, para que a semente caia em terra boa e dê o cento por um.
A terceira característica diz respeito ao estilo. Talvez seja a menos importante, mas não é possível silenciar a sua linguagem direta, simples, de uma amenidade inconfundível. Nota-se sempre um delicado cuidado com a correção gramatical e literária, embora o autor não submeta o conteúdo à forma. A força e o vigor do que diz dão lugar a um estilo sereno e claro, que não recorre a efeitos facilmente emotivos. Também não pretende deslumbrar; quer apenas ser o veículo imprescindível para que cada alma se situe diante de Deus e tire conseqüências e propósitos concretos para a sua vida diária.
As Homilias deste volume abrangem todo o ano litúrgico, desde o Advento até à festa de Cristo-Rei. Não é possível resumir em poucas palavras um conteúdo tão amplo e, ao mesmo tempo, tão rico em matizes. Mas talvez se possam descobrir os fios condutores de todas essas meditações em voz alta.
O nervo central é o sentido da filiação divina, constante na pregação do Fundador do Opus Dei. O autor faz-se eco continuamente da doutrina de São Paulo: Todos aqueles que se guiam pelo Espírito de Deus, esses são filhos de Deus. Porque não recebestes o espírito da escravidão, para estardes novamente com temor, mas o espírito de adoção, em virtude do qual clamamos: Abba, Pai! Porque o próprio Espírito está dando testemunho ao nosso espírito de que somos filhos de Deus. E, sendo filhos, somos também herdeiros; herdeiros de Deus, e coherdeiros com Jesus Cristo, contanto que padeçamos com Ele, para com Ele sermos glorificados (Rom. VIII, 14-17).
Nesse texto trinitário - a Trindade Beatíssima é outro dos temas frequentes nestas Homilias -, indica-se o caminho que, no Espírito Santo, conduz ao Pai. O caminho é Jesus Cristo, que é Irmão, amigo - O Amigo -, Senhor, Rei, Mestre. A vida cristã baseia-se assim num relação contínua com Cristo; e essa relação tem lugar na vida diária, sem que ninguém tenha que se afastar do seu lugar. Como? Mons. Escrivá de Balaguer resume-o em dois traços: pelo Pão e pela Palavra.
O Pão é a Eucaristia. O Fundador do Opus Dei considera a Santa Missa como o centro e a raiz da vida cristã. Não é um acontecimento transitório, mas realidade sobrenatural e perene, que informa todos os momentos do dia. Duas homilias se referem em cheio a este mistério central do cristianismo: A Eucaristia, mistério de fé e de amor e Na festa do Corpus Christi. "Nosso Deus - escreve - decidiu permanecer no Sacrário para nos alimentar, para nos fortalecer, para nos divinizar, para dar eficácia às nossas tarefas e ao nosso esforço . Jesus é simultaneamente o semeador, a semente e o fruto da semeadura: o Pão da vida eterna".
A Palavra é a oração. Deus fala e nós o escutamos; Deus escuta e nós lhe falamos. Uma oração constante, como o pulsar do coração, como o respirar da alma enamorada. "Por isso, quando um coração envereda por este caminho da relação ininterrupta com o Senhor - que é caminho para todos, não uma senda para privilegiados -, a vida interior cresce, segura e firme; e fortifica-se no homem essa luta, amável e exigente ao mesmo tempo, por realizar até o fundo a vontade de Deus".
O homem é, pois, depositário de inúmeros tesouros divinos: recebe realmente Cristo, seu Corpo, seu Sangue, sua Alma e sua Divindade; é templo do Espírito Santo ; nele habita a Trindade Beatíssima. mas trazemos esses tesouros in vasis fictilibus (II Cor. IV, 7), em vasos de barro. E, como que em surdina, mas incansavelmente, o autor insiste: humildade. Não uma virtude triste, sem esperança. Humildade que é verdade: conhecimento da pequenez humana, em face da infinita grandeza de Deus. Mas também conhecimento de que o Senhor se recreia na sua criatura, de que Ele quer que o cristão se endeuse, com um endeusamento bom.
Toda a vida humana - a vida corrente, com suas alegrias e dissabores, com os risos e as pequenas tragédias diárias, caseiras - adquire uma nova dimensão: "a altura; e com ela o relevo, o peso e o volume (Caminho, 279). É o contínuo ensinamento do Fundador do Opus Dei: "Asseguro-vos, meus filhos - disse numa homilia pronunciada em 1967, perante 40.000 pessoas -, que quando um cristão desempenha com amor a mais intranscendente das ações diárias, ela transborda da transcendência de Deus. Por isso vos tenho repetido, com um insistente martelar, que a vocação cristã consiste em transformar em poesia heróica a prosa de cada dia".
As Homilias estão repletas desta vinculação das preocupações mais comuns e, por isso mesmo, mais humanas, com a transcendência de Deus. Estes trechos situam-se - serenamente, sem polêmica - fora dessas visões esquizofrênicas que concebem a santidade no equilíbrio instável de uma vida dupla: a normal e a espiritual. Ao mesmo tempo, repelem também a tentação de espiritualizar de tal modo as coisas humanas, que se vejam privadas da sua complexidade, daquilo que Mons. Escrivá de Balaguer chama o risco da liberdade: "Na linha do horizonte, meus filhos, parecem unir-se o céu e a terra. Mas não; onde verdadeiramente se unem é nos vossos corações, quando viveis santamente a vida diária".
Viver santamente a vida diária: com honradez humana e cristã, com sentido sobrenatural. Se toda a vida é oração - diálogo com Deus, pelo Pão e pela Palavra -, o homem pode perceber que o trabalho - sua atividade ordinária, aquela que preenche quase todas as horas do dia - é também uma prece contínua. o trabalho santificado, santifica e é oportunidade para que, com a graça de Deus, cooperemos na santificação dos outros.
A vida cristã normal - trabalho que é oração, oração que é trabalho - converte-se por completo em apostolado. A relação pessoal com Deus - face a face, sem anonimato -, não só não impede que nos preocupemos com os outros, como é manancial que tem necessariamente que transbordar, em benefício de todos os homens. "Alguns tentam construir a paz no mundo sem depositarem amor de Deus em seus próprios corações. Desse modo, como será possível levar a cabo uma missão de paz? A paz de Cristo é a paz do Reino de Cristo; e o Reino de Nosso Senhor deve alicerçar-se no desejo de santidade, na disposição humilde de receber a graça, numa esforçada ação de justiça, num divino derramamento de amor".
Estas são algumas das principais idéias das Homilias que se publicam neste volume. Mas não seria honesto silenciar o que falta. Num texto, não é possível perceber plenamente algumas das qualidades da pregação do Fundador do Opus Dei. Sua humanidade, sua sinceridade imediata, que cativa. Sua entrega aos que o escutam, sua insistência em que - ao ouvir essas palavras - cada um faça uma oração pessoal com Deus, com gritos calados. E esse realismo cordial, nada ingênuo e, ao mesmo tempo, nada pragmático. Um senso comum pouco comum. O bom humor que aflora sempre, uma alegria contagiosa, a alegria de um filho de Deus.
Mas já são muitos os milhares de pessoas que ouviram diretamente a pregação de Mons. Escrivá de Balaguer. Pois, se por um lado não gosta da propaganda e da publicidade, por outro, não tem inconveniente em responder a todos os que o interrogam sobre as coisas de Deus. Numa viagem feita em 1972 pela Espanha e Portugal, iniciada na França, tiveram oportunidade de ouvi-lo, em pequenos grupos ou grandes, mais de cento e cinquenta mil pessoas; em 1970, no México, esteve com cerca de quarenta mil pessoas desse país, dos Estados unidos e de muitas outras nações americanas; e em Roma, são muitos milhares os que, procedentes da Europa e de outros lugares, tiveram oportunidade de ouvir-lhe dizer que "todo o trabalho humano honesto, intelectual ou manual, deve ser realizado pelo cristão com a maior perfeição possível... Porque, feito dessa maneira, esse trabalho humano, por mais humilde e insignificante que pareça, contribui para ordenar cristãmente as realidades temporais - para manifestar a sua dimensão divina - e é assumido e integrado na obra prodigiosa da Criação e da Redenção do mundo: o trabalho eleva-se assim à ordem da graça, santifica-se, converte-se em obra de Deus, em operatio Dei, opus Dei".
Leiam-se estas Homilias ao calor da recordação desses momentos transcorridos junto de um sacerdote que não sabe senão falar de Deus. E compreender-se-ão nessa altura outros aspectos entranháveis do trabalho pastoral de Mons. Escrivá de Balaguer: a consciência viva de ser apenas um instrumento nas mãos do Senhor; a convicção sobrenatural de que as fraquezas e misérias pessoais - que teremos, enquanto vivermos, como ele sempre recorda - não podem ser obstáculo que nos afaste de Cristo, mas estímulo que nos aproxime mais dEle. Numa das homilias ainda inéditas, diz: "Eu não suporto nada do Senhor; é Ele que me suporta, e me ajuda, e me empurra, e me espera". E, dirigindo-se aos que o escutavam: Como não hei de compreender as vossas misérias, se me vejo cheio delas!".
E, por toda parte, como que em contraponto, surge um tema de fundo: o amor à liberdade pessoal. "Sou muito amigo da liberdade... O espírito do opus Dei, que procuro praticar e ensinar há mais de trinta e cinco anos - dizia em 1963 -, fez-me compreender e amar a liberdade pessoal. Quando Deus Nosso Senhor concede aos homens a sua graça, quando os chama com uma vocação específica, é como se lhes estendesse a mão, uma mão paternal cheia de fortaleza, repleta sobretudo de amor, porque nos procura um por um, como a suas filhas e seus filhos, e porque conhece a nossa fraqueza. O Senhor espera que façamos o esforço de pegar a sua mão, essa mão que Ele nos estende: Deus pede-nos um esforço, que será prova da nossa liberdade".
Se Deus respeita a nossa liberdade pessoal, como não havemos nós de respeitar a liberdade dos outros? E principalmente em todas aquelas coisas que se situam no campo - extensíssimo - de um pluralismo de opiniões e de atuações. "Não há dogmas nas coisas temporais. Não combina com a dignidade dos homens tentar fixar umas verdades absolutas em questões em que forçosamente cada um deve contemplar as coisas do seu ponto de vista, segundo os seus interesses particulares, as suas preferências culturais e a sua própria experiência peculiar. Pretender impor dogmas nas coisas temporais leva inevitavelmente a forçar as consciências alheias, a não respeitar o próximo".
Espero que se publique em breve um segundo volume das Homilias. Teremos ocasião de considerar de novo a perene realidade da Redenção através das palavras de quem está convencido de que "na vida espiritual, não há uma nova época que se possa atingir. Já está tudo concluído em Cristo, que morreu, e ressuscitou, e vive, e permanece para sempre. Mas é necessário unir-se a Ele, pela fé, deixando que a sua vida se manifeste em nós, de maneira que se possa dizer que cada cristão é, não já alter Christus, outro Cristo, mas ipse Christus, o próprio Cristo!".
ÁLVARO DEL PORTILLO
Roma, 9 de janeiro de 1973
« A VOCAÇÃO CRISTÃ »
(Homilia pronunciada em 2 de Dezembro de 1951, I Domingo do Advento.)
1 Inicia-se o ano litúrgico, e o intróito da missa propõe-nos uma consideração intimamente relacionada com o princípio da nossa vida cristã: a vocação que recebemos Vias tuas, Domine, demonstra mihi, et semitas tuas edoce me (Ps XXIV, 4): mostra-me, Senhor, os teus caminhos e indica-me as tuas veredas. Pedimos ao Senhor que nos guie, que nos deixe ver seus passos, para que possamos caminhar para a plenitude dos seus mandamentos, que é a caridade (Cfr. Mt XXII, 37; Mc XII, 30; Lc X, 27).
Acredito que vós e eu, ao pensarmos nas circunstâncias que acompanharam a nossa decisão de nos esforçarmos por viver integralmente a fé, daremos muitas graças ao Senhor e teremos a convicção sincera - sem falsas humildades - de que não houve nisso mérito algum de nossa parte. Em geral, aprendemos a invocar Deus desde a infância, dos lábios de pais cristãos; mais adiante, professores, companheiros e conhecidos nos ajudaram de mil maneiras a não perder Jesus Cristo de vista.
Um dia - não quero generalizar; abre teu coração ao Senhor e conta-lhe a tua história -, talvez um amigo, um simples cristão igual a ti, te fez descobrir um panorama profundo e novo, e, ao mesmo tempo, antigo como o Evangelho. Sugeriu-te a possibilidade de te empenhares seriamente em seguir Cristo, em ser apóstolo de apóstolos. Talvez tenhas perdido então a tranqüilidade e não a tenhas recuperado, convertida em paz, enquanto livremente, porque te apeteceu - que é a razão mais sobrenatural -, não respondeste sim a Deus. E veio a alegria, forte, constante, que só desaparece quando te afastas dEle.
Não me agrada falar de escolhidos nem de privilegiados. Mas é Cristo quem fala, quem escolhe. É a linguagem da escritura: Elegit nos in ipso ante mundi constitutionem - diz São Paulo - ut essemus sancti (Eph I, 4). Escolheu-nos antes da criação do mundo, para que sejamos santos. Eu sei que isso não te enche de orgulho, nem te faz sentir-te superior aos outros homens. Essa escolha, raiz da chamada, deve ser a base da tua humildade. Levanta-se por acaso um monumento aos pincéis do grande pintor? Serviram para plasmar obras primas, mas o mérito é do artista. Nós, cristãos, somos apenas instrumentos do Criador do mundo, do Redentor de todos os homens.
OS APÓSTOLOS, HOMENS COMUNS
2 Anima-me considerar um precedente narrado passo a passo nas páginas do Evangelho; a vocação dos primeiros Doze. Vamos meditá-la devagar, pedindo a essas santas testemunhas do Senhor que nos ensinem a seguir Cristo como elas o fizeram.
Aqueles primeiros apóstolos - que me inspiraram grande devoção e carinho - eram bem pouca coisa, segundo os critérios humanos. Quanto à posição social, com exceção de Mateus - que certamente ganhava bem a vida e que deixou tudo quando Jesus lho pediu - eram pescadores: viviam do dia a dia, labutando até de noite para poderem conseguir o seu sustento.
Mas a posição social é o que menos importa. Não eram cultos, nem sequer muito inteligentes, pelo menos no que se refere às realidades sobrenaturais. Até os exemplos e as comparações mais simples, eram para eles incompreensíveis, e recorriam ao Mestre: Domine, edissere nobis parabolam (Mt XIII, 36). Senhor, explica-nos a parábola. Quando Jesus, servindo-se de uma imagem, alude ao fermento dos fariseus, imaginam que os está recriminando por não terem comprado o pão (Cfr. Mt XVI, 6-7).
Pobres, ignorantes. E nem sequer simples abertos. Dentro das suas limitações, eram ambiciosos. Discutem muitas vezes sobre qual deles será o maior quando, segundo a sua mentalidade, Cristo instaurar na terra o reino definitivo de Israel. Discutem e exaltam-se durante esse momento sublime em que Jesus está prestes a imolar-se pela humanidade; na intimidade do Cenáculo (Cfr. Lc XXII, 24-27).
Fé, pouca. o próprio Jesus Cristo o diz (Cfr. Mt XIV, 31; XVI, 8; XVII, 17; XXI, 21). Viram-no ressuscitar mortos, curar toda a espécie de doenças, multiplicar os pães e os peixes, acalmar tempestades, expulsar demônios. E é São Pedro, escolhido como cabeça, o único que sabe responder prontamente: Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo (Mt XVI, 16). Mas é uma fé que ele interpreta à sua maneira, porque se atreve a enfrentar Cristo Jesus, para que não se entregue em redenção pelos homens. E Jesus tem que lhe responder: Retira-te de mim, Satanás, que me serves de escândalo, porque não tens a sabedoria das coisas de Deus, mas das coisas dos homens (Mt XXI, 23). Pedro raciocinava humanamente, comenta São João Crisóstomo, e concluía que tudo aquilo - a Paixão e a Morte - era indigno de Cristo, reprovável. Por isso Jesus repreende-o e diz-lhe: não, sofrer não é coisa indigna de mim; tu pensas assim porque raciocinas com idéias carnais, humanas (São João Crisóstomo, In Matthaeum homiliae 54, 4).
Mas será que aqueles homens de pouca fé sobressaiam talvez pelo seu amor a Cristo? Não há dúvida que o amavam, pelo menos de palavra. Em certas ocasiões, deixam-se arrebatar pelo entusiasmo: Vamos nós também e morramos com Ele (Ioh XI, 16). Mas, na hora da verdade, todos fogem, exceto João, que verdadeiramente amava com obras. Só este adolescente, o mais jovem dos Apóstolos, permanece junto da Cruz. Os outros não sentiam esse amor tão forte quanto a morte (Cant VIII, 6).
Estes são os Discípulos escolhidos pelo Senhor; assim os escolhe Cristo; assim se comportam eles antes de que, cheios do Espírito Santo, se convertam em colunas da Igreja (Cfr. Gal II, 9). São homens comuns, com defeitos, com fraquezas, com a palavra mais fácil que as obras. E, entretanto, Jesus chama-os para fazer deles pescadores de homens (Mt IV, 19), corredentores, administradores da graça de Deus.
3 Conosco aconteceu algo de semelhante. Sem grande dificuldade, poderíamos encontrar na nossa família, entre os nossos amigos e companheiros - para não me referir ao imenso panorama do mundo -, tantas outras pessoas mais dignas que nós de receberem a chamada de Cristo. mais simples, mais sábias, mais influentes, mais importantes, mais agradecidas, mais generosas.
Eu, ao pensar nestes pontos, sinto-me envergonhado. Mas percebo também que a nossa lógica humana não serve para explicar as realidades da graça. Deus costuma procurar instrumentos fracos, para que se perceba claramente que a obra é dEle. São Paulo evoca com estremecimento a sua vocação: E por último, depois de todos, foi também visto por mim como por um aborto. Porque eu sou o mínimo dos Apóstolos, indigno de ser chamado Apóstolo porque persegui a Igreja de Deus (I Cor, 8). Assim escreve Saulo de Tarso, homem de uma personalidade e de um vigor que a história nada mais fez do que agigantar.
Fomos chamados sem mérito algum de nossa parte, dizia: porque na base da vocação encontra-se o conhecimento da nossa miséria, a consciência de que as luzes que iluminam a alma - a fé -, o amor com que amamos - a caridade - e o desejo que nos sustém - a esperança -, são dons gratuitos de Deus. Por isso, não crescer em humildade significa perder de vista o propósito da eleição divina; ut essemus sancti, a santidade pessoal.
E agora, partindo dessa humildade, podemos compreender toda a maravilha da chamada divina. A mão de Cristo colheu-nos de um trigal: o semeador aperta em sua mão chagada o punhado de trigo. O sangue de Cristo banha a semente, empapa-a. Depois o Senhor lança ao ar esse trigo, para que, morrendo, seja vida e, afundando-se na terra, seja capaz de multiplicar-se em espigas de ouro.
JÁ É HORA DE DESPERTAR
4 A Epístola da Missa lembra-nos que temos que assumir esta responsabilidade de apóstolos com um espírito novo, cheios de ânimo, despertos. Já é hora de despertarmos do sono, pois estamos mais perto da nossa salvação do que quando recebemos a fé. A noite avança e o dia aproxima-se. Deixemos, pois, as obras das trevas, e revistamo-nos das armas da luz (Rom XIII, 11-12).
Dir-me-eis que não é fácil, e não vos faltará razão. os inimigos do homem, que são os inimigos da sua santidade, tentam impedir essa vida nova, esse revestir-nos do espírito de Cristo. Não encontro melhor enumeração dos obstáculos à fidelidade cristã do que a que estabelece São João: concupiscentia carnis, concupiscentia oculorum et superbia vitae (I Ioh II, 16); tudo o que há no mundo é concupiscência da carne, concupiscência dos olhos e soberba da vida.
5 A concupiscência da carne não é apenas o impulso desordenado dos sentidos em geral, nem o apetite sexual, que deve ser ordenado e em si não é mau, porque é uma nobre realidade humana santificável. Por isso, nunca falo de impureza, mas de pureza, já que a todos se dirigem as palavras de Cristo: Bem-aventurados os limpos de coração, porque verão a Deus (Mt V, 8). Mas nem uns nem outros escravos da sensualidade, porém senhores do seu corpo e do seu coração, para poderem dá-los sacrificadamente aos outros.
Ao tratar da virtude da pureza, costumo acrescentar o qualificativo de santa. A pureza cristã, a santa pureza, não é o orgulho de nos sentirmos puros, não contaminados. É sabermos que temos os pés de barro (Dan II, 33), ainda que a graça de Deus nos livre dia a dia das ciladas do inimigo. Considero uma deformação do cristianismo a insistência com que certas pessoas escrevem ou pregam quase exclusivamente sobre esta matéria, esquecendo outras virtudes que são capitais para o cristão e, em geral, para a convivência entre os homens.
A santa pureza não é a única nem a principal virtude cristã; é, entretanto, indispensável para perseverarmos no esforço diário da nossa santificação; e sem ela não é possível qualquer dedicação ao apostolado. A pureza é conseqüência do amor com que entregamos ao Senhor a alma e o corpo, as potências e os sentidos. Não é negação, é afirmação jubilosa.
Dizia que a concupiscência da carne não se reduz exclusivamente à desordem da sensualidade: estende-se ao comodismo e à falta de vibração, que impelem a procurar o mais fácil, o mais agradável, o caminho aparentemente mais curto, mesmo à custa de concessões no caminho da fidelidade a Deus.
Comportar-se assim equivaleria a abandonar-se incondicionalmente ao império de uma dessas leis, a do pecado, contra a qual nos previne São Paulo; Encontro, pois, esta lei em mim: quando quero fazer o bem, o mal está junto de mim. Porque me deleito na lei de Deus segundo o homem interior, mas vejo nos meus membros outra lei que se opõe à lei do meu espírito e me subjuga à lei do pecado... Infelix ego homo! infeliz de mim! Quem me livrará deste corpo de morte? (Rom VII, 21-24) Ouçamos o que responde o próprio Apóstolo: a graça de Deus, por Jesus Cristo Nosso Senhor (Rom VII, 25). podemos e devemos lutar contra a concupiscência da carne, porque, se formos humildes, ser-nos-á concedida sempre a graça do Senhor.
6 O outro inimigo, escreve São João, é a concupiscência dos olhos, uma avareza de fundo que leva a apreciar apenas o que se pode tocar: os olhos que ficam como que colados às coisas terrenas, mas também os olhos que, por isso mesmo, não sabem descobrir as realidades sobrenaturais. Portanto, podemos entender a expressão da Sagrada Escritura como uma referência à avareza dos bens materiais e, além disso, a essa deformação que nos leva a observar o que nos rodeia - os outros, as circunstâncias da nossa vida e do nosso tempo - com visão exclusivamente humana.
Os olhos da alma embotam-se; a razão julga-se auto-suficiente e capaz de entender todas as coisas prescindindo de Deus. É uma tentação sutil, que se escuda na dignidade da inteligência; da inteligência que nosso Pai-Deus outorgou ao homem para que o conheça e o ame livremente. Arrastada por esta tentação, a inteligência humana considera-se o centro do universo, entusiasma-se novamente com o sereis como deuses (Gen III, 5) e, enchendo-se de amor por si mesma, vira as costas ao amor de Deus.
Deste modo, a nossa existência pode entregar-se sem condições às mãos do terceiro inimigo, a superbia vitae. Não se trata simplesmente de pensamentos efêmeros de vaidade ou de amor próprio: é um endurecimento generalizado. Não nos enganemos , porque tocamos o pior dos males, a raiz de todos os extravios. A luta contra a soberba deve ser constante, porque, como já se disse graficamente, essa paixão morre um dia depois de a pessoa morrer. É a altivez do fariseu, a quem Deus reluta em justificar por encontrar nele uma barreira de auto-suficiência. É a arrogância que leva a desprezar os demais homens, a dominá-los, a maltratá-los: porque onde houver soberba, aí haverá também ofensa e desonra (Prv XI, 2).
A MISERICÓRDIA DE DEUS
7 Começa hoje o tempo do Advento e é bom que tenhamos considerado as insídias destes inimigos da alma: a desordem da sensualidade e da fácil leviandade; o desatino da razão que se opõe ao Senhor; a presunção altaneira, que esteriliza o amor a Deus e às criaturas. Todos estes estados de ânimo são obstáculos certos, e seu poder perturbador é grande. Por isso a liturgia nos faz implorar a misericórdia divina; A Ti, Senhor, elevo minha alma; em Ti espero; não seja eu confundido, nem se riam de mim os meus adversários (Ps XXIV, 1-2), rezamos no Intróito. E na antífona do Ofertório repetiremos: Espero em Ti, não seja eu confundido!
Agora que se aproxima o tempo da salvação, é consolador ouvir dos lábios de São Paulo: Depois que Deus Nosso Salvador manifestou sua benignidade e amor aos homens, livrou-nos não pelas obras de justiça que tivéssemos feito, mas por sua misericórdia (Tit III, 5).
Se percorrermos as Santas Escrituras, descobriremos constantemente a presença da misericórdia de Deus: enche a terra (Ps XXXII, 5), estende-se a todos os seus filhos, super omnem carnem (Eclo XVIII, 12); rodeia-nos (Ps XXXI, 10), antecede-nos (Ps LXIII, 11), multiplica-se para nos ajudar (Ps XXXIII, 8), e foi continuamente confirmada (Ps CXVI, 2). Ao ocupar-se de nós como Pai amoroso, Deus nos tem presentes em sua misericórdia (Ps XXIV, 7): uma misericórdia suave (Ps CVIII, 21), agradável como a nuvem que se desfaz em tempo de seca (Ecclo XXXV, 26).
Jesus Cristo resume e compendia toda a história da misericórdia divina: Bem-aventurados os misericordiosos porque alcançarão misericórdia (Mt V, 7). E em outra ocasião: Sede misericordiosos, como vosso pai celestial é misericordioso (Lc VI, 36). Ficaram também muito gravadas em nós, entre tantas outras cenas do Evangelho, a clemência com a mulher adúltera, as parábolas do filho pródigo, da ovelha perdida e do devedor perdoado, a ressurreição do filho da viúva Naim (Lc VII, 11-17). Quantas razões de justiça para explicar este grande prodígio! Morreu o filho único daquela pobre viúva, aquele que dava sentido à sua vida e podia ajudá-la na sua velhice. Mas Cristo não faz o milagre por justiça; Ele o faz por compaixão, porque se comove interiormente perante a dor humana.
Que segurança nos deve produzir a comiseração do Senhor! Clamará por mim e eu o ouvirei, porque sou misericordioso (Ex XXII, 27). É um convite, uma promessa que não deixará de cumprir. Aproximemo-nos, pois, confiadamente do trono da graça, a fim de alcançarmos a misericórdia e auxílio da graça no tempo oportuno (Heb IV, 16). Os inimigos da nossa santificação nada conseguirão, porque essa misericórdia de Deus nos protege por antecipado; e se por nossa culpa e fraqueza caímos, o Senhor nos socorre e nos levanta. Tinhas aprendido a evitar a negligência, a afastar de ti a arrogância, a adquirir piedade, a não ser prisioneiro das questões mundanas, a não preferir o caduco ao eterno. Mas, como a debilidade humana não pode manter um passo decidido num mundo resvaladiço, o bom Médico te indicou também remédios contra a desorientação, e o Juiz misericordioso não te negou a esperança do perdão (Santo Ambrósio, Expositio Evangelii secundum Lucam, 7 (Pl 15, 1540)).
CORRESPONDÊNCIA HUMANA
8 A existência do cristão desenvolve-se neste clima da misericórdia divina. Esse é o âmbito do esforço com que procura comportar-se como filho do Pai. E quais os principais meios para conseguir-mos que a vocação se fortaleça? Hoje te indicarei dois, que são quais eixos vivos da conduta cristã: a vida interior e a formação doutrinal, o conhecimento profundo da nossa fé.
Vida interior em primeiro lugar. Como são poucos ainda os que a entendem! Ao ouvirem falar de vida interior, pensam na escuridão do templo, quando não no ambiente rarefeito de certas sacristias. Há mais de um quarto de século venho dizendo que não é isso. O que descrevo é a vida interior de um simples cristão, que habitualmente se encontra em plena rua, ao ar livre; e que na rua, no trabalho na família e nos momentos de lazer permanece atento a Jesus o dia todo. E o que é isso senão vida de oração contínua? Não é verdade que compreendeste a necessidade de ser alma de oração, com uma relação de amizade com Deus que te leve a endeusar-te? Essa é a fé cristã e assim o compreenderam sempre as almas de oração. Escreve Clemente de Alexandria: Torna-se Deus o homem que quer o mesmo que Deus quer (Clemente de Alexandria, Paedagogus, 3, 1, 1, 5 (PG 8, 556)).
A princípio custa; é preciso esforçar-se por dirigir o olhar para o Senhor, por agradecer a sua piedade paternal e concreta para conosco. Pouco a pouco, o amor de Deus - embora não seja coisa de sentimentos - torna-se tão palpável como uma flechada na alma. É Cristo que nos persegue amorosamente: Eis que estou à tua porta e bato (Apoc III, 20). Como vai a tua vida de oração? Não sentes às vezes, durante o dia, desejos de conversar mais com Ele? Não lhe dizes: mais tarde te contarei isto, mais tarde conversarei sobre isso contigo?
Nos momentos expressamente dedicados a esse colóquio com o Senhor, o coração se expande, a vontade se fortalece, a inteligência - ajudada pela graça - embebe em realidades sobrenaturais as realidades humanas. E, como fruto, surgem sempre propósitos claros, práticos, de melhorar a conduta, de tratar delicadamente, com caridade, todos os homens, de nos empenharmos a fundo - com o empenho dos bons esportistas - nesta luta cristã de amor e de paz.
A oração se torna contínua, como o palpitar do coração, como o pulso. Sem essa presença de Deus, não há vida contemplativa; e, sem vida contemplativa, de pouco vale trabalhar por Cristo, porque se Deus não edifica a casa, em vão trabalham os que a constroem (Cfr. Ps CXXVI, 1).
O SAL DA MORTIFICAÇÃO
9 Para se santificar, o simples cristão - que não é um religioso, que não se separa do mundo, porque o mundo é o lugar do seu encontro com Cristo - não precisa de hábito externo nem de sinais distintivos. Seus sinais são internos: a presença de Deus constante e o espírito de mortificação. Na realidade, uma coisa só, porque a mortificação nada mais é que a oração dos sentidos.
A vocação cristã é vocação de sacrifício, de penitência, de expiação. Temos que reparar por nossos pecados - quantas vezes não teremos virado a cara para não vermos Deus! - e por todos os pecados dos homens. Temos que seguir de perto os passos de Cristo: trazendo sempre em nosso corpo a mortificação, seu abatimento na Cruz, para que também em nossos corpos se manifeste a vida de Jesus (2 Cor IV, 10). O nosso caminho é de imolação, e essa renúncia nos trará o gaudium cum pace, a alegria e a paz.
Não contemplamos o mundo com gesto triste. Têm prestado um fraco serviço à catequese, talvez involuntariamente, esses biógrafos de santos que queriam descobrir a todo o custo coisas extraordinárias aos servos de Deus, já desde os primeiros vagidos. E contam de alguns deles que em sua infância não choravam, e às sextas-feiras não mamavam, por mortificação... Vós e eu nascemos chorando, como Deus manda; e nos prendíamos no peito de nossa mãe sem nos preocuparmos com Quaresmas nem com Têmporas.
Agora, com o auxílio de Deus, aprendemos a descobrir ao longo dos dias - aparentemente sempre iguais - spatium verae poenitentiae, um tempo de verdadeira penitência; e nesses instantes fazemos propósitos de emendatio vitae, de melhorar a nossa vida. Este é o caminho para sabermos acolher a graça e as inspirações do Espírito Santo na alma. E com essa graça - repito - vem o gaudium cum pace, a alegria, a paz e a perseverança no caminho (Gaudium cum pace, emendationem vitae, spatium verae poenitentiae, gratiam et consolationem Sancti Spiritus, perseverantiam in bonis operibus tribuat nobis omnipotens et misericors Dominus. Amen (Breviário Romano, oração preparatória para a Santa Missa)).
A mortificação é o sal da nossa vida. E a melhor mortificação é a que combate - em pequenos detalhes, durante o dia todo - a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida. Mortificações que não mortifiquem os outros, que nos tornem mais delicados, mais compreensivos, mais abertos a todos. Não seremos mortificados se formos suscetíveis, se estivermos preocupados apenas com os nossos egoísmos, se esmagarmos os outros, se não nos soubermos privar do supérfluo e, às vezes, do necessário; se nos entristecermos quando as coisas não correm como tínhamos previsto. Pelo contrário, seremos mortificados se nos soubermos fazer tudo para todos, para salvar a todos (1 Cor IX, 22).
A FÉ E A INTELIGÊNCIA
10 A vida de oração e de penitência, e a consideração da nossa filiação divina, nos transformam em cristãos profundamente piedosos, como crianças diante de Deus. A piedade é a virtude dos filhos, e, para que o filho possa confiar-se aos braços de seu pai, deve sentir-se pequeno, necessitado. Tenho meditado com frequência nessa vida de infância espiritual, que não se opõe à fortaleza porque exige uma vontade enérgica, uma maturidade temperada, um caráter firme e aberto.
Piedosos, pois, como meninos; mas não ignorantes, porque cada um deve esforçar-se, na medida de suas possibilidades, por estudar a fé com seriedade e espírito científico; e tudo isso é teologia. piedade de meninos, portanto, mas doutrina segura de teólogos.
O empenho em adquirir esta ciência teológica - a boa e firme doutrina cristã - deve-se em primeiro lugar ao desejo de conhecer e amar a Deus. Ao mesmo tempo, é conseqüência da preocupação geral da alma fiel por descobrir o significado mais profundo deste mundo, que é obra do Criador. Com periódica monotonia, há quem procure ressuscitar uma suposta incompatibilidade entre a fé e a ciência, entre a inteligência humana e a Revelação divina. Essa incompatibilidade apenas pode surgir, e só aparentemente, quando não se entendem os dados reais do problema.
Se o mundo saiu das mãos de Deus, se Ele criou o homem à sua imagem e semelhança (Gen I, 26) e lhe deu uma chispa da sua luz, o trabalho da inteligência - mesmo que seja um trabalho duro - deve desentranhar o sentido divino que já naturalmente têm todas as coisas; e à luz da fé , percebemos também o seu sentido sobrenatural, que procede da nossa elevação à ordem da graça. Não podemos admitir o medo à ciência, porque qualquer trabalho, se for verdadeiramente científico, conduz à verdade. E Cristo disse: Ego sum veritas (Ioh XIV, 6), Eu sou a verdade.
O cristão deve ter fome de saber. Desde o cultivo dos saberes mais abstratos, até as habilidades do artesão, tudo pode e deve levar a Deus. Porque não há tarefa humana que não seja santificável, que não seja motivo para a nossa própria santificação e oportunidade para colaborarmos com Deus na santificação dos que nos rodeiam. A luz dos seguidores de Jesus Cristo não deve permanecer no fundo do vale, mas no cume da montanha, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem vosso Pai que está nos céus (Mt V, 16).
Trabalhar assim é oração. Estudar assim é oração. investigar assim é oração. Não saímos nunca do mesmo: tudo é oração, tudo deve e pode levar-nos a Deus, alimentar esse convívio contínuo com Ele, da manhã até a noite. Todo o trabalho honrado pode ser oração; e todo trabalho que foi oração é apostolado. Desse modo, a alma se enrijece numa unidade de vida simples e forte.
A ESPERANÇA DO ADVENTO
11 Nada mais vos queria dizer neste primeiro Domingo do Advento, em que já começamos a contar os dias que nos faltam para o Natal do Salvador. Vimos a realidade da vocação cristã, como o Senhor cofiou em nós para levar almas à santidade, para aproximá-las dEle, para uni-las à Igreja e estender o reino de Deus a todos os corações. O Senhor nos quer entregues, fiéis, delicados. Ele nos quer santos, muito seus.
Por um lado, a soberba, a sensualidade e o tédio, o egoísmo; por outro, o amor, a dedicação, a misericórdia, a humildade, o sacrifício, a alegria. Temos que escolher. Fomos chamados a uma vida de fé, de esperanças e de caridade. não podemos cruzar os braços e deixar-nos ficar num medíocre isolamento.
Certa vez, vi uma águia encerrada numa gaiola de ferro. Estava suma, meio depenada; tinha entre as garras um pedaço de carne podre. Ocorreu-me pensar no que seria de mim se abandonasse a vocação recebida de Deus. Fiquei com pena daquele animal solitário, enjaulado, que tinha nascido para voar muito alto e olhar o sol de frente. podemos remontar até as humildes alturas do amor de Deus, do serviço a todos os homens. Mas para isso é preciso que não haja recantos escondidos na alma, onde não possa entrar o sol de Jesus Cristo. Temos que jogar fora todas as preocupações que nos afastem dEle; e assim Cristo em tua inteligência, Cristo em teus lábios, Cristo em teu coração, Cristo em tuas obras. Toda a vida, o coração e as obras, a inteligência e as palavras, saturadas de Deus.
Olhai e levantai a cabeça, porque está próxima a vossa redenção (Lc XXI, 28), lemos no Evangelho. O tempo do Advento é tempo de esperança. Todo o panorama da nossa vocação cristã, essa unidade de vida que tem como nervo a presença de Deus, nosso Pai, pode e deve ser uma realidade diária.
Pede-a comigo a Nossa Senhora, imaginando como Ela passaria aqueles meses à espera do Filho que ia nascer. E Nossa Senhora, Santa Maria fará com que sejas alter Christus, ipse Christus, outro Cristo, o próprio Cristo!
« O TRIUNFO DE CRISTO NA HUMILDADE »
(Homilia pronunciada em 24 de Dezembro de 1963)
12 Lux fulgebit hodie super nos, quia natus est nobis Dominus (Is IX, 2; Intróito da II Missa de Natal), hoje brilhará sobre nós a luz porque nos nasceu o Senhor! Eis a grande novidade que comove os cristãos e que, através deles, se dirige à humanidade inteira. Deus está aqui! Esta verdade deve tomar posse de nossas vidas. Cada Natal deve ser para nós um novo encontro especial com Deus, que deixe a sua luz e a sua graça penetrarem até o fundo da nossa alma.
Detemo-nos diante do Menino, de Maria e de José; estamos contemplando o Filho de Deus revestido da nossa carne... Vem-me à memória a viagem que fiz a Loreto, em 15 de agosto de 1951, para visitar a Santa Casa por um motivo muito íntimo. Lá celebrei a Santa Missa. Queria dizê-la com recolhimento, mas não tinha contado com o fervor da multidão. Não tinha calculado que, nesse grande dia de festa, muitas pessoas dos arredores viriam a Loreto, com a bendita fé dessa terra e com o amor que têm à Madona. E a sua piedade, considerando as coisas - como diria? - unicamente do ponto de vista das leis rituais da Igreja, levava-as a manifestações não muito apropriadas.
E assim, enquanto eu beijava o altar, nos momentos prescritos pelas rubricas da Missa, três ou quatro camponeses beijavam-no ao mesmo tempo. Distraía-me, mas estava emocionado. E também me atraía a atenção o pensamento de que naquela Santa Casa - que a tradição assegura ser o lugar onde viveram Jesus, Maria e José -, em cima da mesa do altar, se tinham gravado estas palavras; Hic Verbum caro factum est. Aqui, numa casa construída pelas mãos dos homens, num pedaço da terra em que vivemos, habitou Deus!
JESUS CRISTO, PERFEITO DEUS E PERFEITO HOMEM
13 O Filho de Deus fez-se carne e é perfectus Deus, perfectus homo (Símbolo Quicumque), perfeito Deus e perfeito homem! Há neste mistério qualquer coisa que deveria emocionar os cristãos. Estava e estou comovido; Gostaria de voltar a Loreto... Vou lá em desejo, para reviver os anos da infância de Jesus, repetindo e considerando: Hic Verbum caro factum est!
Iesus Christus, Deus Homo, Jesus Cristo, Deus-Homem!
Eis uma das magnalia Dei (Act II, 11), uma das maravilhas de Deus em que temos de meditar e precisamos agradecer a este Senhor que veio trazer a paz na terra aos homens de boa vontade (Lc II, 14), a todos os homens que querem unir a sua vontade à Vontade boa de Deus. Não só aos ricos, nem só aos pobres! A todos os homens, a todos os irmãos! Pois irmãos somos todos em Jesus: filhos de Deus, irmãos de Cristo. E sua Mãe é nossa Mãe.
Na terra, há apenas uma raça; a raça dos filhos de Deus. Todos devemos falar a mesma língua; a que nosso Pai que está nos Céus nos ensina, a língua dos diálogos de Jesus com seu Pai, a língua que se fala com o coração e com a cabeça, aquela que estamos usando agora na nossa oração. É a língua das almas contemplativas, dos homens que são espirituais por se terem apercebido da sua filiação divina; uma língua que se manifesta em mil moções de vontade, em luzes vivas do entendimento, em afetos do coração, em decisões de retidão de vida, de bem-fazer, de alegria, de paz.
É preciso ver o Menino, nosso Amor, no seu berço, olhar para Ele sabendo que estamos perante um mistério. Precisamos aceitar o mistério pela fé, aprofundar no seu conteúdo. Para isso necessitamos das disposições humildes da alma cristã: não pretender reduzir a grandeza de Deus aos nossos pobres conceitos, às nossas explicações humanas, mas compreender que esse mistério, na sua obscuridade, é uma luz que guia a vida dos homens.
Vemos - diz São João Crisóstomo - que Jesus saiu de nós, da nossa substância humana, e que nasceu de Mãe virgem; mas não entendemos como pôde ter-se realizado esse prodígio. Não nos cansemos tentando descobri-lo: aceitemos antes com humildade o que Deus nos revelou, sem esquadrinhar com curiosidade o que Deus nos escondeu (São João Crisóstomo, In Matthaeum homiliae IV, 3 (PG 57, 43)). Assim, com este acatamento, saberemos compreender e amar ; e o mistério será para nós um esplêndido ensinamento, mais convincente que qualquer raciocínio humano.
SENTIDO DIVINO DO CAMINHAR TERRENO DE JESUS
14 Ao falar diante do Presépio, sempre procurei ver Cristo Nosso Senhor desta maneira, envolto em paninhos, sobre a palha de uma manjedoura; e, enquanto ainda é Menino e não diz nada, vê-lo já como Doutor, como Mestre. Preciso considerá-lo assim porque tenho que aprender dEle. e para aprender dEle, é necessário conhecer sua vida: ler o Santo Evangelho, meditar no sentido divino do caminhar terreno de Jesus.
Na verdades, temos que reproduzir em nossa vida a vida de Cristo, conhecendo Cristo à força de ler a Sagrada Escritura e de a meditar, à força de fazer oração, como agora estamos fazendo diante do Presépio. É preciso entender as lições que nos dá Jesus já desde Menino, desde recém-nascido, desde que seus olhos se abriram para esta bendita terra dos homens.
Jesus, crescendo e vivendo como qualquer um de nós, revela-nos que a existência humana, a vida comum e de cada dia, tem um sentido divino. Por muito que tenhamos considerado estas verdades, devemos encher-nos sempre de admiração ao pensar nos trinta anos de obscuridade que constituem a maior parte da vida de Jesus entre seus irmãos, os homens. Anos de sombra, mas, para nós, claros como a luz do Sol. Mais: resplendor que ilumina os nossos dias e que lhes dá uma autêntica projeção, pois somos cristãos comuns, com uma vida vulgar, igual à de tantos milhões de pessoas nos mais diversos lugares do mundo.
Assim viveu Jesus durante seis lustros: era fabri filius (Mt XIII, 55), o filho do carpinteiro. Virão depois os três anos de vida pública, com o clamor das multidões. E as pessoas surpreendem-se: Quem é este? Onde aprendeu tantas coisas? Pois a sua vida tinha sido a vida comum do povo da sua terra. Era o faber, filius Mariae (Mc VI, 3), o carpinteiro, filho de Maria. E era Deus; e estava realizando a redenção do gênero humano; e estava a atrair a Si todas as coisas (Ioh XII, 32).
15 Como em relação a qualquer outro aspecto de sua vida, nunca deveríamos contemplar esses anos ocultos de Jesus sem nos sentirmos afetados, sem os reconhecermos como o que realmente são: chamadas que o Senhor nos dirige para sairmos do nosso egoísmo, do nosso comodismo. O Senhor conhece as nossas limitações, o nosso individualismo e a nossa ambição; a nossa dificuldade de nos esquecermos de nós mesmos e nos entregarmos aos outros. Sabe o que é não encontrar amor e verificar que, mesmo aqueles que dizem segui-lo, só o fazem a meias. Recordemos as cenas tremendas que os Evangelistas nos descrevem e em que vemos os Apóstolos ainda cheios de aspirações temporais e de projetos exclusivamente humanos. mas Jesus escolheu-os, mantém-nos junto de si e confia-lhes a missão que recebeu do Pai.
Também a nós nos chama e nos pergunta, como a Tiago e a João: Potestis bibere calicem quem ego bibiritus sum? (Mt XX, 22), estais dispostos a beber o cálice - este cálice da completa entrega ao cumprimento da vontade do Pai - que eu vou beber? Possumus! (Mt XX, 22). Sim, estamos dispostos, é a resposta de João e Tiago... Vós e eu estamos dispostos seriamente a cumprir, em tudo, a vontade do nosso Pai-Deus? Demos ao Senhor nosso coração inteiro, ou continuamos apegados a nós mesmos, aos nossos interesses, à nossa comodidade, ao nosso amor próprio? Há em nós alguma coisa que não corresponda à nossa condição de cristãos e que nos impeça de nos purificarmos ? Hoje apresenta-se-nos a ocasião de retificar.
É necessário que nos convençamos de que Jesus nos dirige pessoalmente estas perguntas. É Ele quem as faz, não eu. Eu não me atreveria fazer a mim próprio. Eu vou continuando a minha oração em voz alta, e vós, cada um de vós, por dentro, está confessando ao Senhor: Senhor, que pouco valho! Que covarde tenho sido tantas vezes! Quantos erros! Nesta ocasião e naquela... ; nisto e naquilo... E podemos exclamar também: Ainda bem, Senhor, que me tens sustentado com a tua mão, porque me sinto capaz de todas as infâmias... Não me largues, não me deixes; trata-me sempre como a um menino. Que eu seja forte, valente, íntegro. Mas ajuda-me como a uma criatura inexperiente. Leva-me pela tua mão, Senhor, e faz com que tua mãe esteja também ao meu lado e me proteja. E, assim, possumus!, poderemos, seremos capazes de ter-Te por modelo.
Não é presunção afirmar possumus! Jesus Cristo ensina-nos este caminho divino e pede-nos que o empreendamos, porque Ele o tornou humano e acessível à nossa fraqueza. por isso se rebaixou tanto: Este foi o motivo porque se abateu, tomando a forma de servo aquele Senhor que, como Deus, era igual ao Pai; mas abateu-se na majestade e na potência; não na bondade nem na misericórdia (São Bernardo, Sermo in die Nativitatis, 1, 1-2 (PL 183, 115)).
A bondade de Deus quer facilitar-nos o caminho. Não rejeitemos o convite de Jesus, não lhe digamos não, não nos façamos surdos ao seu chamamento, pois não existem desculpas, não temos motivo nenhum para continuar a pensar que não podemos. Ele ensinou-nos com o seu exemplo. Portanto, peço-vos encarecidamente, meus irmãos, que não permitais que se vos tenha mostrado em vão modelo tão precioso, mas que vos conformeis com Ele e vos renoveis no espírito da vossa alma (São Bernardo, ibid. 1, 1).
PASSOU PELA TERRA FAZENDO O BEM
16 Vemos como é necessário conhecer Jesus, observar amorosamente a sua vida? Muitas vezes fui à procura da definição, da biografia de Jesus na Sagrada Escritura. Encontrei-a lendo aquela que o Espírito Santo registra em duas palavras: Pertransiit benefaciendo (Act X, 38). Todos os dias de Jesus Cristo na terra, desde o seu nascimento até a morte, pertransiit benefaciendo, foram preenchidos fazendo o bem. Como também diz a Escritura noutro lugar: Bene omnia fecit (Mc VII, 37), fez tudo bem, terminou bem todas as coisas, não fez senão o bem.
E tu? E eu? Lancemos um olhar sobre a nossa vida, para ver se temos alguma coisa que emendar. Eu, sim, encontro em mim muito que fazer. E como me vejo incapaz, só por mim, de praticar o bem, e como o próprio Jesus nos disse que sem Ele nada podemos (Cfr. Ioh XV, 5), vamos, tu e eu, implorar ao Senhor a sua assistência por meio de sua Mãe, neste colóquio íntimo, próprio das almas que amam a Deus. Não acrescento mais nada, porque é cada um de vós que deve falar, segundo as suas necessidades. Por dentro, e sem ruído de palavras, neste mesmo momento em que vos dou estes conselhos, aplico esta doutrina à minha própria miséria.
17 Pertransiit benefaciendo... O que fez Jesus para derramar tanto bem, e só bem, por onde quer que passasse? Os Santos Evangelhos transmitiram-nos outra biografia de Jesus, resumida em três palavras latinas que nos dão a resposta: Erat subditus illis (Lc II, 31), obedecia. Hoje, que o ambiente está cheio de desobediência, de murmuração, de desunião, devemos amar especialmente a obediência.
Sou muito amigo da liberdade, e precisamente por isso estimo tanto essa virtude cristã. Devemos sentir-nos filhos de Deus e viver com o empenho de cumprir a vontade do nosso Pai, de realizar tudo segundo o querer de Deus, simplesmente porque nos apetece, que é a razão mais sobrenatural.
O espírito do Opus Dei, que tenho procurado praticar e ensinar há mais de trinta e cinco anos, fez-me compreender e amar a liberdade pessoal. Quando Deus Nosso Senhor concede a sua graça aos homens, quando os chama com uma vocação específica, é como se lhes estendesse a mão, uma mão paternal, cheia de fortaleza, repleta sobretudo de amor , porque nos busca um por um, como a suas filhas e filhos, e porque conhece a nossa debilidade. O Senhor espera que façamos o esforço de agarrar a sua mão , essa mão que nos estende. Deus pede-nos um esforço, que será prova da nossa liberdade. E para consegui-lo, temos que ser humildes, temos que nos sentir filhos pequenos, e amar a bendita obediência com que correspondemos à bendita paternidade de Deus.
Precisamos deixar que o Senhor intervenha em nossas vidas e que intervenha confiadamente, sem encontrar obstáculos nem recantos obscuros. Nós, os homens, tendemos a defender-nos, a apegar-nos ao nosso egoísmo. Sempre tentamos ser reis, nem que seja do reino da nossa miséria. Devemos compreender, através desta consideração, o motivo pelo qual temos a necessidade de recorrer a Jesus: é para que Ele nos torne verdadeiramente livres, e desta forma possamos servir a Deus e a todos os homens. Só assim perceberemos a verdade daquelas palavras de São Paulo: Agora, porém, livres do pecado e feitos servos de Deus, tendes por fruto a santificação e por fim a vida eterna. porque o salário do pecado é a morte, ao passo que o dom gratuito de Deus é a vida eterna em Nosso Senhor Jesus Cristo (Rom VI, 22-23).
Estejamos precavidos, portanto, visto que a nossa tendência para o egoísmo não morre, e a tentação pode insinuar-se de muitas maneiras. Deus exige que, ao obedecer, ponhamos em movimento a fé, porque a sua vontade não se manifesta com aparato ruidoso. Às vezes, o Senhor sugere o seu querer como que em voz baixa, lá no fundo da consciência; e é necessário escutarmos atentamente. para sabermos distinguir essa voz e ser-lhe fiéis.
Muitas vezes fala-nos através de outros homens, e pode acontecer que, à vista dos defeitos dessas pessoas, ou pensando que não estão bem informadas, que talvez não tenham entendido todos os dados do problema, surja como que um convite para não obedecer.
Tudo isso pode ter um significado divino, porque Deus não nos impõe uma obediência cega, mas uma obediência inteligente, e temos que sentir a responsabilidade de ajudar os outros com a luz do nosso entendimento. Mas sejamos sinceros conosco mesmos: examinemos em cada caso se nos deixamos conduzir pelo amor à verdade ou antes pelo egoísmo e pelo apego aos nossos próprios critérios. Quando as nossas idéias nos separam dos outros, quando nos levam a quebrar a comunhão, a unidade com nossos irmãos, é sinal certo de que não estamos agindo segundo o espírito de Deus.
Não o esqueçamos: para obedecer, repito, é precisa humildade. Vejamos de novo o exemplo de Cristo. Jesus obedece, e obedece a José e a Maria. Deus veio à terra para obedecer, e para obedecer às criaturas. São duas criaturas perfeitíssimas: Santa Maria, nossa Mãe - mais do que Ela só Deus - e aquele varão castíssimo, José. Mas criaturas. E Jesus, que é Deus, obedecia-lhes! Temos que amar a Deus, para amar assim a sua vontade, e ter desejos de corresponder aos chamamentos que nos dirige através das obrigações da nossa vida de todos os dias: nos deveres de estado, na profissão, no trabalho, na família, no convívio social, no nosso próprio sofrimento e no sofrimento dos outros homens, na amizade, no empenho em realizar o que é bom e justo...
18 Quando chega o Natal, gosto de contemplar as imagens do Menino Jesus. Essas figuras, que nos mostram o Senhor tão humilhado, recordam-me que Deus nos chama, que o Onipotente quis apresentar-se desvalido, quis necessitar dos homens. Da gruta de Belém, Cristo diz a mim e a ti que precisa de nós; reclama de nós uma vida cristã sem hesitações, uma vida de doação, de trabalho, de alegria.
Não conseguiremos jamais o verdadeiro bom humor, se não imitarmos deveras Jesus, se não formos humildes como Ele. Insistirei de novo: vemos onde se oculta a grandeza de Deus? Num Presépio, nuns paninhos, numa gruta. A eficácia redentora de nossas vidas só se produzirá se houver humildade, se deixarmos de pensar em nós mesmos e sentirmos a responsabilidade de ajudar os outros.
É normal, às vezes até entre almas boas, criarem-se conflitos íntimos, que chegam a produzir sérias preocupações, mas que carecem de qualquer base objetiva. Sua origem está na falta de conhecimento próprio, que conduz à soberba: ao desejo de se tornarem o centro da atenção e estima de todos, à preocupação de não ficarem mal, de não se resignarem a fazer o bem e desaparecer, à ânsia de segurança pessoal... E assim, muitas almas que poderiam gozar de uma paz extraordinária, que poderiam saborear um imenso júbilo, transformam-se, por orgulho e presunção, em infelizes e infecundas!
Cristo foi humilde de coração (Cfr. Mt XI, 29). Ao longo da sua vida, não quis para si nenhuma coisa especial, nenhum privilégio. Começa por permanecer nove meses no seio de sua Mãe, como qualquer outro homem, com extrema naturalidade. O Senhor sabia de sobra que a humanidade necessitava dEle com urgência. Tinha, portanto, fome de vir à terra para salvar todas as almas. Mas não precipita o tempo: vem na sua hora, como chegam ao mundo os outros homens. Desde a concepção até o nascimento, ninguém - a não ser São José e Santa Isabel - percebe esta maravilha: Deus veio habitar entre os homens!
O Natal também está rodeado de uma simplicidade admirável: o Senhor vem sem estrondo, desconhecido de todos. Na terra, só Maria e José participam da divina aventura. Depois, os pastores, avisados pelos Anjos. E, mais tarde, os sábios do Oriente. Assim se realiza o fato transcendente que une o Céu à terra, Deus ao homem!
Como é possível tanta dureza de coração, que cheguemos a acostumar-nos a estes episódios? Deus humilha-se para que possamos aproximar-nos dEle, para que possamos corresponder ao seu amor com o nosso amor, para que a nossa liberdade se renda, não só ante o espetáculo do seu poder, como também ante a maravilha da sua humildade.
Grandeza de um Menino que é Deus! Seu Pai é o Deus que fez os céus e a terra, e Ele ali está, num presépio, quia non erat eis locus in diversorio (Lc II, 7), porque não havia outro lugar na terra para o dono de toda a Criação.
CUMPRIU A VONTADE DE SEU PAI-DEUS
19 Não me afasto da mais rigorosa verdade se digo que Jesus continua ainda hoje a buscar pousada no nosso coração. Temos que lhe pedir perdão pela nossa cegueira pessoal, pela nossa ingratidão. Temos que lhe pedir a graça de nunca mais lhe fecharmos as portas de nossas almas.
O Senhor não nos oculta que a obediência rendida à vontade de Deus exige renúncia e entrega, porque o amor não reclama direitos; quer servir. Ele percorreu primeiro o caminho. Jesus: como foi que obedeceste? Usque ad mortem, mortem autem crucis (Phil II, 8), até à morte, e morte de cruz. Temos que sair de nós mesmos, complicar a vida, perdê-la por amor de Deus e das almas... Tu querias viver, e que nada te acontecesse; mas Deus quis outra coisas... Existem duas vontades: a tua vontade deve ser corrigida para se identificar com a Vontade de Deus, e não a de Deus torcida para se acomodar à tua (Santo Agostinho, Enarrationes in psalmos, 31, 2, 26 (PL 36, 274)).
Tenho visto, com alegria, muitas almas jogarem a vida - como Tu, Senhor, usque ad mortem! - para cumprir o que a vontade de Deus lhes pedia, dedicando seus esforços e seu trabalho profissional ao serviço da Igreja, pelo bem de todos os homens.
Aprendamos a obedecer, aprendamos a servir. Não há maior fidalguia do que entregar-se voluntariamente a servir os outros. Quando sentirmos o orgulho que referve dentro de nós, a soberba que nos leva a pensar que somos super-homens, é o momento de dizer não, de dizer que o nosso único triunfo há de ser o da humildade. Assim nos identificaremos com Cristo na Cruz, sem nos sentirmos aborrecidos ou inquietos, nem com mau humor, mas alegres, porque essa alegria, o esquecimento de nós mesmos, é a melhor prova de amor.
20 Permiti-me que volte de novo à naturalidade, à simplicidade da vida de Jesus, que já vos tenho feito considerar tantas vezes. Esses anos ocultos do Senhor não são coisa sem significado, ou uma simples preparação dos anos que viriam depois, os anos de sua vida pública. Desde 1928, compreendi claramente que Deus desejava que os cristãos tomassem por exemplo toda a vida do Senhor. Entendi especialmente a sua vida escondida, a sua vida de trabalho comum entre os homens: o Senhor quer que muitas almas encontrem o seu caminho nesses anos de vida silenciosa e sem brilho. Obedecer à vontade de Deus, portanto, é sempre abandonar o egoísmo; mas não é necessário que se reduza predominantemente a um afastamento das circunstâncias habituais que rodeiam a vida dos homens, iguais a nós pelo seu estado, pela sua profissão, pela sua situação na sociedade.
Sonho - e o sonho já se tornou realidade - com multidões de filhos de Deus santificando-se na sua vida de cidadãos comuns, compartilhando ideais, anseios e esforços com as demais pessoas. Preciso gritar-lhes esta verdade divina: se permaneceis no meio do mundo, não é porque Deus se tenha esquecido de vós, não é porque Deus não vos tenha chamado. Deus vos convidou a permanecer nas ocupações e ansiedades da terra, porque vos fez saber que a vossa vocação humana, a vossa profissão, as vossas qualidades não só não são alheias aos seus desígnios divinos, mas foram santificadas por Ele como oferenda gratíssima ao Pai!
21 Recordar a um cristão que a sua vida não tem outro sentido senão o de obedecer à vontade divina não é separá-lo dos outros homens. Pelo contrário: em muitos casos o mandamento recebido do Senhor é que nos amemos uns aos outros como Ele nos amou (Cfr. Ioh XIII, 34-35) vivendo junto dos outros e tal como os outros, entregando-nos ao serviço do Senhor no mundo, para dar a conhecer melhor a todas as almas o amor de Deus; para lhes dizer que se abriram os caminhos divinos da terra.
O Senhor não se limitou a dizer que nos amava, mas demonstrou-o com obras. Não esqueçamos que Jesus Cristo se encarnou para ensinar, para que aprendamos a viver a vida dos filhos de Deus. Recordemos o preâmbulo do evangelista São Lucas nos Atos dos Apóstolos: Primum quidem sermonem feci de omnibus, ó Theophile, quae coepit Iesus facere et docere (Act I, 1), falei de tudo o que de mais notável Jesus fez e pregou. Veio ensinar, mas fazendo. veio ensinar, mas sendo modelo, sendo o mestre e o exemplo com a sua conduta.
Agora, diante de Jesus Menino, podemos continuar o nosso exame pessoal: estamos decididos a procurar que a nossa vida sirva de modelo e ensinamento aos nossos irmãos, aos nossos iguais, os homens? Estamos decididos a ser outros Cristos?
Não é suficiente dizê-lo com a boca. Tu - pergunto-o a cada um de vós e pergunto-o a mim mesmo - tu, que por seres cristão és convidado a ser outro Cristo, mereces que se repita de ti que vieste facere et docere, fazer tudo como um filho de Deus, atento à vontade de seu Pai, para que desse modo possas levar todas as almas a participarem das coisas boas, nobres, divinas e humanas da Redenção? Estás vivendo a vida de Jesus Cristo na tua vida habitual no meio do mundo?
Fazer as obras de Deus não é um bonito jogo de palavras, mas um convite a gastar-se por Amor. Temos que morrer para nós mesmos, afim de renascermos para uma vida nova. porque assim obedeceu Jesus, até à morte de Cruz, mortem autem crucis. Propter quod et Deus exaltavit illum (Phil II, 8). Por isso Deus o exaltou. Se obedecermos a vontade de Deus, a Cruz será também Ressurreição , exaltação. Cumprir-se-á em nós, passo a passo, a vida de Cristo; poder-se-á afirmar que vivemos procurando ser bons filhos de Deus, que passamos fazendo o bem, apesar de nossa fraqueza e dos nossos erros pessoais, por mais numerosos que tenham sido.
E quando vier a morte, que virá inexoravelmente, esperá-la-emos com júbilo, como eu tenho visto que souberam fazer tantas pessoas santas no meio da sua existência diária. Com alegria, porque, se imitarmos Cristo em fazer o bem - em obedecer e levar a Cruz, apesar das nossas misérias - ressuscitaremos como Cristo; Surrexit Dominus vere! (Lc XXIV, 34), que ressuscitou realmente.
Jesus, que se fez menino - meditemos -, venceu a morte. Pelo aniquilamento, pela simplicidade, pela obediência, pela divinização da vida comum e vulgar das criaturas, o Filho de Deus foi vencedor!
Este foi o triunfo de Jesus Cristo. Assim nos elevou ao seu nível, ao nível dos filhos de Deus, descendo ao nosso terreno, ao terreno dos filhos dos homens.
« O MATRIMÔNIO, VOCAÇÃO CRISTÃ »
(Homilia pronunciada no Natal de 1970)
22 Estamos no Natal. Vêm-nos à lembrança os diversos fatos e circunstâncias que rodearam o nascimento do Filho de Deus, e o olhar detém-se na gruta de Belém, no lar de Nazaré. Maria, José e Jesus Menino ocupam, de modo muito especial, o centro do nosso coração. Que nos diz, que nos ensina a vida ao mesmo tempo simples e admirável dessa Sagrada Família?
Entre as muitas considerações que poderíamos fazer, quero comentar agora principalmente uma. O nascimento de Jesus significa, como diz a Escritura, a inauguração da plenitude dos tempos (Gal IV, 4), o momento escolhido por Deus para manifestar por inteiro seu amor aos homens, entregando-nos o seu próprio Filho. Essa vontade divina cumpre-se no meio das circunstâncias mais normais e comuns: uma mulher que dá à luz, uma família, uma casa. A Onipotência divina, o esplendor de Deus, passam através das realidades humanas, unem-se ao elemento humano. A partir daí, nós, os cristãos, sabemos que, com a graça do Senhor, podemos e devemos santificar todas as realidades nobres da nossa vida. Não há situação terrena, por mais insignificante e vulgar que pareça, que não possa ser ocasião de um encontro com Cristo e etapa do nosso caminhar para o reino dos céus.
Por isso, não é de estranhar que a Igreja se alegre e se rejubile, contemplando a modesta morada de Jesus, Maria e José. É grato - reza o hino de matinas desta festa - recordar a pequena casa de Nazaré e a existência simples que ali se vive, celebrar com cânticos a simplicidade humilde que rodeia Jesus, a sua vida escondida. Foi ali que, ainda menino, Ele aprendeu o ofício de José, foi ali que cresceu em idade e participou num trabalho de artemão. Junto dele sentava-se sua doce Mãe; Junto de José vivia a sua esposa bem-amada, feliz de poder ajudá-lo e oferecer-lhe seus cuidados.
Ao pensar nos lares cristãos, gosto de imaginá-los luminosos e alegres, como foi o da Sagrada Família. A mensagem do Natal ressoa com toda a força: Glória a Deus no mais alto dos céus, e paz na terra aos homens de boa vontade (Lc II, 14). Que a paz de Cristo triunfe em vossos corações, escreve o Apóstolo (Col III, 15). A paz de nos sabermos amados por nosso Pai-Deus, incorporados em Cristo, protegidos pela Virgem Santa Maria, amparados por José. Essa é a grande luz que ilumina nossas vidas e que, por entre as dificuldades e misérias pessoais, nos impele a continuar para a frente, cheios de ânimo. Cada lar cristão deveria ser um remanso de serenidade em que, por uma afeição profunda e sincera, uma tranqüilidade profunda, fruto de uma fé real e vivida.
23 Para um cristão, o matrimônio não é uma simples instituição social, e menos ainda um remédio para as fraquezas humanas: é uma autêntica vocação sobrenatural. Sacramento grande em Cristo e na Igreja, diz São Paulo (Eph V, 32), e, ao mesmo tempo e inseparavelmente, contrato que um homem e uma mulher estabelecem para sempre, porque - queiramos ou não - o matrimônio instituído por Nosso Senhor Jesus Cristo é indissolúvel: sinal sagrado que santifica, ação de Jesus que se apossa da alma dos que se casam e os convida a segui-lo, transformando toda a vida matrimonial em um caminho divino sobre a terra.
Os casados estão chamados para santificar o seu matrimônio e a santificar-se a si próprios nessa união; por isso, cometeriam um grave erro se edificassem a sua conduta espiritual de coisas para o lar, à margem do lar. A vida familiar, as relações conjugais, o cuidado e a educação dos filhos, o esforço necessário para manter a família, para garantir o seu futuro e melhorar as suas condições de vida, o convívio com as outras pessoas que constituem a comunidade social, tudo isso são situações humanas, comuns, que os esposos cristãos devem sobrenaturalizar.
A fé e a esperança têm que manifestar-se na serenidade com que se encaram os problemas, pequenos ou grandes, que surgem em todos os lares, no ânimo alegre com que se persevera no cumprimento do dever. Assim, a caridade inundará tudo e levará a compartilhar as alegrias e os possíveis dissabores, a saber sorrir, esquecendo as preocupações pessoais para atender os demais; a escutar o outro cônjuge ou os filhos, mostrando-lhes que são queridos e compreendidos de verdade; e não dar importância a pequenos atritos que o egoísmo poderia converter em montanhas; a depositar um amor grande nos pequenos serviços de que se compõe a convivência diária.
Santificar o lar, dia a dia; criar, com o carinho, um autêntico ambiente de família: é disso que se trata. Para santificar cada jornada, é preciso praticar muitas virtudes cristãs; em primeiro lugar, as teologais, e depois todas as outras: a prudência, a lealdade, a sinceridade, a humildade, o trabalho, a alegria... Mas no caso do matrimônio, da vida matrimonial, é preciso começar com uma referência clara ao amor dos cônjuges.
SANTIDADE DO AMOR HUMANO
24 O amor puro e limpo dos esposos é uma realidade santa que eu, como sacerdote, abençôo com as duas mãos. Na presença de Jesus Cristo nas bodas de Caná, a tradição tem visto freqüentemente uma confirmação do valor divino do matrimônio: Nosso Salvador foi às bodas - escreve São Cirilo de Alexandria - para santificar o princípio da geração humana (São Cirilo de Alexandria, In Iohannem commentarius, 2, 1 (PG 73, 223)).
O matrimônio é um sacramento que faz de dois corpos uma só carne; como diz com expressão forte a teologia, sua matéria são os próprios corpos dos nubentes. O Senhor santifica e abençoa o amor do marido pela mulher e o da mulher pelo marido: estabelece não somente a fusão de suas almas, mas também a de seus corpos. Seja ou não chamado à vida matrimonial, nenhum cristão pode desprezá-la.
O Criador deu-nos a inteligência, que é como uma centelha do entendimento divino, e que nos permite - mediante a vontade livre, outro dom de Deus - conhecer e amar; e deu ao nosso corpo a possibilidade de gerar , que é como uma participação do seu poder criador. Deus quis servir-se do amor conjugal para trazer novas criaturas ao mundo e aumentar o corpo da sua Igreja. O sexo não é uma realidade vergonhosa, mas uma dádiva divina que se orienta limpamente para a vida, para o amor e para a fecundidade.
Este é o contexto, o pano de fundo em que se situa a doutrina cristã sobre a sexualidade. Nossa fé não desconhece nada das coisas belas, generosas, genuinamente humanas que há aqui por baixo. Ensina-nos que a regra do nosso viver não deve ser a busca egoísta do prazer, porque só a renúncia e o sacrifício levam ao verdadeiro amor: Deus amou-nos e convida-nos a amá-lo e a amar os outros com a verdade e a autenticidade com que Ele nos ama. Quem conservar a sua vida, perdê-la-á, e quem perder a vida por amor de mim, encontrá-la-á, escreveu São Mateus em seu Evangelho, com frase que parece paradoxal (Mt X, 39).
As pessoas em cuidados consigo mesma, que agem buscando acima de tudo sua própria satisfação, põem em risco a sua salvação eterna e já agora são inevitavelmente infelizes e desgraçadas. Só quem se esquece de si mesmo e se entrega a Deus e aos outros - também na vida matrimonial - pode ser feliz na terra, com uma felicidade que é preparação e antecipação do céu.
Enquanto caminhamos pela terra, a dor é a pedra de toque do amor. No estado matrimonial, considerando as coisas de uma maneira descritiva, poderíamos afirmar que há anverso e reverso. De um lado, a alegria de se saber querido, o entusiasmo de construir e fazer singrar um lar, o amor conjugal, o consolo de ver os filhos crescerem. De outro, dores e contrariedades, o passar do tempo, que consome os corpos e ameaça azedar os caracteres, a aparente monotonia dos dias que parecem sempre iguais.
Formaria um pobre conceito do matrimônio e do carinho humano quem pensasse que, ao tropeçar com essas dificuldades, o amor e a alegria se acabam. Precisamente então, quando os sentimentos que animavam aquelas criaturas revelam a sua verdadeira natureza, é que a doação e a ternura se enraízam e se manifestam como um afeto autêntico e profundo, mais poderoso do que a morte (Cant VIII, 6).
25 Essa autenticidade do amor requer fidelidade e retidão em todas as relações matrimoniais. Comenta São Tomás de Aquino (São Tomás de Aquino, S. Th. I-II, q. 31 e 141) que Deus uniu às diversas funções da vida humana um prazer, uma satisfação; esse prazer e essa satisfação são, portanto, bons. Mas se o homem, invertendo a ordem das coisas, procura essa emoção como valor último, desprezando o bem e o fim a que deve estar ligada e ordenada, perverte-a e desnaturaliza-a, convertendo-a em pecado ou em ocasião de pecado.
A castidade - que não é simples continência, mas afirmação decidida de uma vontade enamorada - é uma virtude que mantém a juventude do amor, em qualquer estado de vida. Existe uma castidade dos que sentem despertar em si o desenvolvimento da puberdade, uma castidade dos que se preparam para o casamento, uma castidade daqueles a quem Deus chama ao celibato, uma castidade dos que foram escolhidos por Deus para viverem no matrimônio.
Como não recordar aqui as palavras fortes e claras com que a Vulgata nos transmite a recomendação do Arcanjo Rafael a Tobias, antes de este desposar Sara? O arcanjo admoestou-o assim: Escuta-me e eu te mostrarei quem são aqueles contra os quais o demônio pode prevalecer. São os que abraçam o matrimônio de tal modo que excluem Deus de si e da sua mente, e se deixam arrastar pela paixão como o cavalo e o mulo, que estão desprovidos de entendimento. Sobre esses o diabo tem poder (Tob VI, 16-17).
Não há amor humano puro, franco e alegre no matrimônio se não se vive a virtude da castidade, que respeita o mistério da sexualidade e o faz convergir para a fecundidade e a entrega. Nunca falei de impureza e sempre evitei descer a casuísticas mórbidas e sem sentido, mas, de castidade e de pureza, da afirmação jubilosa do amor, sim, falei muitíssimas vezes e devo falar.
A respeito da castidade conjugal, assevero aos esposos que não devem ter medo de expressar o seu carinho, antes pelo contrário, pois essa inclinação é a base da sua vida familiar. O que o Senhor lhes pede é que se respeitem e que sejam mutuamente leais, que se confortem com delicadeza, com naturalidade, com modéstia. Dir-lhes-ei também que as relações conjugais são dignas quando são prova de verdadeiro amor e, portanto, estão abertas à fecundidade, aos filhos.
Cegar as fontes da vida é um crime contra os dons que Deus concedeu à humanidade uma manifestação de que a conduta se inspira no egoísmo, não no amor. Então tudo se turva, os cônjuges chegam a olhar-se como cúmplices; e produzem-se dissensões que, a continuar nessa linha, são quase sempre insanáveis.
Quando a castidade conjugal acompanha o amor, a vida matrimonial torna-se expressão de uma conduta autêntica, marido e mulher entendem-se e sentem-se unidos; quando o bem divino da sexualidade se perverte, a intimidade se destrói, e marido e mulher já não se podem olhar nobremente nos olhos.
Os esposos devem edificar a sua vida em comum sobre um carinho sincero e limpo, e sobre a alegria de terem trazido ao mundo os filhos que Deus lhes tenha conferido a possibilidade de ter, sabendo renunciar a comodidades pessoais e tendo fé na Providência. Formar uma família numerosa, se tal for a vontade de Deus, é penhor de felicidade e eficácia, embora afirmem outra coisa os fautores de um triste hedonismo.
26 Não vos esqueçais de que, entre os esposos, há ocasiões em que não é possível evitar as rusgas. Não alterqueis nunca diante dos filhos; fá-lo-eis sofrer e pôr-se-iam de um dos lados, contribuindo talvez para aumentar inconscientemente a vossa desunião. Mas brigar, sempre que não seja muito frequente, também é uma manifestação de amor, quase uma necessidade. A ocasião, não o motivo, costuma ser o cansaço do marido, esgotado pelo trabalho profissional; a fadiga - oxalá não seja o aborrecimento - da esposa, que teve de lutar com as crianças, com as empregadas, ou com o seu próprio caráter, às vezes pouco rijo, ainda que vós, mulheres, sejais mais enérgicas que os homens, se vos propondes a sê-lo.
Evitai a soberba, que é o maior inimigo da vossa vida conjugal: em vossas pequenas brigas, nenhum dos dois tem razão. Aquele que estiver mais sereno deve dizer uma palavra que contenha o mau humor até mais tarde. E mais tarde - a sós - discuti, que logo fareis as pazes.
Vós, mulheres, pensai se porventura não descuidais um pouco o arranjo pessoal; recordai, com o provérbio, que "a mulher bem posta tira o homem de outra porta": é sempre atual o dever de vos apresentardes amáveis como quando éreis noivas, dever de justiça, porque pertenceis ao vosso marido; e ele não deve esquecer, igualmente, que é vosso e que conserva a obrigação de ser, durante toda a vida, afetuoso como um noivo. Mau sinal se sorrísseis ao lerdes este parágrafo: seria sinal evidente de que o afeto familiar se havia convertido em gélida indiferença.
LARES LUMINOSOS E ALEGRES
27 Não se pode falar do matrimônio sem pensar ao mesmo tempo na família, que é o fruto e a continuação da realidade que se inicia com o matrimônio. Uma família compõe-se, não só do marido e da mulher, mas também dos filhos e, em um ou outro grau, dos avós, dos demais parentes e das empregadas domésticas. O calor íntimo de que depende o ambiente familiar deve chegar a todos eles.
É certo que há casais a quem o Senhor não concede filhos; é sinal, então, de que lhes pede que continuem a querer-se com igual carinho e que dediquem as suas energias - se puderem - a serviços e tarefas em benefício de outras almas. Mas o normal é que um casal tenha descendência. Para estes esposos, a primeira preocupação devem ser os seus próprios filhos. A paternidade e a maternidade não terminam com o nascimento: essa participação no poder de Deus, que é a faculdade de gerar, deve prolongar-se mediante a cooperação com o Espírito Santo, para que culmine com a formação de autênticos homens cristãos e autênticas mulheres cristãs.
Os pais são os principais educadores de seus filhos, tanto no aspecto humano como no sobrenatural, e devem sentir a responsabilidade dessa missão, que exige deles compreensão, prudência, saber ensinar e sobretudo, saber amar; e que se empenhem em dar bom exemplo. Não é caminho acertado para a educação a imposição autoritária e violenta. O ideal dos pais concretiza-se antes em chegarem a ser amigos dos filhos; amigos a quem se confiam as inquietações, a quem se consultam os problemas, de quem se espera uma ajuda eficaz e amável.
É necessário que os pais consigam tempo para estar com os filhos e falar com eles. Os filhos são o que há de mais importante: são mais importantes que os negócios, que o trabalho, que o descanso. Nessas conversas, convém escutá-los com atenção, esforçar-se por compreendê-los, saber reconhecer a parte de verdade - ou a verdade inteira - que possa haver em algumas de suas rebeldias. E, ao mesmo tempo, ajudá-los a canalizar retamente seus interesses e entusiasmos, ensiná-los a considerar as coisas e a raciocinar, não lhes impor determinada conduta, mas mostrar-lhes os motivos sobrenaturais e humanos que a aconselham. Em uma palavra, respeitar-lhes a liberdade, já que não há verdadeira educação sem responsabilidade pessoal, nem responsabilidade sem liberdade.
28 Os pais educam fundamentalmente com a sua conduta. O que os filhos e as filhas procuram no pai e na mãe não são apenas uns conhecimentos mais amplos que os seus, ou uns conselhos mais ou menos acertados, mas algo de maior categoria; um testemunho do valor e do sentido da vida encarnado numa existência concreta, confirmado nas diversas circunstâncias e situações que se sucedem ao longo dos anos.
Se tivesse que dar um conselho aos pais, dir-lhes-ia sobretudo o seguinte: que os vossos filhos vejam - não alimenteis ilusões, eles percebem tudo desde crianças e tudo julgam - que procurais viver de acordo com a vossa fé, que Deus não está apenas nos vossos lábios, que está nas vossas obras, que vos esforçais por ser sinceros e leais, que vos quereis e os quereis de verdade.
Assim contribuireis da melhor forma possível para fazer deles cristãos verdadeiros, homens e mulheres íntegros, capazes de enfrentar com espírito aberto as situações que a vida lhes apresente, de servir aos seus concidadãos e de contribuir para a solução dos grandes problemas da humanidade, levando o testemunho de Cristo aonde quer que se encontrem mais tarde, na sociedade.
29 Escutai vossos filhos, dedicai-lhes também o vosso tempo, mostrai-lhes confiança, acreditai no que vos disserem, ainda que uma vez ou outra vos enganem; não vos assusteis com as suas rebeldias, posto que também vós, na mesma idade, fostes mais ou menos rebeldes; saí-lhes ao encontro, até meio do caminho, e rezai por eles. E vereis como correrão a seus pais com simplicidade - podeis estar certos, se agis assim cristãmente - em vez de recorrerem , com suas legítimas curiosidades, a um amigalhaço desavergonhado e brutal. A vossa confiança, a vossa relação amigável com os filhos, receberá em resposta a sinceridade deles para convosco. E isto é a paz familiar, a vida cristã, embora não faltem contendas e incompreensões de pouca monta.
Como descreverei - pergunta um escritor dos primeiros séculos - a felicidade desse matrimônio que a Igreja une, que a entrega confirma, que a bênção sela, que os anjos proclamam e que Deus Pai tem por celebrado?... Ambos os esposos são como irmãos, servos um do outro, sem que se dê entre eles separação alguma, nem na carne nem no espírito. Porque verdadeiramente são dois numa só carne, e onde há uma só carne deve haver um só espírito... Ao contemplar esses lares, Cristo se alegra e envia-lhes a sua paz; onde estão dois, ali está Ele também, e onde Ele está, não pode haver nada de mau (Tertuliano, Ad uxorem 1, 2, 9 (PL 1, 1302)).
30 Procuramos resumir e comentar alguns traços desses lares em que se reflete a luz de Cristo e que, por isso - repito -, são luminosos e alegres; lares em que a harmonia que reina entre os pais se transmite aos filhos, à família inteira e a todos os ambientes que a acompanham. Assim, em cada família autenticamente cristã, reproduz-se de algum modo o mistério da Igreja, escolhida por Deus e enviada como guia do mundo.
A todo o cristão, seja qual for a sua condição, - sacerdote ou leigo, casado ou solteiro -, aplicam-se plenamente as palavras do Apóstolo que se lêem precisamente na Epístola da festa da Sagrada Família: escolhidos de Deus, santos e amados (Col III, 12). Isso somos todos, cada um no seu lugar no mundo: homens e mulheres escolhidos por Deus para dar testemunho de Cristo e levar aos que nos rodeiam a alegria de se saberem filhos de Deus, apesar dos nossos erros e procurando lutar contra eles.
É muito importante que nunca falte o sentido vocacional do matrimônio, tanto na catequese e pregação como na consciência daqueles a quem Deus queira nesse caminho, já que estão real e verdadeiramente chamados a incorporar-se aos desígnios divinos de salvação de todos os homens.
Por isso, talvez não se possa propor aos esposos cristãos melhor modelo que o das famílias dos tempos apostólicos: o centurião Cornélio, que foi dócil à vontade de Deus, e em cuja casa se consumou a abertura de Igreja aos gentios (Act X, 24-48); Áquila e Priscila, que difundiram o cristianismo em Corinto e em Éfeso, e que colaboraram com o apostolado de São Paulo (Act XVIII, 1-26); Tabita, que com a sua caridade assistiu aos necessitados de Jope (Act IX, 36). E tantos outros lares de judeus e gentios, de gregos e romanos, aos quais chegou a pregação dos primeiros discípulos do Senhor.
Famílias que viveram de Cristo e que deram a conhecer Cristo. Pequenas comunidades cristãs, que atuaram como centros de irradiação da mensagem evangélica. Lares iguais aos outros lares daqueles tempos, mas animados de um espírito novo, que contagiava os que os conheciam e que com eles se relacionavam.
Assim foram os primeiros cristãos e assim havemos de ser nós, os cristãos de hoje: semeadores de paz e de alegria, da paz e da alegria que Jesus nos trouxe.
« NA EPIFANIA DO SENHOR »
(Homilia pronunciada em 6 de janeiro de 1956, Epifania do Senhor)
31 Não há muito tempo, tive ocasião de admirar um baixo-relevo em mármore que representava a cena da adoração do Menino Deus pelos Magos. Emoldurando esse baixo relevo, viam-se outros: quatro anjos, cada um com um símbolo - um diadema, o mundo coroado pela cruz, uma espada, um cetro. Foi assim que alguém ilustrou plasticamente, com símbolos bem conhecidos, o acontecimento que hoje comemoramos: uns homens sábios - a tradição diz que eram reis - prostraram-se diante de um Menino, depois de perguntarem em Jerusalém: Onde está o rei dos judeus que acaba de nascer? (Mt II, 2)
Instado por essa pergunta, eu também contemplo agora Jesus reclinado numa manjedoura (Lc II, 12), num lugar próprio para animais. Onde está, Senhor, a tua realeza: o diadema, a espada, o cetro? Pertencem-lhe e Ele não os quer; reina envolto em panos. É um Rei inerme, que se apresenta indefeso; é uma criança. Como não havemos de recordar aquelas palavras do Apóstolo: Aniquilou-se a si mesmo, tomando a forma de servo (Phil II, 7)?
Nosso Senhor encarnou-se para nos manifestar a vontade do Pai. E eis que já do próprio berço nos instrui. Jesus Cristo procura-nos - com uma vocação, que é vocação de santidade - para com Ele consumarmos a redenção. Consideremos o seu primeiro ensinamento: temos que corredeira procurando o triunfo, não sobre o próximo, mas sobre nós mesmos. Como Cristo, precisamos aniquilar-nos , sentir-nos servidores dos outros para os levar a Deus.
Onde está o Rei? Não será que Jesus deseja reinar antes de tudo no coração, no teu coração? Por isso se fez Menino, porque quem há que não ame uma criança? Aonde está o Rei? onde está o Cristo que o Espírito Santo procura formar em nossa alma? Não pode estar na soberba que nos separa de Deus; não pode estar na falta de caridade, que nos isola. Aí não pode estar Cristo; aí o homem fica só.
No dia da Epifania, situados aos pés de Jesus Menino, de um Rei sem sinais externos de realeza, podemos dizer-lhe: Senhor, tira a soberba de minha vida; destróier o meu amor próprio, este desejo de me afirmar e me impor aos outros; faz com que o fundamento da minha personalidade seja a identificação contigo.
O CAMINHO DA FÉ
32 Identificar-se com Cristo não é meta fácil. Mas também não é difícil, se vivermos como o Senhor nos ensinou, se recorrermos diariamente à sua Palavra, se impregnarmos a nossa vida da realidade sacramental - a Eucaristia - que Ele nos deixou em alimento, porque o caminho do cristão é andadeiro, como lembra uma antiga canção da minha terra. Deus chamou-nos clara e inequivocamente. Como os Reis Magos, descobriremos uma estrela - que é luz e rumo - no céu da nossa alma.
Vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo (Mt II, 2). Foi o que aconteceu conosco. Nós também percebemos que pouco a pouco se acendia na alma um novo resplendor: o desejo de sermos plenamente cristãos; se assim me posso exprimir, a ânsia de tomarmos Deus a sério. Se cada um de nós se pusesse agora a contar em voz alta o processo íntimo da sua vocação sobrenatural, os outros perceberiam que tudo isso era divino. Agradeçamos a Deus Pai, a Deus Filho, a Deus Espírito Santo e a Santa Maria, por meio da qual nos vêm todas as bênçãos do céu, este dom que, juntamente com a fé. é a maior graça que o Senhor pode conceder a uma criatura: o firme anseio de alcançar a plenitude da caridade, na convicção de que não só é possível, como também necessária, a santidade no meio das ocupações profissionais, sociais...
Consideremos a delicadeza com que o Senhor nos dirige o convite. Exprime-se com palavras humanas, como um enamorado: Eu te chamei pelo teu nome... Tu és meu (Is XLIII, 1). Deus que é a Formosura, a Grandeza, a Sabedoria, anuncia-nos que somos seus, que nos escolheu como termo do seu amor infinito. É precisa uma forte vida de fé para não desvirtuarmos esta maravilha que a Providência Divina deposita em nossas mãos. Fé como a dos Reis Magos: a convicção de que nem o deserto, nem as tempestades, nem a tranqüilidade dos oásis nos impedirão de chegar à meta do Presépio eterno: a vida definitiva com Deus.
33 Um caminho de fé é um caminho de sacrifício. A vocação cristã não nos tira do nosso lugar, mas exige que abandonemos tudo o que estorva o querer de Deus. A luz que se acende é apenas o princípio; temos que segui-la, se desejamos que essa claridade se torne estrela, e depois sol. Enquanto os Magos estavam na Pérsia - escreve São João Crisóstomo -, não viam senão uma estrela; mas quando abandonaram a sua pátria, viram o próprio sol da justiça. Pode-se dizer que não teriam continuado a ver a estrela se tivessem permanecido no seu país. Apressemo-nos, pois, nós também: ainda que todos no-lo impeçam, corramos à casa desse Menino (São João Crisóstomo, In Matthaeum homiliae, 6,5 (PG 57, 78)).
FIRMEZA NA VOCAÇÃO
Vimos a estrela no Oriente e viemos adorá-lo. Ao ouvir isto, o Rei Herodes perturbou-se, e com ele toda a cidade de Jerusalém (Mt II, 2-3). Ainda hoje se repete a cena. Perante a grandeza de Deus, perante a decisão, seriamente humana e profundamente cristã, de viver de modo coerente com a fé, não faltam pessoas que se enchem de estranheza e até se escandalizam e se desconcertam. Dir-se-ia que não concebem outra realidade além das que cabem em seus estreitos horizontes terrenos. Perante os gestos de generosidade que percebem na conduta dos que ouviram a chamada do Senhor, sorriem com displicência, assustam-se, ou então - em casos que parecem verdadeiramente patológicos - concentram todo o seu esforço em impedir a santa determinação que uma consciência tomou com a mais plena liberdade.
Já tive ocasião de presenciar uma espécie de mobilização geral contra os que haviam decidido dedicar toda a sua vida ao serviço de Deus e dos demais homens. Há gente persuadida de que o Senhor não pode escolher seja quem for sem lhes pedir autorização, e de que o homem não é capaz de responder sim ou não ao Amor, com a mais plena liberdade. Para quem raciocina nesses termos, a vida sobrenatural de cada alma é algo secundário; pensam que merece atenção, mas só depois de satisfeitos os pequenos comodismos e egoísmos humanos. Se fosse assim, que restaria do cristianismo? As palavras de Jesus, amorosas e exigentes ao mesmo tempo, serão só para ouvir, ou para ouvir e pôr em prática? Ele disse: Sede perfeitos, como vosso Pai celestial é perfeito (Mt V, 48).
Nosso Senhor dirige-se a todos os homens, para que caminhem ao seu encontro, para que sejam santos. Não chama só os Reis Magos, que eram sábios e poderosos; antes disso, tinha enviado aos pastores de Belém, não já uma estrela, mas um de seus anjos (Cfr. Lc II, 9). No entanto, quer uns quer outros - sejam pobres ou ricos, sábios ou menos sábios - devem fomentar na sua alma uma disposição humilde que permita escutar a voz de Deus.
Consideremos o caso de Herodes: era um poderoso da terra, e tem às suas ordens a colaboração dos sábios: Reunindo todos os príncipes dos sacerdotes e os escribas do povo, perguntou-lhes onde havia de nascer o Messias (Mt II, 4). Seu poder e sua ciência não o levaram a reconhecer Deus. Para o seu coração empedernido, o poder e a ciência são instrumentos da maldade: o desejo inútil de aniquilar Deus, o desprezo pela vida de um punhado de crianças inocentes.
Continuemos a ler o Santo Evangelho: Eles responderam: Em Belém de Judá, pois assim está escrito pelo profeta: "E tu, Belém, terra de Judá, não és certamente a menor entre as cidades de Judá, porque de ti sairá o chefe que apascentará meu povo de Israel" (Mt II, 5). Não nos podem passas despercebidos estes detalhes da misericórdia divina: aquele que vinha redimir o mundo nasce numa aldeia perdida. É que Deus não faz distinção de pessoas (Cfr. Par XIX, 7; Rom II, 1; Eph VI, 9; Col III, 25, etc.), como nos repete insistentemente a Escritura. Ao convidar uma alma a uma vida de plena coerência com a fé, não se detém em méritos de fortuna, em títulos de nobreza, em altos graus de ciência. A vocação precede todos os méritos: A estrela que tinham visto no Oriente precedia-os, até que, chegando ao lugar onde estava o Menino, se deteve (Mt II, 9).
A vocação está em primeiro lugar; Deus nos ama antes de que saibamos sequer dirigir-nos a Ele, e deposita em nós o amor com que podemos corresponder-lhe. A bondade paternal de Deus corre ao nosso encontro (Ps LXXVIII, 8). Nosso Senhor não se limita a ser justo; vai muito mais longe; é misericordioso. Não espera que o procuremos; antecipa-se, com manifestações inequívocas de carinho paternal.
BOM PASTOR, BOM GUIA
34 Se a vocação está em primeiro lugar, se a estrela brilha antecipadamente para nos orientar no nosso caminho de amor a Deus, não é lógico ter dúvidas quando ela se oculta uma vez por outra. Quase sempre por nossa culpa, acontece em determinados momentos da nossa vida interior o que aconteceu durante a viagem dos Reis Magos: a estrela desaparece. Conhecemos já o resplendor divino da nossa vocação, estamos persuadidos do seu caráter definitivo, mas talvez o pó que levantamos ao andar - nossas misérias - formem uma nuvem opaca que não deixa passar a luz.
Que fazer então? Seguir os passos daqueles homens santos: perguntar. Herodes serviu-se da ciência para proceder de modo injusto; os Reis Magos utilizaram-na para fazer o bem. Mas nós, cristãos, não temos necessidade de perguntar a Herodes ou aos sábios da terra. Cristo deu à sua Igreja a segurança da doutrina, a corrente de graça dos Sacramentos; e cuidou de que houvesse pessoas que nos pudessem orientar, que nos conduzissem, que nos trouxessem constantemente à memória o nosso caminho. Dispomos de um tesouro infinito de ciência: a Palavra de Deus, guardada pela Igreja; a graça Cristo, que nos é administrada através dos Sacramentos; o testemunho e o exemplo dos que vivem retamente ao nosso lado, e que souberam construir com suas vidas um caminho de fidelidade a Deus.
Seja-me permitido um conselho: se alguma vez perdemos a claridade da luz, recorramos sempre ao bom pastor. E quem é o bom pastor? O que entra pela porta da fidelidade à doutrina da Igreja; aquele que não se comporta como o mercenário, o qual, vendo chegar o lobo, abandona as ovelhas e foge; e o lobo as arrebata e dispersa o rebanho (Cfr. Ioh X, 1-21). A palavra divina não é vã; e a insistência de Cristo - não percebemos o carinho com que fala de pastores e de ovelhas, do redil e do rebanho? - é uma demonstração prática da necessidade de um bom guia para a nossa alma.
Se não houvesse maus pastores, escreve Santo Agostinho, Ele não no-lo teria prevenido. Quem é o mercenário? É o que vê o lobo e foge; o que procura a sua glória, não a glória de Cristo; o que não se atreve a censurar os pecadores com liberdade de espírito. O lobo fila uma ovelha pelo pescoço, o demônio induz um fiel a cometer adultério. E tu te calas, não censuras. És mercenário; viste vir o lobo e fugiste. Talvez digas: não, estou aqui, não fugi. Não, respondo, fugiste porque te calaste; e te calaste porque tiveste medo (Santo Agostinho, In Iohannis Evangelium tractatus, 46, 8 (PL 35, 1732)).
A santidade da Esposa de Cristo sempre se demonstrou - como hoje continua a demonstrar-se - pela abundância de bons pastores. Mas a fé cristã, que nos ensina a ser simples, não nos induz a ser ingênuos. Há mercenários que se calam, e há mercenários que pronunciam palavras que não são de Cristo. Por isso, se porventura o Senhor permite que fiquemos às escuras, mesmo em coisas de pormenor; se sentimos que a nossa fé não é firme, recorramos ao bom pastor, àquele que entra pela porta, exercendo o seu direito, àquele que - dando a vida pelos outros - quer ser, na palavra e na conduta, uma alma enamorada; talvez um pecador também , mas que confia sempre no perdão e na misericórdia de Cristo.
Se a nossa consciência nos reprova alguma falta - mesmo que não nos pareça grave - se estamos em dúvida, recorramos ao Sacramento da Penitência. Iremos ao sacerdote que nos atende, àquele que sabe exigir de nós firmeza na fé, delicadeza de alma, verdadeira fortaleza cristã. A Igreja concede-nos a mais plena liberdade para nos confessarmos com qualquer sacerdote que possua as legítimas licenças; mas um cristão de vida clara procura - livremente - aquele que reconhece como bom pastor, e que pode ajudá-lo a levantar os olhos para tornar a ver no alto a estrela do Senhor.
OURO, INCENSO E MIRRA
35 Videntes autem stellam, gavisi sunt gaudio magno valde (Mt II, 10), diz o texto latino com admirável reiteração: ao descobrirem novamente a estrela, exultaram cheios de grande alegria. Por quê tanta alegria? Porque eles, que nunca duvidaram, recebem do Senhor a prova de que a estrela não desapareceu: deixaram de contemplá-la sensivelmente, mas tinham-na conservado sempre na alma. Assim é a vocação do cristão: se não se perde a fé, se se preserva a esperança em Jesus Cristo, que estará conosco até à consumação dos séculos (Mt XXVIII, 20), a estrela reaparece. E, ao verificarmos uma vez mais a realidade da vocação, nasce uma alegria maior, que aumenta em nós a fé.
Entrando na casa, viram o Menino com Maria, sua Mãe, e, pondo-se de joelhos, o adoraram (Mt II, 11). Nós também nos ajoelhamos diante de Jesus, do Deus escondido na humanidade: repetimos que não queremos dar as costas à sua chamada divina, que não nos afastaremos dEle; que tiraremos do nosso caminho tudo o que for obstáculo à fidelidade; que desejamos sinceramente ser dóceis às suas aspirações. Tu, na tua alma, e eu também - porque faço uma oração íntima, com um profundo clamor silencioso - estamos contando agora ao Menino que temos ânsias de ser tão leais aos nossos compromissos quanto os servos da parábola , para que nos possa também responder: Alegra-te, servo bom e fiel (Mt XXV, 23).
E abrindo seus tesouros, ofereceram-lhe presentes de ouro, incenso e mirra (Mt II, 11). Detenhamo-nos um pouco nesta passagem do Santo Evangelho. Como é possível que nós, que nada somos e que nada valemos, levemos oferendas a Deus? Diz a Escritura: Toda a dádiva e todo o dom perfeito vêm do alto (Iac I, 17). O homem não consegue sequer descobrir inteiramente a profundidade e a beleza dos presentes do Senhor: Se conhecesses o dom de Deus! (Ioh IV, 10), responde Jesus à mulher samaritana. Jesus Cristo ensinou-nos a esperar tudo do Pai, a procurar, antes de mais nada, o Reino de Deus e a sua justiça, porque todo o resto nos seria dado por acréscimo, e Ele sabe de que coisas estamos necessitados (Cfr. Mt VI,32-33).
Na economia da salvação, nosso Pai cuida de cada alma com amorosa delicadeza: Cada um recebe de Deus seu próprio dom, uns de uma maneira outros de outra (1 Cor VII, 7). Poderia, pois, parecer inútil esforçar-nos por apresentar ao Senhor algo de que Ele necessitasse; dada a nossa situação de devedores insolventes (Cfr. Mt XVIII, 25), nossas oferendas assemelhar- se-iam à da Lei Antiga, que Deus já não aceita: Não quiseste sacrifícios nem ablações, nem holocaustos pelos pecados, nem te são agradáveis as coisas que se oferecem segundo a Lei (Heb X, 8).
Mas o Senhor sabe que dar é próprio de enamorados, e Ele mesmo nos indica o que deseja de nós. Não lhe interessam as riquezas, nem os frutos, nem os animais da terra, do mar ou do ar, porque tudo isso lhe pertence. Quer algo íntimo, que temos que entregar-lhe com liberdade: Dá-me, meu filho, o teu coração (Prv XIII, 26). Estamos vendo? Ele não se satisfaz compartilhando: quer tudo. Repito: Não anda procurando as nossas coisas; quer-nos a nós mesmos. Daí - e somente daí - surgem todos os outros presentes que podemos oferecer ao Senhor.
Vamos dar-lhe, portanto, ouro: o ouro fino do espírito de desprendimento do dinheiro e dos meios materiais. Não esqueçamos que são coisas boas, que procedem de Deus. Mas o Senhor dispos que as utilizássemos sem nelas deixar o coração, fazendo-as render em proveito da humanidade.
Os bens da terra não são maus; pervertem-se quando o homem os erige como ídolos e se prostra diante deles; enobrecem-se quando os convertemos em instrumentos a serviço do bem, em uma tarefa cristã de justiça e de caridade. Não podemos correr atrás dos bens materiais como quem vai à busca de um tesouro; nosso tesouro está aqui, reclinado numa manjedoura; é Cristo, e nEle se devem concentrar todos os nossos amores, porque onde estiver o nosso tesouro, lá estará também o nosso coração (Mt VI, 21).
36 Oferecemos incenso: os desejos - que sobem até o Senhor - de levar uma vida nobre, da qual se desprenda o bonus odor Christi (2 Cor II, 15), o perfume de Cristo. Impregnar nossas palavras e ações desse bonus odor é semear compreensão, amizade. Que a nossa vida acompanhe a vida dos demais homens, para que ninguém se encontre ou se sinta só. Nossa caridade deve ser carinho, calor humano.
Assim no-lo ensina Jesus Cristo. Fazia séculos que a humanidade esperava a vinda do Salvador; os profetas haviam-no anunciado de mil maneiras, e - embora grande parte da Revelação de Deus aos homens se tivesse perdido em conseqüência do pecado e da ignorância - até nos confins da terra se conservava o desejo de Deus, a ânsia de redenção.
Chega a plenitude dos tempos e, para levar a cabo essa missão, não aparece um gênio filosófico, como Platão ou Sócrates; não se instala na terra um conquistador poderoso como Alexandre Magno. Nasce um Infante em Belém: É o Redentor do mundo. Mas, antes de falar, ama com obras. Não traz nenhuma fórmula mágica, porque sabe que a salvação que nos oferece tem que passar pelo coração do homem. Suas primeiras ações são risos e choros de criança, sono inerme de um Deus humanado: para nos cativar, para que saibamos acolhê-lo em nossos braços.
Uma vez mais ganhamos consciência do que é o cristianismo. Se o cristão não ama com obras, fracassa como cristão, que é fracassar também como pessoa. Não podemos pensar nos outros homens como se fossem números ou degraus para podermos subir; ou massa para ser exaltada ou humilhada, adulada ou desprezada, conforme os casos. Devemos pensar nos outros - em primeiro lugar nos que estão ao nosso lado - como verdadeiros filhos de Deus que são, com toda a dignidade desse título maravilhoso.
Com os filhos de Deus temos que nos comportar como filhos de Deus: o nosso amor deve ser sacrificado, diário, feito de mil detalhes de compreensão, de sacrifício silencioso, de dedicação que não se percebe. Este é o bonus odor Christi, que fazia dizer aos que viviam entre os nossos primeiros irmãos na fé: Vede como se amam!
Não falo de um ideal utópico. O cristão não é um Tartarin de Tarascon, empenhado em caçar leões onde não os pode encontrar: nos corredores de sua própria casa. Quero falar sempre de uma vida diária e concreta da santificação do trabalho, das relações familiares, da amizade. Se não somos cristãos nesses momentos, quando o seremos? O bom perfume do incenso é o resultado de uma brasa que queima sem espetáculo uma grande quantidade de grãos. O bonus odor Christi faz-se sentir entre os homens, não pelas labaredas de um fogo de palha, mas pela eficácia de um rescaldo de virtudes: a justiça, a lealdade, a fidelidade, a compreensão, a generosidade, a alegria.
37 E, com os Reis Magos, oferecemos também mirra, o sacrifício que não deve faltar na vida cristã. A mirra traz-nos à lembrança a Paixão do Senhor: na Cruz, dão-lhe a beber mirra misturada com vinho (Cfr. Mc XV, 23), e com mirra ungiram seu corpo para a sepultura (Cfr. Ioh XIX, 39). Mas não pensemos que a reflexão sobre a necessidade do sacrifício e da mortificação significa introduzir uma nota de tristeza na festa alegre que hoje celebramos.
Mortificação não é pessimismo nem espírito acre. A mortificação nada vale sem a caridade: por isso devemos procurar mortificações que além de nos fazerem passar pelas coisas da terra com domínio, não mortifiquem os que vivem ao nosso lado. O cristão não pode ser nem um verdugo nem um miserável; é um homem que sabe amar com obras, que prova o seu amor na pedra de toque da dor.
Mas devo dizer outra vez que, em geral, essa mortificação não consistirá em grandes renúncias, que aliás não são frequentes. Há de compor-se de pequenas vitórias: sorrir para quem nos aborrece, negar ao corpo o capricho de uns bens supérfluos, acostumar-se a escutar os outros, fazer render o tempo que Deus põe à nossa disposição... E tantos outros detalhes , aparentemente insignificantes - contrariedades, dificuldades, dissabores - que surgem ao longo do dia sem que os procuremos.
SANCTA MARIA, STELLA ORIENTIS
38 Termino com as palavras do Evangelho de hoje: Entrando na casa, viram o Menino com Maria, sua Mãe. Nossa Senhora não se separa de seu Filho. Os Reis Magos não são recebidos por um rei encimado no seu trono, mas por um Menino nos braços de sua Mãe. Peçamos à Mãe de Deus, que é nossa Mãe, que nos prepare o caminho que conduz à plenitude do amor: Cor Mariae dulcissimum, iter para tutum! Seu doce coração conhece o caminho mais seguro para encontrarmos Cristo.
Os Reis Magos tiveram uma estrela; nós temos Maria, Stella Maris, Stella Orientis, Estrela do mar, Estrela do Oriente. Hoje dizemos-lhe: Santa Maria, Estrela do mar, Estrela da manhã, ajuda os teus filhos. Nosso zelo pelas almas não deve conhecer fronteiras, porque ninguém está excluído do amor de Cristo. Os Reis Magos foram as primícias dos gentios; mas, uma vez consumada a Redenção, já não há judeu nem grego, não há servo nem livre, não há homem nem mulher - não existe discriminação de espécie alguma -, porque todos vós sois um em Jesus Cristo (Gal III, 28).
Nós, cristãos, não podemos ser exclusivistas, nem separar ou classificar as almas; virão muitos do Oriente e do Ocidente (Mt VIII, 11); todos têm lugar no coração de Cristo. Seus braços - voltamos a admirá-lo no Presépio - são de criança, mas são os mesmos que se abrirão na Cruz, atraindo todos os homens a Si (Cfr. Ioh XII, 32).
E o nosso último pensamento vai para esse homem justo, nosso pai e Senhor São José, que, como de costume, passa despercebido na cena da Epifania. Adivinho-o recolhido em contemplação, protegendo com amor o Filho de Deus que, feito homem, foi confiado aos seus cuidados paternais. Com a maravilhosa delicadeza de quem não vive para si, o Santo Patriarca excedeu-se num serviço tão silencioso como eficaz.
Falamos hoje da vida de oração e de ânsias de apostolado. Queremos melhor mestre do que São José? Se quiserdes um conselho, que repito incansavelmente há muitos anos, ite ad Ioseph (Gen XLI, 55), recorrei a São José: ele nos mostrará caminhos concretos e modos humanos e divinos de nos aproximarmos de Jesus. E em breve nos atreveremos, como ele, a segurar nos braços, a beijar, vestir, e cuidar (Da oração a São José, preparatória da Santa Missa no Missal Romano: O felicem virum, beatum Ioseph, cui datum est Deum, quem multi reges voluerunt videre et non viderunt, audire et non audierunt; non solum videre et audire, sed portare, deosculari, vestire et custodire!) deste Menino-Deus que para nós nasceu. Com a homenagem da sua veneração, os Magos ofereceram a Jesus ouro, incenso e mirra; José deu-lhe - por inteiro - o seu coração jovem e enamorado.
« NA OFICINA DE JOSÉ »
(Homilia pronunciada em 19 de Março de 1963)
39 A Igreja inteira reconhece em São José o seu protetor e padroeiro. Ao longo dos séculos, tem-se falado dele sublinhando diversos aspectos da sua vida, continuamente fiel à missão que Deus lhe confiou. Por isso, desde há muitos anos, agrada-me invocá-lo com este título muito íntimo: Nosso Pai e Senhor.
São José é realmente Pai e Senhor: protege e acompanha no seu caminho terreno aqueles que o veneram, como protegeu e acompanhou Jesus enquanto crescia e se tornava homem. Quando se procura ganhar intimidade com ele, descobre-se que o Santo Patriarca é, além disso, Mestre de vida interior, porque nos ensina a conhecer Jesus, a conviver com Ele, a tomar consciência de que fazemos parte da família de Deus. E São José nos dá esses ensinamentos sendo, como foi, um homem comum, um pai de família, um trabalhador que ganhava a vida com o esforço de suas mãos. E este último aspecto reveste-se também de um significado que é para nós motivo de reflexão e de alegria.
Ao celebrarmos hoje a sua festa, quero evocar a sua figura recordando o que dele nos diz o Evangelho, para assim podermos descobrir melhor o que Deus nos transmite através da vida simples do Esposo de Santa Maria.
A FIGURA DE SÃO JOSÉ NO EVANGELHO
40 Tanto São Mateus como São Lucas nos falam de São José como varão que descendia de uma estirpe ilustre: a de Davi e Salomão, reis de Israel. Historicamente, os detalhes desta ascendência são um pouco confusos; não sabemos qual das duas genealogias enumeradas pelos evangelistas diz respeito a Maria - Mãe de Jesus segundo a carne - e qual a José, que era pai do Senhor segundo a lei judaica. Nem sabemos se a cidade natal de José era Belém, onde se recenseou, ou era Nazaré, onde vivia e trabalhava.
Sabemos, porém, que não era uma pessoa rica: era um trabalhador, como milhões de outros homens em todo o mundo; exercia o ofício fatigante e humilde que Deus havia escolhido para Si ao tomar a nossa carne e ao querer viver trinta anos entre nós como outra pessoa qualquer.
A Sagrada Escritura diz-nos que José era artesão. Vários Padres acrescentam que foi carpinteiro. São Justino, referindo a vida de trabalho de Jesus, afirma que fazia arados e jugos (São Justino, Dialogus cum Tryphone, 88, 2, 8 (PG 6, 687)). Baseando-se provavelmente nessas palavras, Santo Isidoro de Sevilha conclui que José era ferreiro. Seja como for, era um operário que trabalhava a serviço de seus concidadãos, que tinha uma habilidade manual, fruto de anos de esforço e de suor.
Das narrações evangélicas depreende-se a grande personalidade humana de José: em nenhum momento surge aos nossos olhos como um homem apoucado ou assustado perante a vida; pelo contrário, sabe enfrentar os problemas, ultrapassar as situações difíceis, assumir com responsabilidade e iniciativa as tarefas que lhe são confiadas.
Não estou de acordo com a forma clássica de representar José como um ancião, ainda que com isso se tenha tido a boa intenção de ressaltar a perpétua virgindade de Maria. Eu imagino-o jovem, forte, talvez com alguns anos mais do que a Virgem, mas na plenitude da vida e do vigor humano.
Para viver a virtude da castidade, não é preciso esperar pela velhice ou pelo termo das energias. A castidade nasce do amor e, para um amor limpo, nem a robustez nem a alegria da juventude representam qualquer obstáculo. Jovem era o coração e o corpo de São José quando contraiu matrimônio com Maria, quando soube do mistério da sua Maternidade divina, quando viveu junto dEla respeitando a integridade que Deus queria oferecer ao mundo, como um sinal mais da sua vinda às criaturas. Quem não for capaz de entender um amor assim, é porque conhece muito mal o verdadeiro amor e desconhece por completo o sentido cristão da castidade.
Como dizíamos, José era um artesão da Galiléia, um homem como tantos outros. E o que pode esperar da vida um habitante de uma aldeia perdida como Nazaré? Apenas trabalho, todos os dias, sempre com o mesmo esforço. E, no fim da jornada, uma casa pobre e pequena, para recuperar as forças e recomeçar a tarefa no dia seguinte.
Mas o nome de José significa em hebreu Deus acrescentará. À vida santa dos que cumprem a sua vontade, Deus acrescenta dimensões inesperadas: o que a torna importante, o que dá valor a tudo - o divino. À vida humilde e santa de José, Deus acrescentou - se assim me é permitido falar - a vida da Virgem Maria e a de Jesus, Senhor Nosso. Deus nunca se deixa vencer em generosidade. José poderia tornar próprias as palavras pronunciadas por Santa Maria, sua Esposa: Quia fecit mihi magna qui potens est, fez em mim coisas grandes Aquele que é Todo-Poderoso, quia respexit humilitatem, porque olhou para a minha pequenez (Lc II, 48-49).
José era efetivamente um homem comum, em quem Deus confiou para realizar grandes coisas. Soube viver - tal e como o Senhor queria - todos e cada um dos acontecimentos que compuseram a sua vida. Por isso, a Santa Escritura louva José afirmando dele que era justo (Cfr. Mt I, 19). E , na língua hebraica, justo quer dizer piedoso, servidor irrepreensível de Deus, cumpridor da vontade divina (Cfr. Gen VII, 1; XVIII, 23-32; Ez XVIII, 5 ss; Prv XII, 10); outras vezes significa bom e caridoso para com o próximo (Cfr. Tob VII, 6; IX, 6). Numa palavra, justo é aquele que ama a Deus e demonstra esse amor cumprindo os mandamentos divinos e orientando toda a vida para o serviço de seus irmãos, os homens.
A FÉ, O AMOR E A ESPERANÇA DE JOSÉ
41 A justiça não consiste na simples submissão a uma regra: a retidão deve nascer de dentro, deve ser profunda, vital, porque o justo vive da fé (Hab II, 4). Viver da fé: essas palavras, que mais tarde foram tema frequente de meditação para o Apóstolo Paulo vêem-se amplamente realizadas em São José. Seu cumprimento da vontade de Deus não é rotineiro nem formalista, mas espontâneo e profundo. A lei, que todo o judeu praticante observava, não foi para ele um simples código nem uma fria recopilação de preceitos, mas expressão da vontade do Deus vivo. Por isso soube reconhecer a voz do Senhor quando lhe foi manifestada de forma inesperada e surpreendente.
A história do Santo Patriarca foi uma vida simples, mas não uma vida fácil. Depois de momentos angustiantes, fica sabendo que o filho de Maria foi concebido por obra do Espírito Santo. E esse Menino, Filho de Deus, descendente de Davi segundo a carne, nasce numa gruta. Os anjos celebram o seu nascimento, e personalidades de terras longínquas vêm adorá-lo. Mas o rei da Judéia deseja a sua morte, e torna-se necessário fugir. O Filho de Deus é, aparentemente, um menino indefeso, que terá de viver no Egito.
42 Ao narrar estas cenas no seu Evangelho, São Mateus salienta constantemente a fidelidade de José, que cumpre sem hesitações os mandatos de Deus, mesmo que algumas vezes o sentido desses mandatos lhe possa parecer obscuro ou sem conexão com o resto dos planos divinos.
Frequentes vezes os Padres da Igreja e os autores espirituais ressaltam essa firmeza da fé de São José. Referindo-se às palavras do Anjo, que o manda fugir de Herodes e refugiar-se no Egito (Cfr. Mt II, 13), o Crisóstomo comenta: Ao ouvir isto, José não se escandalizou nem disse: isto parece um enigma. Ainda há pouco me davas a conhecer que Ele salvaria o seu povo, e agora não é capaz de se salvar a si mesmo, como somos nós que temos de fugir, que empreender uma viagem e sofrer uma longa mudança: isto é contrário à tua promessa. José não raciocina desse modo, porque é um varão fiel. Também não pergunta pela data do regresso, apesar de o Anjo a ter deixado indeterminada, posto que lhe tinha dito: permanece lá - no Egito - até que eu te avise. Nem por isso levanta dificuldades, mas obedece, e crê, e suporta todas as provas alegremente (São João Crisóstomo, In matthaeum homiliae, 8, 3 (PG 57, 85)).
A fé de José não vacila. Sua obediência é sempre estrita e rápida. Para compreendermos melhor esta lição que aqui nos dá o Santo Patriarca, cumpre considerarmos que a sua fé é ativa e que a sua docilidade não se assemelha à obediência de quem se deixa arrastar pelos acontecimentos. Porque a fé cristã é o que há de mais oposto ao conformismo ou à passividade e à apatia interiores.
José abandonou-se sem reservas nas mãos de Deus, mas nunca se recusou a refletir sobre os acontecimentos, e assim pôde alcançar do Senhor esse grau de compreensão das obras de Deus que é a verdadeira sabedoria. Desse modo, aprendeu pouco a pouco que os planos sobrenaturais têm uma coerência divina, embora às vezes estejam em contradição com os planos humanos.
Nas diversas circunstâncias de sua vida, o Patriarca não renuncia a pensar nem desiste da sua responsabilidade. Pelo contrário, coloca toda a sua experiência humana a serviço da fé. Quando volta do Egito, ouvindo que Arquelau reinava na Judéia em lugar de seu pai Herodes, temeu ir para lá (Mt II, 2). Aprendeu a mover-se dentro do plano divino e, como confirmação de que seus pensamentos vão de encontro com o que Deus realmente quer, recebe indicação de se retirar para a Galiléia.
Assim foi a fé de José: plena, confiante, íntegra, manifestada numa entrega eficaz à vontade de Deus, numa obediência inteligente. E, junto com a fé, a caridade, o amor. Sua fé funde-se com o Amor: com o Amor a um Deus que estava cumprindo as promessas feitas a Abraão, a Jacó, a Moisés; com o carinho de esposo para com Maria, e com o carinho de pai para com Jesus. Fé e amor na esperança da grande missão que Deus, servindo-se dele também - um carpinteiro da Galiléia -, estava iniciando no mundo: a redenção dos homens.
43 Fé, amor, esperança: estes são os eixos da vida de São José e os de toda a vida cristã. A entrega de São José aparece-nos urdida por um entrelaçado de amor fiel, de fé amorosa, de esperança confiante. A sua fé é, por isso, uma boa oportunidade para que todos renovemos a nossa entrega à vocação de cristãos que o Senhor concedeu a cada um.
Quando se deseja sinceramente viver de fé, de amor e de esperança, a renovação da entrega não significa retomar uma coisa que estava em desuso. Quando há fé, amor e esperança, renovar-se significa conservar-se nas mãos de Deus, apesar dos erros pessoais, das quedas, das fraquezas: é confirmar um caminho de fidelidade. Renovar a entrega, repito, é renovar a fidelidade àquilo que o Senhor quer de nós: é amar com obras.
O amor tem necessariamente as suas manifestações características. Ás vezes, fala-se do amor como se fosse um impulso para a satisfação própria, ou um simples recurso para completarmos em moldes egoístas a nossa personalidade. E não é assim: o amor verdadeiro é sair de si mesmo, entregar-se. O amor traz consigo a alegria, mas é uma alegria com as raízes em forma de cruz. Enquanto estivermos na terra e não tivermos chegado à plenitude da vida futura, não pode haver amor verdadeiro sem a experiência do sacrifício, da dor. Uma dor que se saboreia, que é amável, que é fonte de íntima alegria, mas que é dor real, porque supõe vencer o egoísmo e tomar o amor como regra de todas e cada uma de nossas ações.
44 As obras do amor são sempre grandes, mesmo que se trate de coisas aparentemente pequenas. Deus aproximou-se dos homens, pobres criaturas, e disse-nos que nos ama: Deliciae meae esse cum filiis hominum (Prv VIII, 31), minhas delícias são estar com os filhos dos homens. O Senhor mostra-nos que tudo tem importância: as ações que, com olhos humanos, consideramos extraordinárias; essas outras que, pelo contrário, qualificamos como algo de pouca categoria. nada se perde. nenhum homem é desprezado por Deus. Todos nós, cada um seguindo a sua própria vocação - no seu lar, na sua profissão ou ofício, no cumprimento das obrigações que lhe competem por seu estado, nos seus deveres de cidadão, no exercício d os seus direitos -, todos somos chamados a participar do reino dos céus.
É o que nos ensina a vida de São José: simples, normal e comum, feita de anos de trabalho sempre igual, de dias humanamente monótonos, que se sucedem uns aos outros. Tenho pensado muitas vezes nesse aspecto, ao meditar sobre a figura de São José, e esta é uma das razões que me fazem sentir uma devoção especial por ele.
Quando, no seu discurso de encerramento da primeira sessão do Concílio Vaticano II, no passado dia 8 de Dezembro, o Santo Padre João XXIII anunciou que no cânon da missa se mencionaria o nome de São José, uma altíssima personalidade eclesiástica telefonou-me imediatamente para me dizer: Rallegramenti! Felicitações! Ao escutar a notícia pensei imediatamente no senhor, na alegria que lhe deve ter causado. Era verdade: porque na assembléia conciliar, que representa a Igreja inteira reunida no Espírito Santo, proclamava-se o imenso valor sobrenatural da vida de São José, o valor de uma vida simples de trabalho feito diante de Deus, em total cumprimento da vontade divina.
SANTIFICAR O TRABALHO, SANTIFICAR-SE NO TRABALHO, SANTIFICAR COM O TRABALHO
45 Descrevendo o espírito da associação a que dediquei a minha vida - o Opus Dei - tenho dito que se apóia, como que em seu eixo, no trabalho diário, no trabalho profissional exercido no meio do mundo. A vocação divina confere-nos uma missão, convida-nos a participar na tarefa única da Igreja, para sermos assim testemunhas de Cristo perante os nossos iguais, os homens, e levarmos todas as coisas para Deus.
A vocação acende uma luz que nos faz reconhecer o sentido da nossa existência. É convencermo-nos, sob o resplendor da fé, do porquê da nossa realidade terrena. Nossa vida - a presente, a passada e a que há de vir - ganha um novo relevo, uma profundidade de que antes não suspeitávamos. Todos os fatos e acontecimentos passam a ocupar o seu verdadeiro lugar: entendemos para onde o Senhor nos quer conduzir e nos sentimos como que avassalados por essa tarefa que Ele nos confia.
Deus tira-nos das trevas da nossa ignorância, do nosso caminhar incerto por entre as vicissitudes da história, e, seja qual for o posto que ocupemos no mundo, chama-nos com voz forte, como o fez um dia com Pedro e com André: Venite post me, et faciam vos fieri piscatores hominum (Mt IV, 19), segui-me e eu vos tornarei pescadores de homens.
Quem vive da fé pode encontrar a dificuldade e a luta, a dor e até a amargura, mas nunca cairá no desânimo ou na angústia, pois sabe que a sua vida tem valor, sabe para que veio a esta terra. Ego sum lux mundi - exclamou Cristo -; qui sequitur me non ambulat in tenebris, sed habebit lumen vitae (Ioh VIII, 12): Eu sou a luz do mundo; aquele que me segue não caminha nas trevas, mas possuirá a luz da vida.
Para merecermos essa luz de Deus, precisamos amar, reconhecer humildemente a necessidade de sermos salvos, e dizer com Pedro: Senhor, a quem iremos? Tu tens palavras de vida eterna. E nós cremos e conhecemos que Tu és Cristo, o Filho de Deus (Ioh VI, 70). Se agirmos assim de verdade, se deixarmos a chamada divina penetrar no nosso coração, também com verdade poderemos repetir que não caminhamos nas trevas, pois, por cima das nossas misérias e dos nossos defeitos pessoais brilha a luz de Deus, como o sol brilha por cima da tempestade.
46 A fé e a vocação de cristãos afetam toda a nossa existência, não apenas uma parte. As relações com Deus são necessariamente relações de entregam, e assumem um sentido de totalidade. A atitude do homem de fé é olhar para a vida, em todas as suas dimensões, sob uma perspectiva nova: a que Deus nos dá.
Todos vós que hoje celebrais comigo esta festa de São José, sois homens dedicados ao trabalho nas mais diversas profissões humanas, fazeis parte dos lares mais diversos, pertenceis a tão diferentes nações, raças e línguas. Fostes educados em centros de ensino, em oficinas ou em escritórios, exercestes a vossa profissão durante anos, travastes relações profissionais e pessoais com os vossos companheiros, participastes na solução dos problemas coletivos das vossas empresas e da vossa sociedade.
Pois bem: recordo-vos uma vez mais que nada disso é alheio aos planos divinos. A vossa vocação humana é parte, e parte importante, da vossa vocação divina. Esta é a razão pela qual tendes que vos santificar - contribuindo ao mesmo tempo para a santificação dos outros, dos vossos iguais - precisamente santificando o vosso trabalho e o vosso ambiente: essa profissão ou ofício que preenche vossos dias, que dá uma fisionomia peculiar à vossa personalidade humana, que é a vossa maneira de estar no mundo; esse lar, a vossa família; a essa nação em que nascestes e que amais.
47 O trabalho acompanha inevitavelmente a vida do homem sobre a terra. Com ele aparecem o esforço, a fadiga, o cansaço, manifestações da dor e da luta que fazem parte da nossa existência humana atual, e que são sinais da realidade do pecado e da necessidade de redenção. Mas o trabalho em si não é uma pena, nem uma maldição ou um castigo: aqueles que falam assim não leram bem a Sagrada Escritura.
É hora de que todos nós, cristãos, anunciemos bem alto que o trabalho é um dom de Deus, e que não faz nenhum sentido dividir os homens em diferentes categorias, conforme os tipos de trabalho, considerando umas ocupações mais nobres do que as outras. O trabalho, todo o trabalho, é testemunho da dignidade do homem, do seu domínio sobre a criação; é meio de desenvolvimento da personalidade; é vínculo de união com os outros seres; fonte de recursos para o sustento da família; meio de contribuir para o progresso da sociedade em que se vive e para o progresso de toda a humanidade.
Para um cristão, essas perspectivas alargam-se e ampliam-se, porque o trabalho se apresenta como participação na obra criadora de Deus que, ao criar o homem, o abençoou dizendo: Crescei e multiplicai-vos, e enchei a terra e submetei-a, e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves do céu, e sobre todos os animais que se movem sobre a terra (Gen I, 28). E porque, além disso, ao ser assumido por Cristo, o trabalho se nos apresenta como realidade remida e redentora: não é apenas a esfera em que o homem se desenvolve mas também meio e caminho de santidade, realidade santificável e santificadora.
48 Convém não esquecer, portanto, que essa dignidade do trabalho se baseia no Amor. O grande privilégio do homem é poder amar, transcendendo assim o efêmero e o transitório. O homem pode amar as outras criaturas, dizer um "tu" e um "eu" cheios de sentido. E pode amar a Deus, que nos abre as portas do céu, que nos constitui membros da sua família, que nos autoriza falar-lhe também de tu a Tu, face a face.
Por isso, o homem não se deve limitar a fazer coisas, a construir objetos. O trabalho nasce do amor, manifesta o amor, orienta-se para o amor. Reconhecemos Deus não apenas no espetáculo da natureza, mas também na experiência do nosso próprio trabalho, no nosso esforço. O trabalho é assim oração, ação de graças, porque nos sabemos colocados na terra por Deus, amados por Ele, herdeiros de suas promessas. É justo que o Apóstolo nos diga: Quer comais, quer bebais, ou façais qualquer outra coisa, fazei tudo para a glória de Deus (1 Cor X, 31).
49 O trabalho profissional é também apostolado, ocasião de entrega aos outros homens, o momento de lhes revelar Cristo e levá-los a Deus Pai; é conseqüência da caridade que o Espírito Santo derrama nas almas. Entre as indicações que São Paulo dá aos Efésios, sobre o modo como se deve manifestar a mudança que neles operou a conversão, a sua chamada ao cristianismo, encontramos esta: Aquele que furtava não furte mais, mas trabalhe, ocupando-se com suas mãos em qualquer coisa honesta, afim de ter com que ajudar a quem esteja em necessidade (Eph IV, 28). Os homens têm necessidade do pão da terra para sustentar as suas vidas, e também do pão do céu para iluminar e dar calor aos seus corações. Com o nosso próprio trabalho, com as iniciativas que possamos promover a partir das nossas ocupações, nas nossas conversas, no convívio com os outros, podemos e devemos concretizar esse preceito apostólico.
Se trabalhamos com esse espírito, a nossa vida, no meio das limitações próprias da condição terrena, sem uma antecipação da glória do céu, dessa comunidade com Deus e com os santos, onde reinam somente o amor, a entrega, a felicidade, a amizade a alegria. Na ocupação profissional diária e comum encontraremos a matéria - real, consistente, valiosa - para realizarmos toda a vida cristã, para atualizarmos a graça nos vem de Cristo.
Nessa tarefa profissional, exercida de olhos postos em Deus, entrarão em jogo a fé, a esperança e a caridade. As vicissitudes, as relações e os problemas próprios do trabalho alimentarão a nossa oração. O esforço necessário para levar a cabo as tarefas diárias será ocasião de vivermos essa Cruz que é essencial a todo o cristão. A experiência da nossa fraqueza, os malogros que existem sempre em qualquer esforço humano, dar-nos-ão mais realismo, mais humildade, mais compreensão com os outros. Os êxitos e as alegrias convidar-nos-ão a dar graças e a pensar que não vivemos para nós mesmos, mas para o serviço dos outros e de Deus.
PARA SERVIR, SERVIR
50 Para viver assim, para santificar a profissão, é necessário em primeiro lugar trabalhar bem, com seriedade humana e sobrenatural. Quero recordar aqui, por contraste, um desses antigos relatos dos evangelhos apócrifos: O pai de Jesus, que era carpinteiro, fazia arados e jugos. Certa vez - continua a narrativa - uma pessoa de boa reputação encomendou-lhe uma cama. Mas aconteceu que um dos varais era mais curto que o outro, e José não sabia o que fazer. Então o Menino Jesus disse a seu pai: põe os dois paus no chão e alinha-os por uma das extremidades. José assim fez. Jesus colocou-se do outro lado , pegou no varal mais curto e esticou-o, deixando-o tão comprido quanto o outro. José , seu pai, encheu-se de admiração ao ver o prodígio e cobriu o Menino de abraços e beijos, dizendo: feliz de mim, porque Deus me deu esta Menino (Evangelho da infância, falsamente atribuido ao Apóstolo Tomé, n. 13, em Os Evangelhos apócrifos, edição de A. Santos Otero, Madri 1956, pgs. 314-315).
José não podia dar graças a Deus por tais motivos; seu trabalho não podia ser dessa espécie. São José não é o homem das soluções fáceis e milagreiras, mas o homem da perseverança, do esforço e - quando necessário - do engenho. O cristão sabe que Deus faz milagres: que os fez há séculos, que continuou a fazê-los depois e que continua a fazê-los agora porque non est abbreviata manus Domini (Is LIX, 1), o poder de Deus não diminuiu.
Mas os milagres são uma manifestação da onipotência salvadora de Deus, não um expediente para remediar as conseqüências da inépcia ou para favorecer o nosso comodismo. O milagre que o Senhor nos pede é a perseverança na vocação cristã e divina, a santificação do trabalho de cada dia: o milagre de converter a prosa diária em decassílabos, em verso heróico, pelo amor com que desempenhamos as ocupações habituais. Deus nos espera aí, de tal forma que sejamos almas com senso de responsabilidade, com preocupação apostólica, com competência profissional.
Para isso, como lema para o trabalho de cada um, posso indicar este: Para servir, servir. Porque, para fazer as coisas, é preciso antes de mais nada saber terminá-las. Não acredito na retidão de intenção de quem não se esforça por alcançar a competência necessária para cumprir bem as tarefas que lhe são confiadas. Não basta querer fazer o bem; é preciso saber fazê-lo. E, se realmente queremos, esse desejo traduzir-se-á no empenho em utilizar os meios adequados para deixar as coisas acabadas, com perfeição humana.
51 Mas esse serviço humano, essa capacidade que poderíamos chamar técnica, esse saber realizar o ofício próprio, deve, além disso, estar informado por uma característica que foi fundamental no trabalho de São José e que devia ser fundamental em todo o cristão: o espírito de serviço, o desejo de trabalhar com o fim de contribuir para o bem dos demais homens. O trabalho de São José não foi um trabalho que visasse a auto-afirmação, embora a dedicação a uma vida operativa tivesse forjado nele uma personalidade amadurecida, bem delineada. O Patriarca trabalhava com a consciência de estar cumprindo a vontade de Deus, pensando no bem dos seus, Jesus e Maria, e tendo em vista o bem dos habitantes da pequena Nazaré.
Em Nazaré, José devia ser um dos poucos artesãos, se não o único. Possivelmente carpinteiro. Mas, como costuma acontecer nas pequenas povoações, também devia ser capaz de fazer outras coisas; pôr em andamento um moinho que não funcionava, ou consertar antes do inverno as fendas de um teto. José tirar muita gente de dificuldades, com um trabalho bem acabado. Seu trabalho profissional era uma ocupação orientada para o serviço, tinha em vista tornar mais grata a vida das outras famílias da aldeia; e far-se-ia acompanhar de um sorriso, de uma palavra amável, de um comentário dito como que de passagem, mas que devolve a fé e a alegria a quem está prestes a perdê-las.
52 Às vezes, quando se tratasse de pessoas mais pobres do que ele, José devia trabalhar aceitando em troca alguma coisa de pouco valor, que deixasse a outra pessoa com a satisfação de pensar que tinha pago. Normalmente cobraria o que fosse razoável, nem mais nem menos. Saberia exigir o que em justiça lhe era devido, já que a fidelidade a Deus não pode significar a renúncia a direitos que na realidade são deveres: São José tinha de exigir o que era justo, pois com a recompensa desse trabalho precisava sustentar a Família que Deus lhe havia confiado.
Exigir os direitos que nos assistem não deve ser fruto de egoísmo individualista. Não se ama a justiça se não se deseja vê-la estendida aos outros. Como também não é lícito encerrar-se numa religiosidade cômoda, esquecendo as necessidades alheias. Quem deseja ser justo aos olhos de Deus esforça-se também por fazer com que se pratique de fato a justiça entre os homens. E não apenas pelo bom motivo de que não se injurie o nome de Deus, mas porque ser cristão significa acolher todas as instâncias nobres que existem no ser humano. Parafraseando um conhecido texto do Apóstolo São João (Cfr. 1 Ioh IV, 20), podemos dizer que quem se proclama justo com Deus, mas não é justo com os outros homens, é um mentiroso: e a verdade não habita nele.
Como todos os cristãos que viveram aquele momento, também eu recebi com emoção e alegria a decisão de celebrar a festa litúrgica de São José Operário. Essa festa, que é uma canonização do valor divino do trabalho, mostra como a Igreja, na sua vida coletiva e pública, se faz eco das verdades centrais do Evangelho, que Deus deseja ver especialmente meditadas nos nossos dias.
53 Já falamos muito deste tema em outras ocasiões, mas permito-me insistir de novo na naturalidade e na simplicidade da vida de São José, que não se distanciava de seus vizinhos nem levantava barreiras desnecessárias.
Por isso, embora em alguns momentos ou situações isso possa ser conveniente, normalmente não gosto de falar de operários católicos, de engenheiros católicos, de médicos católicos, etc., como se se tratasse de uma espécie dentro de um gênero, como se os católicos formassem um grupinho separado dos outros, dando assim a sensação de que existe um fosso entre os cristãos e o resto da humanidade. Respeito a opinião contrária, mas penso que é muito mais correto falar de operários que são católicos ou de católicos que são operários; de engenheiros que são católicos ou de católicos que são engenheiros; porque o homem que tem fé e que exerce uma profissão intelectual, técnica ou manual, é e sente-se unido aos outros, igual aos outros, com os mesmos direitos e obrigações, com o mesmo desejo de progredir, com o mesmo anseio de enfrentar os problemas comuns e de encontrar solução para eles.
Assumindo todos esses aspectos, o católico saberá fazer da sua vida diária um testemunho de fé, de esperança e de caridade; testemunho simples, normal, sem necessidade de manifestações espetaculares, pondo de manifesto - com a coerência de sua vida - a presença constante da Igreja no mundo, já que todos os católicos são eles mesmos igreja, são membros, com pleno direito, do único Povo de Deus.
O CONVÍVIO DE JOSÉ COM JESUS
54 Desde há muito tempo gosto de recitar uma comovente invocação a São José, que a própria Igreja nos propõe, entre as orações preparatórias da missa: José, varão bem-aventurado e feliz, a quem foi concedido ver e ouvir o Deus que muitos reis quiseram ver e ouvir, e não viram nem ouviram; e não apenas vê-lo e ouvi-lo, mas também segurá-lo nos braços, beijá-lo, vesti-lo e guardá-lo: rogai por nós. Esta oração nos servirá para entrar no último tema que hoje queria tocar: o convívio íntimo entre José e Jesus.
Para São José, a vida de Jesus foi uma continua descoberta da sua própria vocação. Recordávamos atras aqueles primeiros anos cheios de circunstâncias aparentemente contraditórias: glorificação e fuga, majestade dos Magos e pobreza do presépio, cântico dos Anjos e silêncio dos homens. Quando chega o momento de apresentar o Menino no Templo, José que leva a modesta oferenda de um par de pombos, vê Simeão e Ana proclamarem que Jesus é o Messias. E seu pai e sua mãe escutavam com admiração (Lc II, 33), diz São Lucas. Mais tarde, quando o Menino fica no Templo sem que Maria e José o saibam, ao encontrá-lo novamente depois de o procurarem por três dias, o mesmo evangelista diz que se maravilharam (Lc II, 48).
José surpreende-se, José admira-se. Deus vai-lhe revelando os seus desígnios e ele esforça-se por entendê-los. Como toda alma que queira seguir Jesus de perto, descobre imediatamente que não é possível andar com passo cansado nem persistir na rotina . Deus não se conforma com a estabilidade no nível atingido, com o descanso naquilo que já se tem. Deus exige continuamente mais e mais, e seus caminhos não são os nossos caminhos humanos. Como nenhum outro homem antes ou depois dele, São José aprendeu de Jesus a permanecer atento às maravilhas de Deus, a ter a alma e o coração abertos.
55 Mas se José aprendeu de Jesus a viver de um modo divino, atrever-me-ia a dizer que, sob o aspecto humano, ensinou muitas coisas ao Filho de Deus. Há qualquer coisa que não acabo de gostar no título de pai adotivo com que às vezes se designa José, porque oferece o perigo de sugerir que suas relações com Jesus eram frias e externas. Certamente a nossa fé nos diz que José não era pai segundo a carne, mas essa não é a única paternidade possível.
A José não só se deve o nome de pai - lemos num sermão de Santo Agostinho -, como se deve mais a ele do que a qualquer outro. E acrescenta: De que forma era pai? Tanto mais profundamente era pai, quanto mais casta foi a sua paternidade. Alguns pensavam que era pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, tal como são pais os outros, os que geram segundo a carne, e não recebem seus filhos somente como fruto do seu afeto espiritual. Por isso diz São Lucas: pensava-se que era pai de Jesus. Porque diz apenas que se pensava? Porque o pensamento e o juízo humanos se referem àquilo que costuma acontecer com os homens. E o Senhor não nasceu do germe de José. Mas à piedade e à caridade de José nasceu um filho da Virgem Maria, que era Filho de Deus (Santo Agostinho, Sermo 51, 20 (PL 38, 351)).
José amou Jesus como um pai ama o seu filho, dando-lhe tudo o que tinha de melhor. Cuidou daquele Menino como lhe tinha sido ordenado, e fez dele um artesão: transmitiu-lhe o seu ofício. Por isso os vizinhos de Nazaré se referiam a Jesus indistintamente como faber e fabri filius (Mc VI, 3; Mt XIII, 55): artesão e filho do artesão. Jesus trabalhou na oficina de José e junto de José. Como seria José, como teria atuado nele a graça, para ser capaz de desempenhar a tarefa de educar o Filho de Deus nos aspectos humanos?
Porque Jesus devia parecer-se com José: no modo de trabalhar, nos traços do se caráter, na maneira de falar. No realismo de Jesus, no seu espírito de observação, no seu modo de se sentar à mesa e de partir o pão, no seu gosto em expor a doutrina de maneira concreta, tomando como exemplo as coisas da vida corrente, reflete-se o que foi a infância e a juventude de Jesus e, portanto, o seu convívio com José.
Não é possível desconhecer a sublimidade do mistério. Esse Jesus que é homem, que fala com o sotaque de uma região determinada de Israel, que se parece com um artesão chamado José, esse é o Filho de Deus. E quem pode ensinar alguma coisa a Deus? Mas é realmente homem, e vive normalmente: primeiro como criança, depois como adolescente, ajudando na oficina de José; finalmente como homem maduro, na plenitude da idade. Jesus crescia em sabedoria, em idade e em graça, diante de Deus e dos homens (Lc II, 52).
56 Nas coisas humanas, José foi mestre de Jesus; conviveu diariamente com Ele, com carinho delicado, e cuidou dEle com abnegação alegre. Não será esta uma boa razão para considerarmos esse varão justo, esse Santo Patriarca, em quem culmina a fé da Antiga Aliança, como mestre de vida interior? A vida interior não é outra coisa senão uma relação de amizade assídua e íntima com Cristo, para nos identificarmos com Ele. E José saberá dizer-nos muitas coisas sobre Jesus. por isso, não abandonemos nunca a devoção que lhe dedicamos: Ite ad Ioseph, ide a José, como diz a tradição cristã, servindo-se de uma frase tirada do Antigo Testamento (Gen XLI, 55).
Mestre de vida interior, trabalhador empenhado no seu ofício, servidor fiel de Deus, em relação contínua com Jesus: este é José. Ite ad Ioseph. Com São José, o cristão aprende o que significa pertencer a Deus e estar plenamente entre os homens, santificando o mundo. Procuremos a intimidade com José, e encontraremos Maria, que encheu sempre de paz a amável oficina de Nazaré.
« A CONVERSÃO DOS FILHOS DE DEUS »
(Homilia pronunciada em 2 de Março de 1952, I Domingo da Quaresma)
57 Entramos no tempo da Quaresma: tempo de penitência, de purificação, de conversão. Não é tarefa fácil, O cristianismo não é um caminho cômodo: não basta estar na Igreja e deixar que os anos passem. Na nossa vida, na vida dos cristãos, a primeira conversão - esse momento único, que cada um de nós recorda, e em que se percebe claramente tudo o que o Senhor nos pede - é importante; mas ainda mais importantes, e mais difíceis, são as sucessivas conversões. E para facilitar o trabalho da graça divina com estas conversões sucessivas, é preciso conservar a alma jovem, invocar o Senhor, saber escutar, descobrir o que vai mal, pedir perdão.
Invocabit me et ego exaudiam eum, lemos na liturgia deste Domingo (Ps XC, 15 (Intróito da Missa)): se me invocardes, eu vos escutarei, diz o Senhor. Devemos considerar esta maravilha que são os cuidados que Deus tem conosco, sempre disposto a ouvir-nos, atento em cada instante à palavra do homem. Seja em que tempo for - mas agora, de um modo especial, porque o nosso coração está bem disposto, decidido a purificar-se -, Ele nos escuta, e não deixará de atender às súplicas de um coração contrito e humilhado (Ps L, 19).
O Senhor escuta-nos para intervir, para penetrar na nossa vida, para nos livrar do mal e cumular-nos de bem. Eripiam eum et glorificabo eum (Ps XC, 15 (Intróito da Missa)), eu o livrarei e o glorificarei, diz do homem. Portanto, esperança de glória. E aqui temos, como em outras ocasiões, o começo desse movimento íntimo que é a vida espiritual. A esperança dessa glorificação acentua a nossa fé e estimula a nossa caridade. E desse modo se põem em movimento as três virtudes teologais, virtudes divinas que nos assemelham ao nosso Pai-Deus.
Haverá melhor maneira de começarmos a Quaresma? Renovamos a fé, a esperança, a caridade. Esta é a fonte do espírito de penitência, do desejo de purificação. A Quaresma não é apenas uma ocasião de intensificarmos as nossas práticas externas de mortificação; se pensássemos que é apenas isso, escapar-nos-ia o sentido mais profundo na vida cristã, porque esses atos externos - repito - são fruto da fé, da esperança e do amor.
A ARRISCADA SEGURANÇA DO CRISTÃO
58 Qui habitat in adiutorio Altissimi, in protectione Dei coeli commorabitur (Ps XC, 1 (Intróito da Missa)). Habitar sob a proteção de Deus, viver com Deus: esta é a arriscada segurança do cristão. Precisamos persuadir-nos de que Deus nos ouve, de que está com os olhos postos em nós; assim se inundará de paz o nosso coração. Mas viver com Deus é indubitavelmente correr risco porque o Senhor não se satisfaz compartilhando: quer tudo. E aproximar-se um pouco mais dEle significa estarmos dispostos a uma nova conversão, a uma nova retificação, a escutar mais atentamente as suas inspirações, os santos desejos que faz brotar na alma, e a pô-los em prática.
Desde a nossa primeira decisão consciente de vivermos integralmente a doutrina de Cristo, não há dúvida de que avançamos muito no caminho da fidelidade à sua Palavra. Mas não é verdade que ainda restam tantas coisas por fazer? Não é verdade que resta sobretudo tanta soberba? É precisa, sem dúvida, uma nova mudança, uma lealdade mais plena, uma humildade mais profunda, de modo que, diminuindo o nosso egoísmo, Cristo cresça em nós, já que illum oportet crescere, me autem minui (Ioh III, 30), é preciso que Ele cresça e eu diminua.
Não é possível ficarmos imóveis. Temos que avançar em direção à meta apontada por São Paulo: Não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim (Gal II, 20). A ambição é alta e nobilíssima: a identificação com Cristo , a santidade. Mas não existe outro caminho, se desejamos ser coerentes com a vida divina que Deus fez nascer em mossas almas pelo Batismo. Avançar é progredir na santidade; e negar-se ao desenvolvimento normal da vida cristã é retroceder. Porque o fogo do amor de Deus precisa ser alimentado, crescer cada dia, ganhar raízes na alma: e o fogo mantém-se vivo quando se queimam coisas novas. por isso, se não se aumenta, leva caminho de extinguir-se. Lembremo-nos das palavras de Santo Agostinho: Se disseres basta, estás perdido. Procura sempre mais, caminha sempre, progride sempre. Não permaneças no mesmo lugar, não retrocedas, não te desvies (Santo Agostinho, Sermo 169, 15 (PL 38, 926)).
A Quaresma coloca-nos agora diante destas perguntas fundamentais: progrido na minha fidelidade a Cristo, em desejos de santidade, em generosidade apostólica na minha vida diária, no meu trabalho quotidiano, entre meus colegas de profissão?
Cada um deve responder a essas perguntas sem ruído de palavras. E perceberá como é necessária uma nova transformação, para que Cristo viva em nós, para que a sua imagem se reflita sem distorções em nossa conduta.
Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz cada dia e siga-me (Lc IX, 23). Isso é o que Cristo nos repete ao ouvido, intimamente: a Cruz, Não apenas - escreve São Jerônimo - no tempo da perseguição, ou quando se apresenta a possibilidade do martírio, mas em todas as situações, em todas as obras, em todos os pensamentos, em todas as palavras, neguemos aquilo que antes éramos e confessemos o que agora somos, já que renascemos em Cristo (São Jerônimo, Epístola 121, 3 (PL 22, 1013)).
Essas considerações não são, afinal, senão o eco daquelas outras palavras do Apóstolo: É verdade que outrora éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor. Comportai-vos como filhos da luz, porque o fruto da luz consiste em caminhar com toda a vontade e justiça e verdade: procurando o que é agradável ao Senhor (Eph V, 8-10).
A conversão é obra de um instante; a santificação é tarefa de toda a vida. A semente divina da caridade, que Deus depositou em nossas almas, aspira a crescer, a manifestar-se em obras, a dar frutos que correspondam em cada momento ao que é agradável ao Senhor. Por isso é indispensável que estejamos dispostos a recomeçar, a reencontrar - nas novas situações de nossa vida - a luz e o impulso da primeira conversão. Esta é a razão pela qual nos devemos preparar com um exame profundo, pedindo ajuda ao Senhor, para que possamos conhecê-lo melhor e conhecer-nos melhor. Não existe outro caminho, se queremos converter-nos de novo.
O TEMPO OPORTUNO
59 Exhortamur ne in vacuum gratiam Dei recipiatis (II Cor VI, 1 (Epístola da Missa)), nós vos exortamos a não receber em vão a graça de Deus. Porque a graça divina pode penetrar em nossas almas nesta Quaresma, se não fecharmos as portas do coração. Precisamos cultivar as boas disposições, o desejo de nos transformarmos a sério, de não brincar com a graça do Senhor.
Não me agrada falar de temor, porque o que move o cristão é a Caridade de Deus, que nos foi manifestada em Cristo, e que nos ensina a amar todos os homens e a criação inteira. Mas devemos sem dúvida falar de responsabilidade, de seriedade: Não queirais enganar-vos a vós mesmos; com Deus não se brinca (Gal VI, 7), adverte-nos o mesmo Apóstolo.
É preciso decidir-se. Não é lícito viver mantendo acesas. como diz o povo, uma vela a São Miguel e outra ao diabo. É preciso apagar a vela do diabo. Temos que assumir a nossa vida fazendo-a arder por completo ao serviço do Senhor. Se o nosso propósito de santidade for sincero, se tivermos a docilidade de nos abandonarmos nas mãos de Deus, tudo correrá bem. Porque Ele está sempre disposto a dar-nos a sua graça e, especialmente neste tempo, a graça para uma nova conversão, para uma melhora na nossa vida de cristãos.
Não podemos considerar esta Quaresma como uma época a mais, como uma simples repetição cíclica do tempo litúrgico. Este momento é único ; e uma ajuda divina que temos que aproveitar. Jesus passa ao nosso lado e espera de nós - hoje, agora - uma grande mudança.
Ecce nunc tempus acceptabile, ecce nunc dies salutis (II Cor VI, 2 (Epístola da Missa)); este é o tempo oportuno, este pode ser o dia da salvação. Ouvem-se novamente os silvos do Bom Pastor, seu chamado carinhoso: Ego vocavi te nomine tuo (Is XLIII, 1). Chama-nos a cada um pelo nosso nome, pelo apelativo familiar com que nos chamam as pessoas que nos amam. A ternura de Jesus por nós não se pode traduzir em palavras.
Consideremos juntos essa maravilha do amor de Deus: o Senhor vem ao nosso encontro, espera por nós, coloca-se à beira do caminho, para que tenhamos que vê-lo necessariamente. E chama-nos pessoalmente, falando-nos das nossas coisas, que são também suas, movendo a nossa consciência à compunção, abrindo-a à generosidade, imprimindo em nossas almas o desejo de sermos fiéis, de nos podermos chamar seus discípulos. Basta percebermos estas íntimas palavras da graça - que muitas vezes são como uma censura afetuosa -, para nos darmos conta de que Ele não nos esqueceu durante todo o tempo em que, por nossa culpa, deixamos de o ver. Cristo ama-nos com o carinho inesgotável que se encerra em seu coração de Deus.
Reparemos como insiste: Eu te ouvi no tempo oportuno, eu te ajudei no dia da salvação (II Cor V, 2 (Epístola da Missa)). Já que Ele te promete e te oferece oportunamente a glória - o seu amor - e te chama, tu, que irás dar ao Senhor? Como corresponderás, como corresponderei eu também, a esse amor de Jesus que passa?
Ecce nunc dies salutis, aqui está diante de nós o dia da salvação. O chamado do Bom Pastor chega até nós: Ego vocavi te nomine tuo, eu te chamei pelo teu nome. É preciso responder - amor com amor se paga - dizendo: Ecce ego quia vocasti me (I Reg III, 5), chamaste-me e aqui estou. Estou decidido a não permitir que este tempo de Quaresma passe como passa a água sobre as pedras, sem deixar rasto. Deixar-me-ei empapar, transformar; converter-me-ei, dirigir-me-ei de novo ao Senhor, amando-o como Ele deseja ser amado.
Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, e com toda a tua alma, e com toda a tua mente (Mt XXII, 37). Que resta do teu coração - comenta Santo Agostinho -, para que possas amar-te a ti mesmo? Que resta da tua alma, que resta da tua mente? "Ex toto" diz. "Totum exigit te, qui fecit te" (Sermo 34, 4, 7 (PL 38, 212)). Quem te fez exige tudo de ti.
60 Depois deste protesto de amor, temos que nos comportar como amadores de Deus. In omnibus exhibeamus nosmetipsos sicut Dei ministros (II Cor VI, 4 (Epístola da Missa)), comportemo-nos em todas as coisas como servidores de Deus. Se te deres como ele quer, a ação da graça manifestar-se-á na tua conduta profissional, no teu trabalho, no empenho de fazer com estilo divino as coisas humanas, grandes ou pequenas, porque, pelo Amor, todas elas adquirem uma nova dimensão.
Mas nesta Quaresma não podemos esquecer que querer ser servidor de Deus não é fácil. E para recordar as dificuldades, continuemos com o texto de São Paulo recolhido na Epístola da Missa deste Domingo: Como servidores de Deus - escreve o Apóstolo -, com muita paciência nas tribulações, nas necessidades, nas angústias, nos açoites, nas prisões, nas sedições, nos trabalhos, nas vigílias, nos jejuns; com pureza, com doutrina, com longanimidade, com mansidão, com o Espírito Santo, com caridade sincera, com palavras de verdade, com fortaleza de Deus (II Cor VI, 4-7). Nos momentos mais díspares da vida, em todas as situações, temos que nos comportar como servidores de Deus, sabendo que o Senhor está conosco, que somos seus filhos. Temos que ser conscientes dessa raiz divina enxertada em nossa vida, e atuar em conseqüência.
As palavras do Apóstolo devem encher-nos de alegria, porque são como que uma canonização da nossa vida de simples cristãos, que vivem no meio do mundo, partilhando anseios, trabalhos e alegrias com os demais homens, seus iguais. Tudo isso é caminho divino. O que o Senhor nos pede é que a todo o momento nos comportemos como seus filhos e servidores. Mas essas circunstâncias ordinárias da vida só serão caminho divino se verdadeiramente nos convertermos, se nos entregarmos. Porque São Paulo emprega uma linguagem dura. Promete ao cristão uma vida dura, arriscada, em perpétua tensão. Como se desfigurou o cristianismo quando se pretendeu fazer dele um caminho cômodo! Mas também é desfigurar a verdade pensar que essa vida profunda e séria, que conhece vivamente todos os obstáculos da existência humana, é uma vida de angústias, de opressão ou de temor.
O cristão é realista, de um realismo sobrenatural e humano, sensível a todos os matizes da vida: a dor e a alegria, o sofrimento próprio e alheio, a certeza e a perplexidade, a generosidade e a tendência para o egoísmo. O cristão conhece tudo, e tudo enfrenta, cheio de integridade humana e da fortaleza recebida de Deus.
AS TENTAÇÕES DE CRISTO
61 A Quaresma comemora os quarenta dias que Cristo passou no deserto, como preparação para esses anos de pregação que culminam na Cruz e na glória da Páscoa. Quarenta dias de oração e de penitência que, ao findarem, desembocam na cena que a liturgia de hoje oferece à nossa consideração no Evangelho da Missa: as tentações de Cristo (Cfr. Mt IV, 1-11).
É uma cena cheia de mistério, que o homem em vão tenta entender - Deus que se submete à tentação, que deixa agir o Maligno -, mas que pode ser meditada se pedirmos ao Senhor que nos faça compreender a lição que encerra.
Jesus Cristo tentado. A Tradição esclarece a cena considerando que Nosso Senhor quis também sofrer a tentação para nos dar exemplo em tudo. E assim é, porque Cristo foi perfeito Homem, igual a nós, exceto no pecado (Cfr. Heb IV, 15). Depois de quarenta dias de jejum, em que possivelmente se alimentou apenas de ervas, raízes e um pouco de água, Jesus sente fome: fome verdadeira, como a de qualquer outra criatura. E quando o demônio lhe propõe que converta as pedras em pão, o Senhor não só rejeita o alimento que o corpo lhe pedia, como afasta de si uma incitação maior: a de usar do poder divino para remediar, digamos assim, um problema pessoal.
Tê-lo-emos notado ao longo dos Evangelhos: Jesus não faz milagres em benefício próprio. Converte a água em vinho para os esposos de Caná (Cfr. Ioh II, 1-11); multiplica os pães e os peixes para dar de comer a uma multidão faminta (Cfr. Mc VI, 33-46). Mas ele ganha o pão, durante muitos anos, com o seu próprio trabalho. Mais tarde, ao longo do seu peregrinar por terras de Israel, viverá com a ajuda daqueles que o seguem (Cfr. Mt XXVII, 55).
São João relata-nos que, depois de uma longa caminhada, chegando Jesus ao poço de Sicar, mandou os seus discípulos ao povoado para comprarem comida; e ao ver aproximar-se a Samaritana, pediu-lhe água, porque não tinha com que tirá-la (Cfr. Ioh IV, 4 ss). Seu corpo fatigado pela longa caminhada experimenta o cansaço e há ocasiões em que dorme para reparar as forças (Cfr. Lc VIII, 23). Generosidade do Senhor que se humilhou, que aceitou plenamente a condição humana, que não se serve do seu poder de Deus para fugir das dificuldades ou do esforço; que nos ensina a ser fortes, a amar o trabalho, a apreciar a nobreza humana e divina de saborear as conseqüências da entrega.
Na segunda tentação, quando o demônio lhe propõe que se atire do alto do Templo, Jesus recusa novamente a usar do seu poder divino. Cristo não busca a vanglória, o espetáculo, a comédia humana que procura utilizar Deus como pano de fundo da sua própria excelência. Jesus Cristo quer cumprir a vontade do Pai sem adiantar os tempos nem antecipar a hora dos milagres, antes pelo contrário, percorrendo passo a passo a dura senda dos homens, o amável caminho da Cruz.
Coisa muito parecida vemos na terceira tentação: são-lhe oferecidos reinos, poder, glória. O demônio pretende estender às ambições humanas essa atitude que se deve reservar só para Deus: promete uma vida fácil a quem se prostrar diante dele, diante dos ídolos. Nosso Senhor reconduz a adoração ao seu único e verdadeiro fim - Deus -, e reafirma a sua vontade de servir: Afasta-te de mim, Satanás, porque está escrito: Adorarás o Senhor teu Deus, e só a Ele servirás (Mt IV, 10).
62 Devemos aprender desta atitude de Jesus. Durante a sua vida na terra, não quis sequer a glória que lhe pertencia, porque, assistindo-lhe o direito de ser tratado como Deus, assumiu a forma de servo, de escravo (Cfr. Phil II, 6-7). O cristão sabe assim que toda a glória é para Deus, e que não pode utilizar a sublimidade e a grandeza do Evangelho em benefício dos seus interesses e ambições humanas.
Devemos aprender de Jesus. Opondo-se a toda a glória humana, sua atitude está em perfeita harmonia com a grandeza de uma missão única: a de Filho amadíssimo de Deus, que se encarna para salvar os homens. Uma missão que o amor do Pai rodeou de uma solicitude repassada de ternura: Filius meus es tu, ego hodie genui te. Postula a me et dabo tibi gentes hereditatem tuam (Ps II, 7). Tu és o meu Filho, eu te gerei hoje. Pede-me, e dar-te-ei as nações por herança.
O cristão que - em seguimento de Cristo - vive nesta atitude de completa adoração ao Pai, recebe do Senhor palavras de amorosa solicitude: Porque espera em mim, livra-lo-ei; protegê-lo-ei, porque conhece o meu nome (Ps XC, 14 (Tractus da missa)).
63 Jesus respondeu não ao demônio, ao príncipe das trevas. E logo se manifesta a luz. Depois disso o diabo o deixou; e eis que os anjos se aproximaram e o serviram (Mt IV, 11). Jesus suportou a prova, uma prova verdadeira, porque, como comenta Santo Ambrósio, não procedeu como Deus, usando do seu poder - senão, de que nos serviria o seu exemplo? - mas como homem, serviu-se dos meios que tem em comum conosco (Santo Ambrósio, Expositio Evangelii secundum Lucam, 1, 4, 20 (PL 15 1525)).
O demônio citou malevolamente o Antigo Testamento: Deus mandará seus anjos para que protejam o justo em todos os seus caminhos (Ps XC, 11 (Tractus da missa)). Mas Jesus, recusando-se a tentar seu Pai, devolve a esta passagem bíblica o seu verdadeiro sentido. E, como prêmio à sua fidelidade, quando chega a hora, apresentam-se os mensageiros de Deus-Pai para o servirem.
Vale a pena considerar o método que Satanás emprega com Jesus Cristo Senhor Nosso : argumenta com textos dos livros sagrados, desfigurando de forma blasfema o seu sentido. Jesus não se deixa enganar: o Verbo feito carne conhece bem a Palavra Divina, escrita para a salvação dos homens, e não para sua confusão e condenação. Quem estiver unido a Jesus Cristo pelo Amor - podemos concluir - não se deixará nunca enganar pelo manejo fraudulento da Escritura Santa, porque sabe que é obra típica do demônio procurar confundir a consciência cristã, esgrimido dolosamente com os próprios termos empregados pela eterna Sabedoria, tentando transformar a luz em trevas.
Contemplemos brevemente esta intervenção dos anjos na vida de Jesus, pois assim entenderemos melhor o seu papel - a missão angélica - em toda a vida humana. A Tradição cristã descreve os Anjos da Guarda como grandes amigos, colocados por Deus ao lado de cada homem para o acompanharem em seus caminhos. Por isso nos convida a procurar a sua intimidade, a recorrer a eles.
Ao fazer-nos meditar nestas passagens da vida de Cristo, a Igreja recomenda-nos que, nesse tempo da Quaresma, em que nos reconhecemos pecadores, cheios de misérias, necessitados de purificação, também há lugar para a alegria. Porque a Quaresma é simultaneamente tempo de fortaleza e de júbilo: temos que encher-nos de coragem, já que a graça do Senhor não nos há de faltar; Deus estará ao nosso lado e enviará seus Anjos para que sejam nossos companheiros de viagem, nossos prudentes conselheiros ao longo do caminho, nossos colaboradores em todas as nossas tarefas. In manibus portabunt te, ne forte offendas ad lapidem pedem tuum (Ps XC, 12 (Tractus da missa)), continua o salmo: os Anjos te levarão nas mãos para que teu pé não tropece em pedra alguma.
Temos que saber tratar os Anjos com intimidade: recorrer a eles agora, dizer ao nosso Anjo da Guarda que estas águas sobrenaturais da Quaresma não resvalaram sobre a nossa alma, mas penetraram nela até o fundo, porque temos o coração contrito. Peçamos-lhe que leve até o Senhor a boa vontade que a graça fez germinar sobre a nossa miséria, como um lírio nascido no meio do esterco. Sancti Angeli Custodes nostri, defendite nos in proelio, ut non pereamus in tremendo iudicio (De uma oração dirigida a São Miguel nas festas litúrgicas que o Missal romano lhe dedica). Santos Anjos da Guarda, defendei-nos no combate, para que não pereçamos no tremendo Juízo.
FILIAÇÃO DIVINA
64 Como se explica essa oração confiante, esta certeza de que não pereceremos no combate? É um convencimento que parte de uma realidade que nunca me cansarei de admirar: a nossa filiação divina. O Senhor que nesta Quaresma pede que nos convertamos, não é um Dominador tirânico, nem um juiz rígido e implacável; é nosso Pai. Fala-nos dos nossos pecados, dos nossos erros, da nossa falta de generosidade; mas é para nos livrar de tudo isso, para nos prometer a sua Amizade e o seu Amor. A consciência da nossa filiação divina dá alegria à nossa conversão: diz-nos que estamos voltando para a casa do Pai.
A filiação divina é o fundamento do espírito do Opus Dei. Todos os homens são filhos de Deus. Mas um filho pode reagir de muitas maneiras diante de seu pai. Temos de nos esforçar por ser dos que procuram perceber que, ao querer-nos como filhos, o Senhor fez com que vivêssemos em sua casa no meio deste mundo, que fôssemos da sua família, que as suas coisas fossem nossas e as nossas suas, que tivéssemos essa familiaridade e confiança com Ele que nos faz pedir, como uma criança, a própria lua!
Um filho de Deus trata o Senhor como Pai. Não como quem presta um obséquio servil, nem com uma reverência protocolar, de mera cortesia, mas com plena sinceridade e confiança. Deus não se escandaliza dos homens. Deus não se cansa com as nossas infidelidades. Nosso Pai do Céu perdoa qualquer ofensa quando o filho volta de novo para Ele, quando se arrepende e pede perdão. Nosso Senhor é de tal modo Pai, que prevê os nossos desejos de sermos perdoados e a eles se antecipa, abrindo-nos os braços com a sua graça.
Não estou inventando nada. Recordemos a parábola que o Filho de Deus nos contou para que entendêssemos o amor do Pai que está nos céus: a parábola do filho pródigo (Cfr. Lc XV, 11 e ss).
Quando ainda estava longe, diz a escritura, viu-o seu pai e enterneceram-se-lhe as entranhas; e, correndo ao seu encontro, lançou-lhe os braços ao pescoço e cobriu-o de beijos (Lc XV, 20). Estas são as palavras do livro sagrado: cobriu-o de beijos, comia-o a beijos. Pode-se falar com mais calor humano? Pode-se descrever de maneira mais gráfica o amor paternal de Deus pelos homens?
Perante um Deus que corre ao nosso encontro, não nos podemos calar, e temos que dizer-lhe com São Paulo: Abba, Pater! (Rom VIII, 15), Pai, meu Pai!, porque sendo Ele o Criador do universo, não se importa de que não o tratemos com títulos altissonantes, nem reclama a devida confissão do seu poder. Quer que lhe chamemos Pai, que saboreemos essa palavra, deixando a alma inundar-se de alegria.
De certo modo, a vida humana é um constante retorno à casa do nosso Pai. Retorno mediante a contrição, mediante a conversão do coração, que se traduz no desejo de mudar, na decisão firme de melhorar de vida, e que, portanto, se manifesta em obras de sacrifício e de doação. Retorno à casa do Pai por meio desse sacramento do perdão em que, ao confessarmos os nossos pecados, nos revestimos de Cristo e nos tornamos assim seus irmãos, membros da família de Deus.
Deus espera-nos como o pai da parábola, de braços estendidos, ainda que não o mereçamos. O que menos importa é a nossa dívida. Como no caso do filho pródigo, basta simplesmente abrirmos o coração, termos saudades do lar paterno, maravilhar-nos e alegrar-nos perante o dom divino de nos podermos chamar e ser verdadeiramente filhos de Deus, apesar de tanta falta de correspondência da nossa parte.
65 O homem tem uma capacidade tão estranha para esquecer as coisas mais maravilhosas e acostumar-se ao mistério! Consideremos de novo, nesta Quaresma, que o cristão não pode ser superficial. Plenamente mergulhado no seu trabalho diário entre os demais homens, seus iguais, atarefado, ocupado, em tensão, o cristão tem que estar ao mesmo tempo totalmente mergulhado em Deus, porque é filho de Deus.
A filiação divina é uma verdade feliz, um mistério consolador. A filiação divina empapa toda a nossa vida espiritual, porque nos ensina a procurar, conhecer e amar o nosso Pai do Céu, e assim cumula de esperança a nossa luta interior e nos dá a simplicidade confiante dos filhos pequenos. Mais ainda: precisamente porque somos filhos de Deus, esta realidade leva-nos também a contemplar com amor e com admiração todas as coisas que saíram das mãos de Deus Pai Criador. E deste modo somos contemplativos no meio do mundo, amando o mundo.
Na Quaresma, a liturgia considera as conseqüências do pecado de Adão na vida do homem. Adão não quis ser um bom filho de Deus, e revoltou-se. Mas ouve-se também continuamente o eco desta felix culpa - culpa feliz, ditosa - que a Igreja inteira cantará, cheia de alegria, na vigília do Domingo da Ressurreição (Praeconium Paschale).
Chegada a plenitude dos tempos, Deus Pai enviou ao mundo seu Filho Unigênito para que restabelecesse a paz; para que, redimindo o homem do pecado, adoptionem filiorum reciperemus (Gal IV, 5), fôssemos constituídos filhos de Deus, libertados do jugo do pecado, habilitados a participar na intimidade divina da Trindade. E assim se tornou possível que este homem novo, esta nova enxertia dos filhos de Deus (Cfr. Rom VI 4-5), libertasse toda a criação da desordem, restaurando todas as coisas em Cristo (Cfr. Eph I, 5-10), que nos reconciliou com Deus (Cfr. Col I, 20).
Tempo de penitência, portanto. Mas, como vimos, não é uma tarefa negativa. A Quaresma deve ser vivida com o espírito de filiação que Cristo nos comunicou e que palpita em nossa alma (Cfr. Gal IV, 6). O Senhor chama-nos para que nos aproximemos dEle: Sede imitadores de Deus, como filhos muito queridos (I Ioh III. 1), colaborando humildemente, mas fervorosamente, com o divino propósito de unir o que se quebrou, de salvar o que se perdeu, de ordenar o que o homem pecador desordenou, de reconduzir o que se extraviou, de restabelecer a divina concórdia em toda a criação.
66 A liturgia da Quaresma ganha às vezes acentos trágicos, quando se medita no que supõe para o homem o seu afastamento de Deus. Mas essa conclusão não é a última palavra. A última palavra é Deus quem a pronuncia, e é a palavra do seu amor salvador e misericordioso e, portanto, a palavra da nossa filiação divina. Por isso repito hoje com São João: Vede que amor teve o Pai para conosco, querendo que nos chamássemos filhos de Deus e que o fôssemos de verdade (I Ioh III, 1). Filhos de Deus, irmãos do Verbo feito carne, dAquele de quem foi dito: nEle estava a vida, e a vida era a luz dos homens (Ioh I, 4). Filhos da Luz, irmãos da Luz; é o que nós somos! Portadores da única chama capaz de abrasar os corações feitos de carne.
Calo-me agora para prosseguir a Santa Missa. Mas cada um deve pensar no que Deus lhe pede, nos propósitos, nas decisões que a ação de graça quer promover dentro de si.
E, ao percebermos essas exigências sobrenaturais e humanas de entrega e de luta, lembremo-nos de que Jesus Cristo é o nosso modelo, de que Jesus, sendo Deus, permitiu que o tentassem, para que assim nos enchêssemos de coragem e estivéssemos certos da vitória. Porque Ele não perde batalhas, e nós, se estivermos unidos a Ele, nunca seremos vencidos, mas poderemos chamar-nos e ser realmente vencedores: bons filhos de Deus.
Vivamos contentes. Eu estou contente. Não o deveria estar, olhando para a minha vida, fazendo esse exame pessoal de consciência que esse tempo litúrgico da Quaresma nos pede. Mas sinto-me contente porque vejo que o Senhor me procura uma vez mais, que o Senhor continua a ser meu Pai. Sei que vós e eu, decididamente, com o resplendor e a ajuda da graça, veremos que coisas temos que queimar, e as queimaremos; que coisas temos que arrancar, e as arrancaremos; que coisas temos que entregar, e as entregaremos.
A tarefa não é fácil. Mas contamos com um ponto de referência claro, com uma realidade de que não devemos nem podemos prescindir: somos amados por Deus, e deixaremos que o Espírito Santo atue em nós e nos purifique, para podermos assim abraçar o Filho de Deus na Cruz, ressuscitando depois com Ele, porque a alegria da Ressurreição tem as suas raízes na Cruz.
Maria, nossa Mãe, auxilium christianorum, refugium peccatorum: intercede junto de teu Filho para que nos envie o Espírito Santo, que desperte em nossos corações a decisão de caminharmos com passo firme e seguro, fazendo ressoar no mais íntimo de nossa alma a chamada que encheu de paz o martírio de um dos primeiros cristãos; Veni ad Patrem (Santo Inácio de Antioquia, Epistola ad Romanos, 7, 2 (PG 5, 694)), vem, volta para teu Pai, que te espera.
« O RESPEITO CRISTÃO PELA PESSOA E PELA SUA LIBERDADE »
(Homilia pronunciada em 15 de Março de 1961, quarta-feira da IV Semana da Quaresma)
67 Acabamos de ler na Santa Missa um texto do Evangelho segundo São João que nos relata a cena da cura milagrosa do cego de nascença. Penso que todos nos comovemos uma vez mais perante o poder e a misericórdia de Deus, que não olha com indiferença para a desgraça humana. Mas gostaria agora de fixar a atenção sobre outros aspectos, para que compreendamos que, quando há amor de Deus, o cristão também não pode permanecer indiferente perante a sorte dos outros homens e sabe por sua vez tratar a todos com respeito; e que, quando esse amor decai, surge o perigo de se invadir, fanática e impiedosamente, a consciência alheia.
Ao passar - diz o Santo Evangelho - viu Jesus um cego de nascença (Ioh IX, 1). Jesus que passa. Com frequência me tenho maravilhado perante esta forma simples de relatar a clemência divina. Jesus passa, e logo se apercebe da dor. Consideremos, em contrapartida, como eram diferentes os pensamentos dos discípulos naquela ocasião. Perguntaram-lhe: Mestre, quem pecou, este ou seus pais, para que nascesse cego? (Ioh IX, 2).
OS FALSOS JUÍZOS
Não nos deve causar estranheza que muitas pessoas, mesmo entre as que se consideram cristãs, se comportem de forma parecida. Antes de mais nada, imaginam o mal. Sem prova alguma, pressupõem-no; e não só admitem essa ordem de pensamentos, como ainda se atrevem manifestá-los num juízo aventurado, diante da multidão.
A conduta dos discípulos poderia benevolamente ser qualificada de leviana. Naquela sociedade - aliás, como hoje; nisto, pouco se mudou -, havia outros, os fariseus, que faziam dessas atitude uma norma. Lembremo-nos de que maneira Jesus Cristo os denuncia: Veio João, que não come nem bebe, e dizem: Está possesso do demônio. Veio o Filho do homem, que come e bebe, e dizem: É um comilão e bebedor de vinho amigo de publicanos e pecadores (Mt XI, 18-19).
Ataques sistemáticos à fama, conspurcação da conduta irrepreensível. Essa crítica mordaz e lancinante atingiu o próprio Jesus Cristo, e não é raro que alguns reservem o mesmo sistema para os que, embora conscientes de suas lógicas e naturais misérias e erros pessoais - pequenos e inevitáveis, dada a humana fraqueza, acrescentaria -, desejam seguir o Mestre. Mas a comprovação dessas realidades não nos deve levar a justificar tais pecados e delitos - falatórios, como lhes chamam com uma compreensão suspeita - contra o bom nome de ninguém. Jesus anuncia que, se o pai de família foi alcunhado de Belzebu, não é de esperar que se conduzam melhor com os de sua casa (Cfr. Mt X, 24); mas também esclarece que quem chamar néscio a seu irmão, será réu do fogo do inferno (Mt V, 22).
Donde nasce esta apreciação injusta dos outros? É como se alguns usassem continuamente umas viseiras que lhes alterassem a visão. Não acreditam, por princípio, que seja possível a retidão ou, ao menos, a luta constante por comportar-se bem. Como diz o antigo adágio filosófico, recebem tudo segundo a forma do recipiente: em sua prévia deformação. Para eles, até as coisas mais retas refletem , apesar de tudo, uma atitude retorcida que adota hipocritamente a aparência de bondade. Quando descobrem claramente o bem - escreve São Gregório -, esquadrinham tudo para examinar se, além disso, não haverá algum mal oculto (São Gregório Magno, Moralia, 6, 22 (PL 75, 750)).
68 É difícil fazer entender a essas pessoas - cuja deformação quase se converte numa segunda natureza - que é mais humano e mais verídico pensar bem do próximo. Santo Agostinho dá este conselho: Procurai adquirir as virtudes que julgais faltarem aos vossos IRMÃOS, e já não vereis os seus defeitos, porque vós mesmos não os tereis (Santo Agostinho, Enarrationes in psalmos, 30, 2, 7 (PL 36, 243)). Para alguns, esta forma de proceder identifica-se com a ingenuidade. Eles são mais realistas, mais razoáveis.
Erigindo o preconceito como norma de juízo, ofenderão seja quem for sem mesmo ouvir aos suas razões. Depois, objetivamente, bondosamente, talvez concedam ao injuriado a possibilidade de se defender - contra toda a moral e todo o direito - porque, em vez de arcarem com o ônus de provar a suposta falta, concedem ao inocente o privilégio de demonstrar a sua inocência.
Não seria sincero se não confessasse que as considerações anteriores são algo mais do que um rápido respigar em tratados de direito e de moral. Baseiam-se numa experiência que não poucos viveram em sua própria carne, da mesma maneira que muitos outros foram, com frequência e durante muitos anos, o alvo de exercícios de tiro de murmurações, difamações e calúnias. A graça de Deus e um natural nada rancoroso fizeram com que tudo isso não deixasse neles o menor travo de amargura. Mihi pro minimo est, ut a vobis iudicer (1 Cor IV, 3), pouco me importa ser julgado por vós, poderiam dizer com São Paulo. Às vezes, empregando palavras mais correntes, terão acrescentado que tudo isso lhes saiu sempre por uma bagatela. Essa é a verdade.
Por outro lado, entretanto, não posso negar que me causa tristeza pensar na alma de quem ataca injustamente a honra alheia, porque o agressor injusto se arruína a si mesmo. E sofro também por tantos que, em face de acusações arbitrárias e desaforadas, não sabem onde pôr os olhos: ficam apavorados, não as julgam possíveis e perguntam de si para si se não será tudo um pesadelo.
Há poucos dias líamos na Epístola da Santa Missa o episódio de Susana, aquela mulher casta, falsamente causada de desonestidade por dois velhos corrompidos. Susana desatou a chorar e respondeu aos seus acusadores: por todos os lados me sinto angustiada; porque, se faço o que me propondes, virá sobre mim a morte; e, se me nego, não escaparei de vossas mãos (Dan XIII, 21). Quantas vezes as insídias dos invejosos ou dos intrigantes não colocam muitas criaturas honestas na mesma situação! Oferecem-lhe esta alternativa: ou ofenderem o Senhor, ou verem denegrida a sua honra. A única solução nobre e digna é ao mesmo tempo extremamente dolorosa, e têm que resolver: É melhor para mim cair sem culpa nas vossas mãos do que pecar contra o Senhor (Dan XIII, 22).
DIREITO À INTIMIDADE
69 Voltemos à cena da cura do cego. Jesus Cristo replica aos seus discípulos que aquela desgraça não é conseqüência do pecado, mas ocasião para que se manifeste o poder de Deus. E, com maravilhosa simplicidade, decide que o cego veja.
Começa então, a par da felicidade, o tormento daquele homem. Não o deixarão em paz. Primeiro são os vizinhos e os que antes o tinham visto pedir esmola (Ioh IX, 8). O Evangelho não nos diz que se tivessem alegrado, mas que não acabavam de acreditar no sucedido, apesar de o cego insistir que era ele mesmo quem antes não via e agora vê. Em lugar de lhe permitirem usufruir serenamente daquela graça, levaram-no aos fariseus, que lhe perguntaram de novo como foi. E ele responde pela segunda vez: Pôs lodo nos meus olhos, lavei- me e vejo (Ioh IX, 15).
E os fariseus querem demonstrar que o que aconteceu - um bem e um grande milagre - não aconteceu. Alguns lançam mão de raciocínios mesquinhos, hipócritas, muito pouco equânimes: curou num sábado e, como é pecado trabalhar aos sábados, negam o prodígio. Outros iniciam o que hoje se chama um inquérito. Vão aos pais do cego: É este o vosso filho, de quem vós dizeis que nasceu cego? Como vê, pois, agora? (Ioh IX, 19) O medo aos poderosos leva os pais a responderem com uma proposição que reúne todas as garantias do método científico: Sabemos que este é nosso filho e que nasceu cego; mas, como agora vê, não o sabemos, nem tampouco sabemos quem lhe abriu os olhos. Perguntai-o a ele mesmo: tem idade, que responda por si (Ioh IX, 20).
Os que conduzem o inquérito não podem acreditar porque não querem acreditar. Chamaram outra vez o que tinha sido cego e disseram-lhe: ... Nós sabemos que esse homem - Jesus Cristo - é um pecador (Ioh IX, 24).
Em poucas palavras, o relato de São João mostra-nos um modelo de atentado terrível contra o direito básico de sermos tratados com respeito, um direito que a todos nos pertence por natureza.
O tema continua a ser atual. Não custaria nenhum trabalho apontar em nossa época casos dessa curiosidade agressiva, que leva a indagar morbidamente a vida privada dos outros. Um mínimo senso de justiça exige que, mesmo na investigação de um presumível delito, se proceda com cautela e moderação, sem tomar por certo o que é apenas uma possibilidade. Compreende-se até que ponto se deva qualificar como perversão a curiosidade malsã em desentranhar o que não só não é delito, como pode até ser uma ação honrosa.
Perante os mercadores da suspeita, que dão a impressão de organizarem um trafico da intimidade, é preciso defender a dignidade de cada pessoa, seu direito ao silêncio. Costumam estar de acordo nesta defesa todos os homens honrados, sejam ou não cristãos, porque está em jogo um valor comum: a legítima decisão de cada qual ser como é, de não se exibir, de conservar em justa e pudica reserva as suas alegrias, as suas penas e dores de família; e sobretudo de praticar o bem sem espetáculo, de ajudar os necessitados por puro amor, sem obrigação de publicar essas tarefas a serviço dos outros e, muito menos, de pôr a descoberto a intimidade da alma perante o olhar indiscreto e oblíquo de gente que nada sabe nem deseja saber da vida interior, a não ser para zombar impiamente.
Mas como é difícil vermo-nos livres dessa agressividade xereta! Multiplicaram-se os métodos para não deixar o homem em paz. Refiro-me aos meios técnicos, como também a sistemas de argumentar aceitos hoje em dia, contra os quais é difícil lutar, se se deseja conservar a reputação. Partem muitas vezes do princípio de que todo o mundo se comporta mal; e com base nessa forma errônea de pensar, surge inevitavelmente o meaculpismo, a auto-crítica. Se uma pessoa não joga sobre si mesma uma tonelada de lama, deduzem que, além de ser completamente má, é hipócrita e arrogante.
Noutras ocasiões, procede-se de maneira diferente: aquele que fala ou escreve, lançando mão da calúnia, está disposto a admitir que você é um indivíduo íntegro, mas que talvez os outros não pensem o mesmo, e podem portanto publicar que você é um ladrão; como demonstra que não o é? Ou então: você afirma incansavelmente que a sua conduta é limpa, nobre, reta. Importar-se-ia de considerá-la de novo, para verificar se por acaso não é suja, ignóbil e retorcida?
70 Não são exemplos imaginários. Estou persuadido de que qualquer pessoa ou qualquer instituição de certo nome poderia aumentar a casuística. Criou-se em alguns setores a falsa mentalidade de que o público, o povo, ou como queiram chamá-lo, tem o direito de conhecer e interpretar os pormenores mais íntimos da existência dos outros.
Sejam-me permitidas umas palavras sobre algo que está bem unido à minha alma. Há mais de trinta anos venho dizendo e escrevendo de mil formas diferentes que o Opus Dei não tem em vista nenhuma finalidade temporal, política; que pretende única e exclusivamente difundir entre multidões de todas as raças, de todas as condições sociais, de todos os países, o conhecimento e a prática da doutrina salvadora de Cristo, e contribuir para que haja mais amor de Deus na terra e, portanto, mais paz, mais justiça entre os homens, filhos de um único Pai.
Muitos milhares de pessoas - milhões - em todo o mundo compreenderam do que se tratava. Outros - muito poucos -, seja por que motivos for, parece que não. Se meu coração está mais perto dos primeiros, honro e amo também os outros porque em todos merece respeito e estima a sua dignidade, e todos estão chamados à glória dos filhos de Deus.
Mas nunca falta uma minoria sectária que, não entendendo o que eu e tantos outros amamos, quereria que explicássemos as coisas de acordo com a sua mentalidade: exclusivamente política, alheia aos valores sobrenaturais, atenta unicamente ao equilíbrio de interesses e de pressões de grupos. Se não recebem uma explicação dessa natureza, errônea e ajeitada a seu gosto, continuam a pensar que há mentira, dissimulação, planos sinistros.
Devo dizer que esses casos não me entristecem nem me preocupam. Acrescentaria que me divertem. se fosse possível esquecer que se comete uma ofensa ao próximo e um pecado que clama diante de Deus. Sou aragonês e, até pelos aspectos humanos do meu caráter, amo a sinceridade; sinto uma repulsa instintiva por tudo o que suponha embuço. Sempre procurei responder com a verdade, sem prepotência, sem orgulho, ainda que os que caluniavam fossem mal educados, arrogantes, hostis, desprovidos do menor sinal de humanidade.
Tem me vindo à cabeça, com frequência, a resposta do cego de nascença aos fariseus, que perguntavam pela enésima vez como se tinha produzido o milagre: Eu já vo-lo disse, e vós o ouvistes. Para que quereis ouví-lo de novo? Será que vós também quereis fazer-vos seus discípulos? (Ioh IX, 27)
COLÍRIO NOS OLHOS
71 O pecado dos fariseus não consistia em não verem Deus em Cristo, mas em se encerrarem voluntariamente em si mesmos; em não tolerarem que Jesus, que é a luz, lhes abrisse os olhos (Cfr. Ioh IX, 39-41). Esse nevoeiro tem resultados imediatos na vida de relação com os nossos semelhantes. O fariseu que, julgando-se luz, não deixa que Deus lhe abra os olhos, é o mesmo que tratará soberba e injustamente o próximo, rezando assim: Dou-te graças porque não sou como os outros homens, ladrões, injustos, e adúlteros, nem como esse publicano (Lc XVIII, 11). E quanto ao cego de nascença, que persiste em contar a verdade da cura milagrosa, ofendem-no: Saíste do ventre de tua mãe coberto de pecados, e queres ensinar-nos? E expulsaram-no (Ioh IX, 34).
Entre os que não conhecem Cristo, há muitos homens honrados que, por elementar circunspecção, sabem comportar-se delicadamente: são sinceros, cordiais, educados. Se eles e nós não nos opusermos a ser curados por Cristo da cegueira que ainda resta em nossos olhos, se permitirmos que o Senhor nos aplique esse lodo que, em suas mãos, se converte no colírio mais eficaz, compreenderemos as realidades terrenas e vislumbraremos as eternas sob uma luz nova, a luz da fé; teremos adquirido um olhar limpo.
Esta é a vocação do cristão: a plenitude dessa caridade que é paciente, benigna, não tem inveja, não é temerária, não se ensoberbece, não é ambiciosa, não é interesseira, não se irrita, não pensa mal, não se alegra com a injustiça, compraz-se na verdade, tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo sofre (1 Cor XIII, 4-7).
A caridade de Cristo não é apenas um bom sentimento em relação ao próximo; não se detém no gosto pela filantropia. A caridade, infundida por Deus na alma, transforma por dentro a inteligência e a vontade; dá base sobrenatural à amizade e à alegria de fazer o bem.
Contemplemos a cena da cura do coxo, narrada pelos Atos dos Apóstolos. Subiam Pedro e João ao templo e, ao passarem, encontraram um homem sentado à porta, que era coxo de nascença. Tudo nos lembra aquela outra cura do cego. Mas agora os discípulos já não pensam que a desgraça se deva aos pecados pessoais do enfermo ou às faltas de seus pais. E dizem-lhe: Em nome de Jesus Cristo Nazareno, levanta-te e anda (Act III, 6). Antes derramavam incompreensão, agora misericórdia; antes julgavam temerariamente, agora curam milagrosamente em nome do Senhor. Sempre Cristo que passa! Cristo que continua a passar pelas ruas e pelas praças do mundo, através de seus discípulos, os cristãos. Peço-Lhe fervorosamente que passe pela alma de alguns dos que me escutam neste momento.
RESPEITO E CARIDADE
72 Surpreendia-nos no começo a atitude dos discípulos de Jesus perante o cego de nascença. Comportavam-se na linha do refrão infeliz: pensa mal e acertarás. Depois, chegaram a conhecer melhor o Mestre, apercebem-se do que significa ser cristão, e a partir daí suas opiniões inspiram-se na compreensão.
Em qualquer homem - escreve São Tomás de Aquino - existe sempre algum aspecto que nos permite considerá-lo superior a nós, segundo as palavras do Apóstolo: "Levados pela humildade, tende-vos uns aos outros por superiores" (Filip., II, 3). De acordo com estas palavras todos os homens devem honrar-se mutuamente (São Tomás de Aquino, S. Th. II-II, q. 103, a. 2-3). A humildade é a virtude que nos leva a descobrir que as manifestações de respeito pela pessoa - pela sua honra, pela sua boa-fé, pela sua intimidade - não são convencionalismos exteriores, mas as primeiras manifestações da caridade e da justiça.
A caridade cristã não se limita a socorrer os necessitados de bens econômicos; seu primeiro propósito é respeitar e compreender cada indivíduo como tal, em sua intrínseca dignidade de homem e de filho do Criador. Por isso, os atentados à pessoa ¬- à sua reputação, à sua honra - revelam que quem os comete não professa ou não pratica algumas verdades da nossa fé cristã, e, em qualquer caso, que não possui o autêntico amor de Deus. A caridade pela qual amamos a Deus e ao próximo é uma mesma virtude, porque a razão do amor ao próximo é precisamente Deus, e amamos a Deus quando amamos o próximo com caridade (São Tomás de Aquino, S. Th. q.103, a. 2-3).
Espero que sejamos capazes de tirar conseqüências muito concretas destes minutos de conversa na presença do Senhor. Principalmente o propósito de não julgarmos os outros, de não os ofendermos nem sequer com a dúvida, de afogarmos o mal em abundância de bem, semeando à nossa volta a convivência leal, a justiça e a paz.
E a decisão de nunca nos entristecermos se a nossa conduta reta for mal entendida pelos outros, se o bem que - com a ajuda contínua do Senhor - procurarmos realizar, for interpretado de um modo retorcido, e por um processo ilícito atribuírem às nossas intenções desígnios de mal, uma conduta dolosa e simuladora. Perdoemos sempre, com o sorriso nos lábios. Falemos com franqueza, sem rancor, quando nos parecer em consciência que devemos falar. E deixemos tudo nas mãos de nosso Pai-Deus, com um divino silêncio - Iesus autem tacebat (Mt XXVI, 63), Jesus calava-se -, se se trata de ataques pessoais, por mais brutais e indecorosos que sejam. Preocupemo-nos apenas em fazer boas obras, que Ele se encarregará de que elas brilhem diante dos homens (Mt V, 16).
« A LUTA INTERIOR »
(Homilia pronunciada em 4 de Abril de 1971, Domingo de Ramos)
73 Como toda a festa cristã, esta que hoje celebramos é especialmente uma festa de paz. No seu antigo simbolismo, os ramos evocavam a cena narrada pelo Génesis: Depois de ter esperado outros sete dias, Noé soltou de novo a pomba. E eis que pela tarde ela voltou, trazendo no bico um ramo de oliveira com r amos verdes. Entendeu, pois, Noé que as águas já não cobriam a terra (Gen VIII, 10-11). Recordamos agora que a aliança entre Deus e seu povo é confirmada e estabelecida em Cristo, porque Ele é a nossa paz (Eph II, 14). Nessa maravilhosa unidade e recapitulação do velho no novo, que caracteriza a liturgia da nossa Santa Igreja Católica, lemos no dia de hoje estas palavras de profunda alegria: Os filhos dos hebreus, levando ramos de oliveira, saíram ao encontro do Senhor, clamando e dizendo: Glória nas alturas (Antífona na distribuição dos Ramos).
A aclamação a Jesus Cristo vem unir-se na nossa alma àquela outra que saudou o seu nascimento em Belém. E por onde Jesus passava, conta São Lucas, as multidões estendiam seus mantos pelo caminho. e quando já ia chegando à descida do monte das Oliveiras, toda a multidão dos discípulos começou a louvar alegremente a Deus, em altos brados, por todos os prodígios que tinha visto, dizendo: bendito seja o Rei que vem em nome do Senhor, paz no céu e glória nas alturas (Lc XIX , 36-38).
PAZ NA TERRA
Pax in coelo, paz no céu. Mas olhemos também para o mundo: porque não há paz na terra? Não, não há paz na terra. Há somente aparência de paz, equilíbrio de medo, compromissos precários. Não há paz nem mesmo na Igreja, sulcada por tensões que retalham a alva túnica da Esposa de Cristo. Não há paz em muitos corações que tentam em vão compensar a intranqüilidade da alma com o bulício contínuo, com a pequena satisfação de bens que não saciam, porque deixam sempre o sabor amargo da tristeza.
As folhas de palma, escreve Santo Agostinho, são símbolo de homenagem, porque significam vitória. O Senhor estava prestes a vencer, morrendo na cruz; pelo sinal da Cruz, ia triunfar sobre o Diabo, o príncipe da morte (Santo Agostinho, In Ioannis Evangelium tractatus, 51, 2 (PL 35, 1764)). Cristo é a nossa paz porque venceu; e venceu porque lutou, no duro combate contra a maldade, acumulada nos corações humanos.
Cristo, que é a nossa paz, é também o Caminho (Ioh XIV, 6). Se queremos a paz, teremos que seguir os seus passos. A paz é a conseqüência da guerra, da luta, dessa luta ascética, íntima, que cada cristão deve sustentar contra tudo o que em sua vida não for de Deus: contra a soberba, a sensualidade, o egoísmo, a superficialidade, a estreiteza de coração. É inútil clamar por sossego exterior se falta tranqüilidade nas consciências, no fundo da alma, porque do coração saem os maus pensamentos, os homicídios, os adultérios, as fornicações, os furtos, os falsos testemunhos, as blasfêmias (Mt XV, 19).
LUTA, COMPROMISSO DE AMOR E DE JUSTIÇA
74 Mas esta linguagem não será antiquada? Não foi por acaso substituída por um vocabulário de ocasião, de claudicações pessoais encobertas sob uma roupagem pseudo-científica? Não existe um acordo tácito para apontar como bens reais o dinheiro, que tudo compra, o poder temporal, a astúcia que leva a ficar sempre por cima, a sabedoria humana que se auto-define como adulta e imagina haver superado o sagrado?
Não sou nem fui nuca pessimista, porque a fé me diz que Cristo venceu definitivamente e, em penhor da sua conquista, nos deu uma palavra de orem que é também um compromisso: lutar. Nós os cristãos, temos um propósito de amor, que assumimos livremente com o chamado da graça divina: uma obrigação que nos anima a lutar com tenacidade, porque sabemos que somos tão frágeis como os demais homens. Mas, ao mesmo tempo, não podemos esquecer que, se nos servimos dos meios adequados, seremos o sal, a luz e o fermento do mundo: seremos o consolo de Deus.
O nosso ânimo de perseverar com firmeza neste propósito de Amor é, além disso, um dever de justiça. E a matéria desta exigência, comum a todos os fiéis, concretiza-se numa batalha constante. Ao longo de toda a tradição da Igreja, retratam-se os cristãos como milites Christi, soldados de Cristo. Soldados que levam a serenidade aos outros, enquanto combatem continuamente contra as más inclinações pessoais. Às vezes, por insuficiência de sentido sobrenatural, por uma descrença prática, não se quer entender a vida na terra como milícia. Insinuam maliciosamente que, se nos consideramos soldados de Cristo, corremos o risco de utilizar a fé para fins temporais de violência, de facções. Este modo de pensar é uma triste simplificação pouco lógica, que costuma aparecer de mãos dadas com o comodismo e a covardia.
Nada mais alheio à fé cristã do que o fanatismo que acompanha os estranhos conúbios entre o profano e o espiritual, sejam de que sinal forem. Esse perigo não existe, se entendemos a luta tal como Cristo no-la ensinou: como guerra de cada um consigo mesmo, como esforço sempre renovado de amar mais a Deus, de desterrar o egoísmo, de servir a todos os homens. Renunciar a esta contenda, seja com que desculpa for, é declarar-se de antemão derrotado, aniquilado, sem fé, de alma caída, dissipada em complacências mesquinhas.
Para o cristão, o combate espiritual, diante de Deus e de todos os irmãos na fé, é uma necessidade, uma conseqüência da sua condição. Por isso, se algum de nós não luta, está traindo Jesus Cristo e todo o seu corpo místico, que é a Igreja.
LUTA INCESSANTE
75 A guerra do cristão é incessante, porque na vida interior se verifica um perpétuo começar e recomeçar, que nos impede de orgulhosamente nos imaginarmos perfeitos. É inevitável que haja muitas dificuldades no nosso caminho; se não encontrássemos obstáculos, não seríamos criaturas de carne e osso. Sempre teremos paixões que nos puxem para baixo, e sempre precisaremos defender-nos contra esses delírios mais ou menos veementes.
Perceber no corpo e na alma o aguilhão da soberba, da sensualidade, da inveja, da preguiça, do desejo de subjugar os outros, não deveria representar puma descoberta. É um mal antigo, sistematicamente confirmado pela nossa experiência pessoal; é o ponto de partida e o ambiente habitual do nosso esforço por ganhar, num íntimo desporto, a nossa corrida para a casa do Pai. por isso nos ensina São Paulo: Quanto a mim, corro, não como que à aventura; luto, não como quem açoita o ar; mas castigo o meu corpo e conservo-o na escravidão, não suceda que, tendo pregado aos outros, venha eu a ser condenado (I Cor IX, 26).
Para iniciar ou sustentar esta contenda, o cristão não deve esperar por manifestações exteriores ou sentimentos favoráveis. A vida interior não é questão de sentimentos, mas de graça divina e de vontade, de amor. Todos os discípulos foram capazes de seguir Cristo no seu dia de triunfo em Jerusalém, mas quase todos o abandonaram à hora do opróbrio da Cruz.
Para amar de verdade, precisamos ser fortes, leais, com o coração firmemente ancorado na fé, na esperança e na caridade. Só a ligeireza insubstancial muda caprichosamente de objeto em seus amores, que não são amores mas compensações egoístas. Quando há amor, há integridade; capacidade de entrega, de sacrifício, de renúncia . E, no meio da entrega, do sacrifício e da renúncia - com o suplício da contradição -, a felicidade e a alegria. uma alegria que nada nem ninguém nos poderá tirar.
Neste torneio de amor, não nos devem entristecer as nossas quedas, nem mesmo as quedas graves, se recorremos a Deus com dor e bom propósito, mediante o sacramento da Penitência. o cristão não é nenhum colecionador maníaco de uma folha de serviços imaculada. Jesus Cristo Nosso Senhor não só se comove com a inocência e a fidelidade de João, como se enternece com o arrependimento de Pedro depois da queda. Jesus compreende a nossa debilidade e atrai-nos a Si como que por um plano inclinado, desejando que saibamos insistir no esforço de subir um pouco, dia após dia. Procura-nos como procurou os discípulos de Emaús, indo ao seu encontro; como procurou Tomé e lhe mostrou as chagas abertas nas mãos e no lado, fazendo com que as tocasse com seus dedos. Jesus Cristo está sempre à espera de que voltemos para Ele, precisamente porque conhece a nossa fraqueza.
A LUTA INTERIOR
76 Suporta as dificuldades como um bom soldado de Cristo Jesus (II Tim II, 3), diz-nos São Paulo. A vida do cristão é milícia, guerra, uma formosíssima guerra de paz, que em nada se identifica com as empresas bélicas humanas, porque estas de inspiram na divisão e muitas vezes nos ódios, e a guerra dos filhos de Deus contra o seu próprio egoísmo se baseia na unidade e no amor. Vivemos na carne, mas não militamos por motivos carnais. Porque as armas da nossa milícia não são carnais, mas sim a fortaleza em Deus para derrubar fortalezas, desbaratando com elas os projetos humanos e toda a altivez que se levanta contra a ciência de Deus (II Cor X, 3-4). É a escaramuça sem tréguas contra o orgulho, contra a prepotência que nos induz a praticar o mal, contra os juízos altaneiros.
Neste Domingo de Ramos, em que Nosso Senhor inicia a semana decisiva para a nossa salvação, deixemo-nos de considerações superficiais fixemos o olhar no que é verdadeiramente importante. Vejamos bem: o que realmente devemos pretender é ir para o céu. Senão nada vale a pena. E se queremos ir para o céu, é indispensável sermos fiéis à doutrina de Cristo; e para sermos fiéis, é indispensável porfiarmos com constância na luta contra os obstáculos que se opõe à nossa felicidade eterna.
Sei que a idéia de combate evoca imediatamente a nossa fraqueza, e prevemos as quedas, os erros. Deus conta com isso. É inevitável que, ao caminharmos, levantemos poeira. Somos criaturas e estamos cheios de defeitos. Eu diria até que os teremos sempre; são sombras que fazem ressaltar mais em nossa alma a graça de Deus e as nossas tentativas de corresponder ao favor divino. E esse claro-escuro nos tornará humanos, humildes, compreensivos, generosos.
Não nos enganemos: se na nossa vida contamos com o nosso brio e com vitórias, devemos contar também com desfalecimentos e com derrotas. Essa foi sempre a peregrinação terrena dos cristãos, mesmo dos que veneramos hoje nos altares. Lembramo-nos de Pedro, de Agostinho, de Francisco? Nunca me agradaram essas biografias de santos que, com toda a ingenuidade, mas também com falta de doutrina, nos apresentavam as façanhas desses homens como se tivessem sido confirmados na graça desde o seio materno. Não. As verdadeiras biografias dos heróis cristãos são como as nossas vidas: lutavam e ganhavam, lutavam e perdiam. E então, contritos, voltavam à luta.
Não nos estranhe sermos derrotados com relativa freqüência, geralmente ou até sempre em matérias de pouca importância, que nos ferem como se tivessem muita. Se há amor de Deus, se há humildade, se há perseverança e tenacidade em nossa milícia, essas derrotas não terão excessiva importância, porque chegarão as vitórias, que serão glória aos olhos de Deus. Não existem fracassos quando nos portamos com intenção reta e com o propósito de cumprir a vontade de Deus, contando sempre com a sua graça e o nosso nada.
77 Mas temos à nossa espreita um inimigo poderoso, que se opõe ao nosso desejo de encarnar com perfeição a doutrina de Cristo: a soberba, que cresce quando não procuramos descobrir, depois dos fracassos e das derrotas, a mão benfazeja e misericordiosa do Senhor. Então a alma enche-se de penumbras - de triste escuridão -, e julga-se perdida. E a imaginação inventa obstáculos que não são reais, que desapareceriam se os encarássemos simplesmente com um pouco de humildade. A soberba e a imaginação levam às vezes a alma a enveredar por tortuosos calvários; mas nesses calvários não se encontra Cristo, porque onde está o Senhor sempre se goza de paz e de alegria, ainda que a alma se sinta em carne viva e rodeada de trevas.
Outro inimigo hipócrita da nossa santificação: pensar que esta batalha interior tem que se dirigir contra obstáculos extraordinários, contra dragões que respiram fogo. É mais uma manifestação de orgulho. Queremos lutar, mas estrondosamente, com clamores de trombetas e tremular de estandartes.
Devemos convencer-nos que o maior inimigo da rocha não é a picareta ou machado, nem o golpe de qualquer outro instrumento, por mais contundente que seja: é essa água miúda, que se infiltra, gota a gota, por entre as fendas do penhasco, até arruinar a sua estrutura. O maior perigo para o cristão é desprezar a luta nessas escaramuças que calam pouco a pouco na alma, até a tornarem frouxa, quebradiça e indiferente, insensível aos apelos de Deus.
Ouçamos o Senhor, que nos diz: Quem é fiel no pouco, também o é no muito, e quem é justo no pouco, também o é no muito (Lc XVI, 10). É como se Ele nos lembrasse: luta a cada instante nos detalhes aparentemente pequenos, mas grandes aos meus olhos; cumpre com pontualidade o dever; sorri a quem precise, ainda que tenhas a alma dorida; dedica sem regateios o tempo necessário à oração; acode em auxílio dos que te procuram; pratica a justiça, ampliando-a com a graça da caridade.
São estas e outras semelhantes as moções que sentiremos cada dia diante de nós, como um aviso silencioso para que nos treinemos no desporto sobrenatural do domínio próprio. Que a luz de Deus nos ilumine e nos leve a perceber as suas advertências; que Deus nos ilumine e nos leve a perceber as suas advertências; que nos ajude a lutar, que esteja do nosso lado na vitória; que não nos abandone na hora da queda, porque assim nos encontraremos sempre em condições de nos levantarmos e de continuar combatendo.
Não podemos parar. O Senhor pede-nos uma luta cada vez mais rápida, cada vez mais profunda, cada vez mais extensa. Estamos obrigados a superar-nos, porque, nesta competição, a única meta é chegar à glória do céu. E se não chegarmos ao céu, nada terá valido a pena.
OS SACRAMENTOS DA GRAÇA DE DEUS
78 Quem deseja lutar serve-se dos meios adequados. E os meios não mudaram nestes vinte séculos de cristianismo: oração, mortificação e frequência de Sacramentos. Como a mortificação é também oração - oração dos sentidos -, bastam-nos duas palavras para descrever esses meios: oração e Sacramentos.
Gostaria que considerássemos agora esse manancial de graça divina que são os Sacramentos, maravilhosa manifestação da misericórdia de Deus. Meditemos devagar na definição do Catecismo de São Pio V; determinados sinais sensíveis que causam a graça, e ao mesmo tempo a declaram, como que pondo-a diante dos olhos (Catechismus Romanus Concilii Tridentini II c. 1, 3). Deus Nosso Senhor é infinito, seu amor é inesgotável, sua clemência e sua piedade para conosco não admitem limites. E, embora nos conceda a sua graça de muitas outras maneiras, instituiu expressa e livremente - só Ele o podia fazer - esses sete sinais eficazes, para que de um modo estável, simples e acessível a todos, os homens pudessem participar dos méritos da Redenção.
Se se abandonam os Sacramentos, desaparece a verdadeira vida cristã. Não obstante, sabemos que, particularmente nesta época, não falta quem pareça esquecer - e chegue até a desprezar - esta corrente redentora da graça de Cristo. É doloroso falar desta chaga de uma sociedade que se chama cristã, mas torna-se necessário fazê-lo, para que em nossas almas se firme o desejo de recorrer com mais amor e gratidão a essas fontes de santificação.
Decidem sem o menor escrúpulo adiar o batismo dos recém-nascidos, e assim cometem um gave atentado contra a justiça e contra a caridade, privando esses seres da graça da fé, do tesouro incalculável da inabitação da Santíssima Trindade na alma, que vem ao mundo manchada pelo pecado original. Pretendem também desvirtuar a natureza própria do Sacramento da Crisma, em que a Tradição viu sempre unanimemente um fortalecimento da vida espiritual, uma efusão silenciosa e profunda do Espírito Santo, para que, sobrenaturalmente robustecida, a alma possa lutar - miles Christi, como soldado de Cristo - nessa batalha interior contra o egoísmo e a concupiscência.
Se se perde a sensibilidade para as coisas de Deus, dificilmente se entenderá também o Sacramento da Penitência. A confissão sacramental não é um diálogo humano, mas um colóquio divino; é um tribunal de segura e divina justiça e sobretudo de misericórdia, com um juiz amoroso que não deseja a morte do pecador, mas que se converta e viva (Ez XXXIII, 11).
É verdadeiramente infinita a ternura de Nosso Senhor. Reparemos com que delicadeza trata os seus filhos. Fez do matrimônio um vínculo santo, imagem da união de Cristo com a sua Igreja (Cfr. Eph V, 32), um grande Sacramento em que se alicerça a família cristã, que há de ser, com a graça de Deus, um ambiente de paz e de concórdia, escola de santidade. Os pais são cooperadores de Deus. Daí procede o amável dever de veneração que cabe aos filhos. Com razão se pode chamar o quarto mandamento de dulcíssimo preceito do Decálogo, como escrevi há muitos anos. Quando se vive o matrimônio como Deus quer, santamente, o lar torna-se um recanto de paz, luminoso e alegre.
79 Pela Ordem Sacerdotal, nosso Pai-Deus conferiu-nos a possibilidade de que alguns fiéis, em virtude de uma nova e inefável infusão do Espírito Santo, recebessem um caráter indelével na alma, que os configura com Cristo-Sacerdote, para atuarem em nome de Jesus Cristo, Cabeça do seu Corpo Místico (Cfr. Concilium Tridentinum, sess. XXIII, c. 14. Concilium Vaticanum II, Decr.Presbyterorum ordinis, n. 2). Através desse sacerdócio ministerial, que difere essencialmente - e não com uma simples diferença de grau (Cfr. Concilium Vaticanum II, Const. Lumen Gentium, n. 10) do sacerdócio comum de todos os fiéis -, os ministros sagrados podem consagrar o Corpo e o Sangue de Cristo, oferecer a Deus o Santo Sacrifício, perdoar os pecados na confissão sacramental e exercer o ministério da doutrina in iis quae sunt ad Deum (Heb V, 1), em tudo e somente naquilo que se refere a Deus.
Por isso, o sacerdote deve ser exclusivamente um homem de Deus e repelir a idéia de brilhar em campos onde os demais cristãos não precisam dele. O sacerdote não é um psicólogo, nem um sociólogo, nem um antropólogo: é outro Cristo, o próprio Cristo, para cuidar das almas de seus irmãos. Seria triste que o sacerdote, baseando-se numa ciência humana - que, se se dedica à sua tarefa sacerdotal, cultivará somente como amador e aprendiz - se julgasse só por isso habilitado a pontificar em teologia dogmática ou moral. A única coisa que faria seria demonstrar uma dupla ignorância - na ciência humana e na ciência teológica -, mesmo que pelo seu ar superficial de sábio conseguisse enganar alguns leitores ou ouvintes indefesos.
É fato público que alguns eclesiásticos parecem hoje dispostos hoje a fabricar uma nova Igreja, traindo Cristo, trocando os fins espirituais - a salvação das almas, uma a uma - por fins temporais. Se não resistem a essa tentação, deixarão de cumprir o seu ministério sagrado, perderão a confiança e o respeito do povo e causarão uma terrível destruição dentro de Igreja; intrometendo-se, além disso, indevidamente, na liberdade política dos cristãos e dos demais homens, com a conseqüente confusão - eles mesmos se tornam perigosos - na convivência civil. A Sagrada Ordem é o sacramento do serviço sobrenatural aos irmãos na fé; alguns parecem querer convertê-la em instrumento terreno de um novo despotismo.
80 Mas continuemos a contemplar a maravilha dos Sacramentos. Na Unção dos enfermos, como agora se chama a Extrema-Unção, assistimos a uma amorosa preparação da viagem que terminará na casa do Pai. E pela Sagrada Eucaristia, sacramento - se assim nos podemos expressar - da prodigalidade divina, Deus concede-nos a sua graça e se nos entrega Ele mesmo: Jesus Cristo, que está sempre realmente presente - não apenas durante a Santa Missa - com seu Corpo, sua Alma, seu Sangue e sua Divindade.
Penso repetidas vezes na responsabilidade que têm os sacerdotes de assegurar a todos os cristãos esse canal divino dos Sacramentos. A graça de Deus vem em socorro de cada alma; cada criatura requer uma assistência concreta, pessoal. As almas não podem ser tratadas em massa! Não é lícito ofender a dignidade humana e a dignidade dos filhos de Deus deixando de atender pessoalmente a cada um com a humildade de quem se sabe instrumento e veículo do amor de Cristo: porque cada alma é um tesouro maravilhoso; cada homem é único, insubstituível. Cada um vale todo o sangue de Cristo.
Falávamos antes de luta. Mas a luta exige treino, alimentação adequada, remédios urgentes em caso de doença, de contusões, de feridas. Os Sacramentos - principal remédio da Igreja - não são supérfluos: quando os abandonamos voluntariamente, já não podemos dar um só passo no seguimento de Jesus Cristo; necessitamos deles como da respiração, da circulação do sangue ou da luz, para sabermos apreciar em qualquer instante o que o Senhor quer de nós.
A acética do cristão exige fortaleza, e essa fortaleza procede do Criador. Nós somos a escuridão, e Ele é claríssimo resplendor; somos a enfermidade, e Ele a saúde vigorosa; somos a escassez, e Ele a infinita riqueza; somos a fraqueza e Ele, quem nos sustenta, quia tu es, Deus, fortitudo mea (Ps XLII, 2), porque tu és sempre, ó meu Deus, a nossa fortaleza. Nada há nesta terra capaz de se opor ao jorrar impaciente do Sangue redentor de Cristo. Mas a pequenez humana pode toldar os olhos e ocultar-nos a grandeza divina. Daí que todos os fiéis, especialmente os que têm por ofício dirigir - servir - espiritualmente o Povo de Deus, tenham a responsabilidade de não cegar as fontes da graça, de não se envergonharem da Cruz de Cristo.
RESPONSABILIDADE DOS PASTORES
81 Na Igreja de Deus, é obrigação de todos nós perseverarmos com firmeza no propósito de ser sempre mais leais à doutrina de Cristo. Ninguém está dispensado. Se os pastores não lutassem pessoalmente por adquirir delicadeza de consciência, respeito fiel ao dogma e à moral - que constituem o depósito da fé e o patrimônio comum - tornar-se-iam realidade as palavras proféticas de Ezequiel: Filho do homem, profetiza contra os pastores de Israel; profetiza e diz a esses pastores: Assim fala o Senhor Deus: Ai dos pastores de Israel que se apascentam a si mesmos! Porventura não são os rebanhos que devem ser apascentados pelos pastores? Vós bebestes o seu leite e vestistes as suas lãs... Não fortalecestes as ovelhas fracas e não curastes as que estavam feridas nem reconduzistes as transviadas; não buscastes as que se tinham perdido e a todas tratastes com violência e dureza (Ez XXXIV 2-4).
São repreensões fortes; porém, mais grave é a ofensa que se faz a Deus quando, tendo recebido a incumbência de velar pelo bem espiritual de todos, se maltratam as almas, privando-as da água limpa do Batismo, que regenera a alma; do óleo balsâmico do Crisma, que fortalece; do tribunal que perdoa, do alimento que dá a vida eterna.
Quando podem acontecer estas coisas? Quando se abandona esta guerra de paz. Quem não luta expõe-se a qualquer das escravidões que sabem agrilhoar os corações de carne: a escravidão de uma visão exclusivamente humana, a escravidão do desejo opressivo do poder e do prestígio temporal, a escravidão da vaidade, a escravidão do dinheiro, a servidão da sensualidade.
Se alguma vez tropeçamos com pastores indignos desse nome - Deus pode permitir semelhante prova -, não nos escandalizemos. Cristo prometeu assistência infalível e indefectível à sua Igreja, mas não garantiu a fidelidade dos homens que a compõem. A estes não faltará graça abundante e generosa, se souberam contribuir com o pouco que Deus lhes pede: vigiar atentamente, empenhando-se em remover com a graça de Deus os obstáculos à santidade. Se não houver luta, mesmo os que parecem estar muito alto podem estar muito baixo aos olhos de Deus. Conheço as tuas obras, a tua conduta. Consideram-te vivo, mas estás morto. permanece atento e consolida o resto que está para morrer, pois não achei as tuas obras perfeitas diante do meu Deus. Lembra-te da doutrina que recebeste e ouviste. Observa-a e arrepende-te (Apoc III, 1-3).
São exortações do Apóstolo São João, o século I, dirigidas a quem tinha a responsabilidade da Igreja na cidade de Sardes. Porque o possível debilitamento do senso de responsabilidade em alguns pastores não é um fenômeno moderno; surge já nos tempos dos Apóstolos, no próprio século em que Jesus Cristo Nosso Senhor viveu na terra. É que ninguém está seguro, se deixa de lutar consigo mesmo. Ninguém se pode salvar sozinho. Todos na Igreja necessitamos desses meios específicos que nos fortalecem: da humildade, que nos persuade a aceitar ajuda e conselho; das mortificações, que aplainam o coração, para que nele reine Cristo; do estudo da Doutrina segura de sempre, que nos leva a conservar em nós a fé e a propagá-la.
HOJE E ONTEM
82 A liturgia do Domingo de Ramos põe na boca dos cristãos este cântico: Levantai, portas, os vossos dintéis; levantai-vos, portas antigas, para que entre o Rei da glória (Antífona na distribuição dos Ramos). Quem permanecer recluído na cidadela do seu egoísmo não descerá ao campo de batalha. Mas, se levantar as portas da fortaleza e permitir que entre o Rei da paz, sairá com Ele a combater contra toda essa miséria que embaraça os olhos e insensibiliza a consciência.
Levantai as portas antigas. Esta exigência de combate não é nova no cristianismo. É a verdade perene. Sem luta, não se consegue a vitória; sem vitória não se alcança a paz. Sem paz, a alegria humana é apenas uma alegria aparente, falsa, estéril, que não se traduz em ajuda aos homens, em obras de caridade e de justiça, de perdão e de misericórdia, em serviço de Deus.
Hoje em dia, dentro e fora da Igreja, em cima e em baixo, dá a impressão de que muitos renunciaram à luta - a essa guerra pessoal contra as claudicações próprias -, para se entregarem de armas e bagagem a servidões que envilecem a alma. Esse perigo estará sempre à espreita de todos os cristãos.
Por isso, é preciso pedir insistentemente à Santíssima Trindade que tenha compaixão de todos. Ao falar destas coisas, estremeço ante o pensamento da justiça de Deus. Recorro à sua misericórdia, à sua compaixão, para que não olhe para os nossos pecados, mas para os méritos de Cristo e de sua Santa Mãe, que é também nossa Mãe, para os do Patriarca São José, que lhe serviu de Pai, para os dos Santos.
O cristão pode viver com a segurança de que, se tiver desejos de lutar, Deus o pegará pela mão direita, como se lê na Missa da festa de hoje. Foi Jesus - que entra em Jerusalém montado num pobre jumentinho, o Rei da Paz -, foi Jesus quem o disse: O reino dos céus se alcança à força e são os violentos que o arrebatam (Mt XI, 12). Essa força não se traduz em violência contra os outros: é fortaleza para combater as fraquezas e misérias próprias, valentia para não mascarar as infidelidades pessoais, audácia para confessar a fé, mesmo quando o ambiente é adverso.
Hoje, como ontem, do cristão espera-se heroísmo. Heroísmo em grandes contendas, se for preciso. Heroísmo - e será o normal - nas pequenas pendências de cada dia. Quando se luta continuamente, com Amor e deste modo que parece insignificante, o Senhor está sempre a lado de seus filhos, como pastor a moroso: Eu mesmo apascentarei as minhas ovelhas e as farei repousar. Procurarei a ovelha perdida, reconduzirei a desgarrada, vendarei a que estava ferida, restabelecerei as enfermas... Viverão com segurança na sua terra. Quando eu tiver quebrado as cadeias do seu jugo e as tiver libertado das mãos dos seus tiranos, saberão que eu sou o Senhor (Ez XXXIV, 15-16; 27).
« A EUCARISTIA, MISTÉRIO DE FÉ E DE AMOR »
(Homilia pronunciada em 14 de Abril de 1960, Quinta-feira Santa)
83 Antes da festa da Páscoa, sabendo Jesus que chegara a sua hora de passar deste mundo ao Pai, havendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim (Ioh XIII, 1). Este versículo de São João anuncia ao leitor do seu Evangelho, que algo de importante está para acontecer nesse dia. É um preâmbulo ternamente afetuoso, paralelo ao do relato de São Lucas: Ardentemente - afirma o Senhor - desejei comer convosco esta páscoa, antes de padecer (Lc XXII, 15).
Comecemos desde já a pedir ao Espírito Santo que nos prepare para podermos entender cada expressão e cada gesto de Jesus Cristo: porque queremos viver vida sobrenatural, porque o Senhor nos manifestou a sua vontade de se dar a cada um de nós em alimento da alma, e porque reconhecemos que só Ele tem palavras de vida eterna (Ioh VI, 69).
A fé leva-nos a confessar com Simão Pedro: Nós acreditamos e sabemos que tu és o Cristo, o Filho de Deus (Ioh VI, 70). E é essa mesma fé, fundida com a nossa devoção, que nesses momentos transcendentes nos incita a imitar a audácia de João, a aproximar-nos de Jesus e a reclinar a cabeça no peito do Mestre (Cfr. Ioh XIII, 25), que amava ardentemente os seus e, como acabamos de ouvir, iria amá-los até o fim.
Todas as formas de expressão se revelam pobres quando pretendem explicar, mesmo de longe, o mistério da Quinta-Feira Santa. Mas não é difícil imaginar ao menos em parte os sentimentos do Coração de Jesus Cristo naquela tarde, a última que passaria com os seus antes do sacrifício do Calvário.
Tenhamos em mente a experiência tão humana da despedida de duas pessoas que se amam. Desejariam permanecer sempre juntas, mas o dever - seja ele qual for - obriga-as a afastar-se uma da outra. Não podem continuar sem se separarem, como gostariam. Nessas situações, o amor humano, que, por maior que seja, é sempre limitado, recorre a um símbolo: as pessoas que se despedem trocam lembranças entre si, possivelmente uma fotografia, com dedicatória tão ardente que é de admirar que o papel não se queime. Mas não conseguem muito mais, pois o poder das criaturas não vai tão longe quanto o seu querer.
Porém o Senhor pode o que nós não podemos. Jesus Cristo, perfeito Deus e perfeito Homem, não nos deixa um símbolo, mas a própria realidade: fica Ele mesmo. Irá para o Pai, mas permanecerá entre os homens. Não nos deixará um simples presente que nos lembre a sua memória, uma imagem que se dilua com o tempo, como a fotografia que em breve se esvai, amarelece e perde sentido para os que não tenham sido protagonistas daquele momento amoroso. Sob as espécies do pão e do vinho encontra-se o próprio Cristo, realmente presente com seu Corpo, seu Sangue, sua Alma e sua Divindade.
A ALEGRIA DA QUINTA-FEIRA SANTA
84 Como compreendemos agora o clamor incessante dos cristãos, em todos os tempos, diante da hóstia Santa! Canta, ó língua, o mistério do corpo glorioso e do Sangue precioso que o Rei de todos os povos, nascido de Mãe fecunda, derramou para o resgate do mundo (Hino Pange lingua). Ê preciso adorar devotamente este Deus escondido (Cfr. Adoro te devote, de São Tomás de Aquino). Ele é o mesmo Jesus Cristo que nasceu de Maria Virgem; o mesmo que padeceu e foi imolado na Cruz; o mesmo de cujo peito trespassado jorram água e sangue (Cfr. Ave Verum).
Este é o sagrado banquete em que se recebe o próprio Cristo, se renova a memória da sua Paixão e, por meio dEle, a alma chega a um convívio íntimo com o seu Deus e possui um penhor da glória futura (Cfr. hino O sacrum convivium). Assim resumiu a liturgia da Igreja, em breves estrofes, os capítulos culminantes da história da caridade ardente que o Senhor nos dispensa.
O Deus da nossa fé não é um ser longínquo, que contemple com indiferença a sorte dos homens, seus anseios, suas lutas, suas angústias. É um Pai que ama seus filhos até o extremo de lhes enviar o Verbo, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, para que, pela sua encarnação, morra por eles e os redima; o mesmo Pai amoroso que a gora nos atrai suavemente a Si, mediante a ação do Espírito Santo que habita em nossos corações.
A alegria da Quinta-Feira Santa nasce de compreendermos que o Criador se excedeu no carinho por suas criaturas. E como se não bastassem todas as outras provas da sua misericórdia, Nosso Senhor Jesus Cristo instituiu a Eucaristia para que pudéssemos tê-lo sempre junto de nós e porque - tanto quanto nos é possível entender -, movido por seu Amor, Ele, que de nada necessita, não quis prescindir de nós. A Trindade enamorou-se do homem, elevado à ordem da graça e feito à sua imagem e semelhança (Gen I, 26), redimiu-o do pecado - do pecado de Adão, que recaiu sobre toda a sua descendência, e dos pecados pessoais de cada um -, e deseja vivamente morar em nossa alma: Se alguém me ama, guardará a minha palavra, e meu Pai o amará, e viremos a ele, e nele faremos a nossa morada (Ioh XIV, 23).
A EUCARISTIA E O MISTÉRIO DA TRINDADE
85 Esta corrente trinitária de amor pelos homens perpetua-se de maneira sublime na Eucaristia. Há já muitos anos, todos aprendemos no catecismo que a Sagrada Eucaristia pode ser considerada como Sacrifício e como Sacramento; e que o Sacramento se nos apresenta como Comunhão e como um tesouro no altar, no Sacrário.
A Igreja dedica outra festa ao mistério Eucarístico, ao Corpo de Cristo - Corpus Christi -, presente em todos os tabernáculos do mundo. Hoje, nesta Quinta-Feira Santa, vamos deter-nos na Sagrada Eucaristia, Sacrifício e alimento, na Santa Missa e na Sagrada Comunhão.
Falava da corrente trinitária de amor pelos homens. E onde podemos percebê-la melhor do que na Missa? A Trindade inteira intervém no santo sacrifício do altar. Por isso agrada-me tanto repetir na coleta. na secreta e na oração depois da Comunhão, aquelas palavras finais: Por Jesus Cristo, Nosso Senhor, vosso Filho - dirigindo-nos ao Pai -, que convosco vive e reina na unidade do Espírito Santo Deus, por todos os séculos dos séculos. Amém.
Na Missa, a oração ao Pai é constante. O sacerdote é um representante do Sacerdote eterno, Jesus Cristo, que é ao mesmo tempo a vítima. E a ação do Espírito Santo na Missa não é menos inefável nem menos certa. Pela virtude do Espírito Santo, escreve São João Damasceno, efetua-se a conversão do pão no Corpo de Cristo (São João Damasceno, De fide orthodoxa, 13 (PG 194, 1139)).
Esta ação do Espírito Santo exprime-se claramente no momento em que o sacerdote invoca a bênção divina sobre a oferenda: Vinde, santificador onipotente, eterno Deus, e abençoai este sacrifício preparado para o vosso santo nome (Missal Romano, Ofertório, Invocação ao Espírito Santo), este holocausto que dará ao Nome santíssimo de Deus a glória que lhe é devida. A santificação que imploramos é atribuída ao Paráclito. que o Pai e o Filho nos enviam. Reconhecemos também essa presença ativa do Espírito Santo no sacrifício quando dizemos, pouco antes da Comunhão: Senhor Jesus Cristo, Filho do Deus vivo, que, por vontade do Pai e com a cooperação do Espírito Santo, por vossa morte destes as vida ao mundo... (Missal Romano, Orações preparatórias da Comunhão).
86 Toda a Trindade está presente no sacrifício do Altar. Por vontade do Pai e com a cooperação do Espírito Santo, o Filho se oferece em oblação redentora. Aprendamos a ganhar intimidade com a Trindade Beatíssima, Deus Uno e Trino: três Pessoas divinas na unidade da sua substância, do seu amor e da sua ação santificadora cheia de eficácia.
Logo a seguir ao Lavabo, o sacerdote invoca: Recebei ó Trindade Santa, esta oblação que Vos oferecemos em memória da Paixão, da Ressurreição e da Ascensão de Nosso Senhor Jesus Cristo (Missal Romano, Ofertório, Oferenda à Santíssima Trindade). E, no final da Missa, temos outra oração de inflamado acatamento ao Deus Uno e Trino: Placeat tibi, Sancta Trinitas, obsequium servitutis meae... Seja-vos agradável, ó Trindade Santíssima, o tributo da minha servidão, afim de que este sacrifício que eu, embora indigno, apresentei aos olhos de Vossa majestade, seja aceito por Vós e, por vossa misericórdia, atraia o vosso favor sobre mim e sobre todos aqueles por quem o ofereci (Missal Romano, Orações que precedem a bênção final).
A Missa - insisto - é ação divina, trinitária, não humana. O sacerdote que a celebra está a serviço dos desígnios do Senhor, emprestando-lhe seu corpo e sua voz. Não atua, porém, em nome próprio, mas in persona et in nomine Christi, na Pessoa de Cristo e em nome de Cristo.
O amor da Trindade pelos homens faz com que, da presença de Cristo na Eucaristia, nasçam para a Igreja e para a humanidade todas as graças. Este é o sacrifício profetizado por Malaquias: Desde o nascer do sol até o ocaso, é grande meu nome entre os povos; e em todo o lugar se oferece ao meu nome um sacrifício fumegante e uma oblação pura (Mal I, 11). É o Sacrifício de Cristo, oferecido ao Pai com a cooperação do Espírito Santo: oblação de valor infinito, que eterniza em nós a Redenção que os sacrifícios da Antiga Lei não podiam alcançar.
A SANTA MISSA NA VIDA DO CRISTÃO
87 A Santa Missa situa-nos assim perante os mistérios primordiais da fé, porque é a própria doação da Trindade à Igreja. Compreende-se deste modo que a missa seja o centro e a raiz da vida espiritual do cristão. É o fim de todos os sacramentos (Cfr. São Tomás, S. Th. III, q. 65, a. 3). Na Missa, encaminha-se para a sua plenitude a vida da graça que foi depositada em nós pelo Batismo e que cresce fortalecida pelo Crisma. Quando participamos da Eucaristia, escreve São Cirilo de Jerusalém, apresentamos a espiritualização deificante do Espírito Santo, que não só nos configura com Cristo - como acontece no Batismo -, mas nos cristifica integralmente, associando-nos à plenitude de Cristo Jesus (Catequeses, 22, 3).
Na medida em que nos cristifica, a efusão do Espírito Santo leva-nos a conhecer a nossa condição de filhos de Deus. O Paráclito que é caridade, ensina-nos a fundir com essa virtude toda a nossa vida; e assim, consummati in unum (Ioh XVII, 23), feitos uma só coisa com Cristo, podemos ser entre os homens o que Santo Agostinho afirma da Eucaristia: sinal de unidade, vínculo de Amor (Santo Agostinho, In Ioannis Evangelium Tratactus, 26, 13 (PL 35, 1613)).
Não revelo nada de novo se digo que alguns cristãos têm uma visão muito pobre da Santa Missa, que muitos a encaram como um mero rito exterior, quando não como um convencionalismo social. É que os nossos corações, tão mesquinhos, são capazes de acompanhar rotineiramente a maior doação de Deus aos homens. Na Missa, nesta Missa que agora celebramos, intervém de um modo especial, repito, a Trindade Santíssima. para correspondermos a tanto amor, é preciso que haja de nossa parte uma entrega total do corpo e da alma, pois ouvimos o próprio Deus, falamos com Ele; nós o vemos e saboreamos. E quando as palavras se torna insuficientes, cantamos, animando a nossa língua - Pange, lingua! - a proclamar as grandezas do Senhor na presença de toda a humanidade.
88 Viver a Santa Missa é permanecer em oração contínua, convencer-se de que é para cada um de nós um encontro pessoal com Deus, em que adoramos, louvamos, pedimos, damos graças, reparamos por nossos pecados, nos purificamos e nos sentimos uma só coisa em Cristo e com todos os cristãos.
Talvez nos tenhamos perguntado algumas vezes como podemos corresponder a tanto amor de Deus; talvez nesses momentos tenhamos desejado ver claramente exposto um programa de vida cristã. A solução é fácil e está ao alcance de todos os fiéis: participar amorosamente da Santa Missa, aprender na Missa a ganhar intimidade com Deus, porque neste sacrifício se encerra tudo o que o Senhor quer de nós.
Desejaria recordar agora o desenrolar das cerimônias litúrgicas, que tantas vezes temos observado. Seguindo-as passo a passo, é bem possível que o Senhor nos faça descobrir em que aspectos devemos melhorar, que vícios extirpar, como deve ser o nosso relacionamento fraterno com todos os homens.
O sacerdote dirige-se ao altar de Deus, do Deus que alegra a nossa juventude. A Santa Missa inicia-se com um cântico de alegria, porque Deus está presente. É a alegria que, unida ao reconhecimento e ao amor, se manifesta no beijo depositado no altar, símbolo de Cristo e memória dos santos: um espaço pequeno e santificado, porque nesta área se prepara o Sacramentano da infinita eficácia.
O Confiteor coloca-nos perante a nossa indignidade; mão é a lembrança abstrata da culpa, mas a presença, bem concreta, dos nossos pecados e das nossas faltas. Por isso repetimos: Kyrie eleison, Christe eleison, Senhor, tende piedade de nós; Cristo, tende piedade de nós. Se o perdão de que necessitamos estivesse em função dos nossos méritos, nasceria agora na nossa alma uma amarga tristeza. Mas, graças à bondade divina, o perdão nos vem da misericórdia de Deus, a quem já louvamos - Glória -, porque só Vós sois o Santo, só Vós o Senhor, só Vós o Altíssimo, Jesus Cristo, com o Espírito Santo, na glória de Deus Pai.
89 Ouvimos a seguir a Palavra da Escritura, a Epístola e o Evangelho, luzes do Paráclito, que fala com voz humana para que a nossa inteligência saiba e contemple, para que a vontade se robusteça e a ação se cumpra, porque somos um só povo que confessa uma só fé, um Credo, um povo congregado na unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo (São Cipriano, De dominica oratione, 23 (PL 4, 553)).
Segue-se o Ofertório: o pão e o vinho dos homens. Não é muito, mas a oração os acompanha: Em espírito de humildade e de coração contrito sejamos por Vós recebidos, Senhor, e que o nosso sacrifício se cumpra hoje na vossa presença de modo que Vos seja agradável, ó Senhor Deus. Irrompe de novo a lembrança da nossa miséria e o desejo de que tudo o que se destina ao Senhor esteja limpo e purificado: Lavarei minhas mãos, amo o decoro da tua casa.
Há poucos instantes, antes do Lavabo, invocávamos o Espírito Santo, pedindo-lhe que abençoasse o sacrifício oferecido em seu santo Nome. Terminada a purificação, dirigimo-nos à Trindade - Suscipe, Sancta Trinitas -, para que acolha o que oferecemos em memória da vida, da Paixão, da Ressurreição e da Ascensão de Cristo, em honra de Maria, sempre Virgem e em honra de todos os Santos.
Que a oblação redunde em salvação de todos- Orate, fratres, reza o sacerdote -, porque este sacrifício é meu e vosso, de toda a Santa Igreja. Orai, irmãos, mesmo que sejam poucos os que se encontram reunidos, mesmo que esteja materialmente presente um só cristão, ou apenas o celebrante, porque qualquer Missa é o holocausto universal, o resgate de todas as tribos e línguas e povos e nações (Cfr. Apoc V, 9).
Pela Comunhão dos Santos, todos os cristãos recebem as graças de cada Missa, quer se celebre perante milhares de pessoas ou tenha por assistente um menino, talvez distraído, que ajuda o sacerdote. Em qualquer caso, a terra e o céu se unem para entoar com os Anjos do Senhor: Sanctus, Sanctus, Sanctus...
Eu aplaudo e louvo com os Anjos. Não me é difícil, porque sei que me encontro rodeado por eles quando celebro a Santa Missa. Estão adorando a Trindade. Como sei também que, de algum modo, intervém a Santíssima Virgem, pela sua íntima união com a Trindade Beatíssima e porque é Mãe de Cristo, da sua Carne e do seu Sangue, Mãe de Jesus Cristo, perfeito Deus e perfeito Homem. Jesus Cristo, que foi concebido nas entranhas de Maria Santíssima sem intervenção de homem, mas apenas pela virtude do Espírito Santo, tem o mesmo sangue de sua Mãe: e é esse sangue que se oferece no sacrifício redentor, no Calvário e na Santa Missa.
90 Assim se entra no Canon, com a confiança filial que nos leva a chamar clementíssimo ao nosso Pai-Deus. Pedimos-lhe pela Igreja e por todos na Igreja, pelo Papa, por nossa família, pelos nossos amigos e companheiros. E o católico que tem coração universal, pede pelo mundo inteiro, porque nada pode ficar à margem do seu zelo vibrante. E para que a oração seja acolhida, evocamos e entramos em comunicação com a gloriosa sempre Virgem Maria e com um punhado de homens que foram os primeiros a seguir Cristo e por Ele morreram.
Quam oblationem... Aproxima-se o momento da Consagração. Agora, na Missa, é outra vez Cristo que atua através do sacerdote: Isto é o meu Corpo. Este é o cálice do meu Sangue. Jesus está conosco! Pela transubstanciação , renova-se a infinita loucura divina ditada pelo Amor. Quando hoje se repetir esse momento, saibamos dizer ao Senhor, sem ruído de palavras, que nada poderá nos separar dEle, que a disponibilidade com que quis permanecer - inerme - nas aparências, tão frágeis, do pão e do vinho, nos converteu voluntariamente em escravos: Praesta meae menti de te vivere, et te illi semper dulce sapere (Adoro te devote); fazei com que eu viva sempre de Vós e saboreie sempre a doçura do vosso amor.
Mais pedidos, porque nós, homens, estamos quase sempre inclinados a pedir: por nossos irmãos defuntos, por nós mesmos. Aqui invocamos todas as nossas infidelidades, as nossas misérias. A carga é grande, mas Ele quer levá-la por nós e conosco. Termina o Canon com outra invocação à Santíssima Trindade: Per Ipsum, et cum Ipso, et in Ipso..., por Cristo, com Cristo e em Cristo, nosso Amor, a Vós, ó Pai Todo Poderoso, seja dada toda a honra e toda a glória, agora e para sempre, na unidade do Espírito Santo.
91 Jesus é o Caminho, o Medianeiro: nEle, tudo; fora dEle, nada. Em Cristo e ensinados por Ele, atrevemo-nos a chamar Pai Nosso ao Todo-Poderoso: Aquele que fez o céu e a terra é esse Pai entranhável que espera que voltemos a Ele continuamente, cada um como novo e constante filho pródigo.
Ecce Agnus Dei... Domine, non sum dignus... Vamos receber o Senhor. Quando na terra se recebem pessoas investidas de autoridade, preparam-se luzes, música, trajes de gala. Para hospedarmos Cristo na nossa alma, de que maneira não deveremos preparar-nos? Já nos ocorreu pensar como nos comportaríamos, se só pudéssemos comungar uma vez na vida?
Quando eu era criança ainda não estava estendida a prática da Comunhão frequente. Lembro-me do modo como as pessoas se preparavam para comungar: havia esmero em preparar bem a alma e o corpo. As melhores roupas, o cabelo bem penteado, o corpo fisicamente limpo, talvez até com um pouco de perfume... Eram delicadezas próprias de gente enamorada, de almas finas e retas, que sabiam pagar o Amor com amor.
Com Cristo na alma, termina a Santa Missa. A bênção do Pai, do Filho e do Espírito Santo, acompanha-nos durante todo o dia, na nossa tarefa simples e normal de santificar todas as nobres atividades humanas.
Assistindo à Santa Missa, aprendemos a conviver com cada uma das pessoas divinas: Com o Pai, que gera o Filho; com o Filho que é gerado pelo Pai; e com o Espírito Santo, que procede dos dois. Convivendo com qualquer uma das três Pessoas, convivemos com um só Deus; e convivendo com os três, a Trindade, convivemos igualmente com um só Deus, único e verdadeiro. Amemos a Missa, meus filhos, amemos a Missa. E comunguemos com fome, mesmo que nos sintamos gelados, mesmo que a emotividade não nos acompanhe: comunguemos com fé, com esperança, com inflamada caridade.
A INTIMIDADE COM JESUS CRISTO
92 Não ama a Cristo quem não ama a Santa Missa, quem não se esforça por vivê-la com serenidade e sossego, com devoção e carinho. O amor converte os enamorados em pessoas de sensibilidade fina e delicada; leva-os a descobrir, para que se esmerem em vivê-los, pormenores às vezes insignificantes, mas que trazem a marca de um coração apaixonado. É assim que devemos assistir à Santa Missa. Por isso sempre desconfiei das pessoas empenhadas em ouvir uma Missa curta e atropelada: pareciam-me demonstrar com essa atitude, aliás pouco elegante, não terem percebido ainda o que significa o Sacrifício do altar.
O amor a Cristo, que se oferece por nós, incita-nos a saber encontrar, uma vez terminada a Missa alguns minutos para uma ação de graças pessoal e íntima, que prolongue no silêncio do coração essa outra ação de graças que é a Eucaristia. Como havemos de nos dirigir a Ele, como falar-Lhe, como comportar-nos?
A vida cristã não se compõe de normas rígidas, porque o Espírito Santo não dirige as almas em massa, mas em cada uma infunde propósitos, inspirações e afetos que a ajudarão a reconhecer e a cumprir a vontade do Pai. Penso, não obstante, que em muitas ocasiões o nervo do nosso diálogo com Cristo, da ação de graças após a Santa missa, pode ser a consideração de que o Senhor é para nós o Rei, Médico, Mestre e Amigo.
93 É Rei, e anseia por reinar em nossos corações de filhos de Deus. Mas não imaginemos reinados humanos; Cristo não domina nem procura impor-se, porque não veio para ser servido, mas para servir (Mt XX, 28).
Seu reino é a paz, a alegria, a justiça. Cristo, nosso Rei, não espera de nós raciocínios vãos, mas fatos, porque nem todo aquele que diz Senhor! Senhor! entrará no reino dos céus; mas o que faz a vontade de meu Pai que está nos céus, esse entrará (Mt VII, 21).
É Médico, e cura o nosso egoísmo se deixarmos que a sua graça penetre até o fundo da alma. Jesus advertiu-nos que a pior doença é a hipocrisia, o orgulho que leva a dissimular os pecados próprios. Com o Médico é imprescindível que tenhamos uma sinceridade absoluta, que lhe expliquemos toda a verdade e digamos: Domine, si vis, potes me mundare (Mt VIII, 2), Senhor, se quiseres - e Tu queres sempre -, podes curar-me. Tu conheces a minha debilidade; sinto esses sintomas e experimento estas outras fraquezas. E descobrimos com simplicidade as chagas; e o pus, se houver pus. Senhor, Tu que curaste tantas almas, faz com que, ao ter-te no meu peito ou ao contemplar-te no Sacrário, te reconheça como Médico divino.
É Mestre de uma ciência que só Ele possui: a do amor sem limites a Deus e, em Deus, a todos os homens. Na escola de Cristo, aprende-se que a nossa existência não nos pertence. Ele entregou a sua vida por todos os homens e, se o seguimos, devemos compreender que também nós não podemos apropriar-nos da nossa maneira egoísta, sem partilhar das dores dos outros. Nossa vida é de Deus e temos que gastá-la ao seu serviço, preocupando-nos generosamente com as almas e demonstrando com a palavra e o exemplo a profundidade das exigências cristãs.
Jesus espera que alimentemos o desejo de adquirir essa ciência, para nos repetir: Quem tiver sede, venha a mim e beba (Ioh VII, 37). E respondemos: ensina-nos a esquecer-nos de nós mesmos, para pensar em Ti e em todas as almas. Deste modo o Senhor nos levará para a frente com a sua graça, como quando começávamos a escrever - não nos lembramos daqueles traços verticais que fazíamos na infância, guiados pela mão do professor -, e assim começaremos a saborear a felicidade de manifestar a nossa fé - que já é outra dádiva de Deus - com traços inequívocos da conduta cristã, onde todos possam ler as maravilhas divinas.
É Amigo, o Amigo; Vos autem dixi amicos (Ioh XV, 15). Chama-nos amigos e foi Ele quem deu o primeiro passo; amou-nos primeiro. Mas não impõe o seu amor; oferece-o. E prova-o com o sinal mais claro da amizade: Ninguém tem maior amor do que dá a vida por seus amigos (Ioh XV, 13). Era amigo de Lázaro, e chorou por ele quando o viu morto. E o ressuscitou. Se nos vir frios, apáticos, talvez com a rigidez de uma vida interior que se extingue, seu pranto será vida para nós: Eu te ordeno, meu amigo, levanta-te e anda (Cfr. Ioh XI, 43; Lc V, 24), sai dessa vida mesquinha, que não é vida.
94 Termina a nossa meditação de Quinta-Feira Santa. Se o Senhor nos ajudou - e Ele está sempre disposto a fazê-lo, desde que lhe abramos o coração -, sentiremos a urgência de lhe corresponder no que é mais importante: amar. E saberemos difundir essa caridade entre os demais homens, com uma vida de serviço. Eu vos dei o exemplo (Ioh XIII, 15), insiste Jesus, falando aos seus discípulos depois de lhes ter lavado os pés na noite da Ceia. Afastemos do coração o orgulho, a ambição, os desejos de predomínio e assim, à nossa volta e em nós, reinarão a paz e a alegria, alicerçadas no sacrifício pessoal.
Finalmente um pensamento filial e amoroso para Maria, Mãe de Deus e nossa Mãe. Peço desculpas se evoco mais uma recordação da infância, desta vez relativa a uma imagem muito difundida na minha terra, no tempo em que São Pio X estimulava a prática da comunhão frequente. Representa Maria em adoração à Hóstia santa. Hoje, como então e como sempre, Nossa Senhora ensina-nos a procurar a intimidade com Jesus, a reconhecê-lo e a encontrá-lo nas diversas circunstâncias do dia e, de um modo especial, neste instante supremo - o tempo unindo-se à eternidade - do Santo Sacrifício da Missa: Jesus com gesto de sacerdote eterno, atrai a Si todas as coisas , para as colocar, divino afflante Spiritu, com o sopro do Espírito Santo, na presença de Deus Pai.
« A MORTE DE CRISTO, VIDA DO CRISTÃO »
(Homilia pronunciada em 15 de Abril de 1960, Sexta-Feira Santa)
95 Esta semana, que o povo cristão tradicionalmente chama Santa, oferece-nos uma vez mais a ocasião de considerarmos - de revivermos - os momentos em que se consuma a vida de Jesus. Tudo o que as diversas manifestações da piedade nos trazem à memória, nestes dias, orienta-se certamente para a Ressurreição, que é o fundamento da nossa fé, como escreve São Paulo (Cfr. I Cor XV, 14). Mas não devemos percorrer com excessiva pressa esse caminho; não devemos deixar cair no esquecimento uma coisa muito simples , que talvez nos escape de vez em quando: é que não poderemos participar da Ressurreição do Senhor se não nos unirmos à sua Paixão e à sua Morte (Cfr. Rom VIII, 17). Para acompanharmos Cristo na sua glória, no fim da Semana-Santa, é preciso que penetremos antes no seu holocausto e nos sintamos uma só coisa com Ele, morto no Calvário.
A entrega generosa de Cristo defronta-se com o pecado, essa realidade dura de aceitar, mas inegável; o mistério da iniquidade, a inexplicável maldade da criatura que se levanta, por soberba, contra Deus. A história é tão antiga como a humanidade. Recordemos a queda dos nossos primeiros pais; depois toda essa cadeia de depravações que balizam a marcha dos homens, e, finalmente, as nossas rebeldias pessoais. Não á fácil considerar a perversão que o pecado implica e compreender tudo que a fé nos diz. Devemos tomar consciência de que, mesmo no plano humano, a magnitude da ofensa se mede pela condição do ofendido, pelo seu valor pessoal, pela sua dignidade social, pelas suas qualidades. E o homem ofende a Deus: a criatura renega o seu Criador.
Mas Deus é Amor (I Ioh IV, 8). O abismo de malícia que o pecado encerra foi transposto por uma Caridade infinita. Deus não abandona os homens. Os desígnios divinos previram que, para reparar as nossas faltas, para restabelecer a unidade perdida, não eram suficientes os sacrifícios da Antiga Lei; fazia-se necessária a entrega de um Homem que fosse Deus.
Podemos imaginar - para de algum modo nos aproximarmos deste mistério insondável - que a Trindade Beatíssima se reúne em conselho, em sua contínua relação íntima de amor imenso, e, como resultado dessa decisão eterna, o Filho Unigênito de Deus Pai assume a nossa condição humana, carrega sobre si as nossas misérias e as nossas dores, para acabar cravado com pregos em um madeiro.
Este fogo, este desejo de cumprir o decreto salvador de Deus Pai, atravessa toda a vida de Cristo, desde o seu próprio nascimento em Belém. Ao longo dos três anos em que conviveram com Ele, os discípulos ouvem-no repetir incansavelmente que seu alimento é fazer a vontade dAquele que o enviou (Cfr. Ioh IV, 34). Até que, indo a meio a tarde da primeira Sexta-Feira Santa, se conclui a sua imolação. Inclinando a cabeça, entregou o espírito (Ioh XIX, 30). É com essas palavras que o Apóstolo São João nos descreve a morte de Cristo. Jesus, assumindo todas as culpas dos homens sob o peso da Cruz, morre pela força e vileza dos nossos pecados.
Devemos meditar no Senhor, ferido dos pés à cabeça por nosso amor. Com uma frase que se aproxima da realidade, embora não acabe de exprimir tudo, podemos repetir com um escritor de há séculos: O corpo de Jesus é um retábulo de dores. À vista de Cristo transformado num farrapo, convertido num corpo inerte descido da Cruz e confiado a sua Mãe; à vista desse Jesus despedaçado, poderia concluir- se que essa cena é a manifestação mais clara de uma derrota. Onde estão as multidões que o seguiam? E o reino cujo advento anunciava? No entanto, não é derrota, mas vitória. Agora Cristo acha-se mais perto que nunca do Momento da Ressurreição, da manifestação da glória que conquistou com a sua obediência.
A MORTE DE CRISTO CHAMA-NOS A UMA PLENA VIDA CRISTÃ
96 Acabamos de reviver o drama do Calvário, aquilo que me atreveria a chamar a primeira Missa, a primordial, celebrada por Jesus Cristo. Deus Pai entrega seu Filho à morte. Jesus, o Filho Unigênito, abraça-se ao lenho em que o haviam de justiça-lo, e seu sacrifício é aceito pelo Pai; como fruto da Cruz, derrama-se sobre a humanidade o Espírito Santo (Cfr. Rom III, 24 ss; Heb X, 5 ss; Ioh VII, 39).
Na tragédia da Paixão, consuma-se a nossa própria vida e toda a história humana. A Semana Santa não pode reduzir-se a uma simples recordação, porque é a consideração do mistério de Jesus Cristo, que se prolonga em nossas almas; o cristão está obrigado a ser alter Christus, ipse Christus, outro Cristo, o próprio Cristo. Pelo Batismo, todos fomos constituídos sacerdotes da nossa própria existência, para oferecer vítimas espirituais, que sejam agradáveis a Deus por Jesus Cristo (I Pet II, 5), para realizar cada uma de nossas ações em espírito de obediência à vontade de Deus, e assim perpetuarmos a missão do Deus Homem.
Por contraste, essa realidade nos leva a deter-nos nas nossas desditas, nos nossos erros pessoais. É uma consideração que não nos deve desanimar nem colocar-nos na atitude cética de quem renunciou às grandes esperanças, porque o Senhor reclama-nos tal como somos, para que participemos da sua vida, para que lutemos por ser santos.
A santidade: quantas vezes pronunciamos esta palavra como se fosse um som vazio! Para muitos, chega a ser um ideal inacessível, um lugar comum da ascética, mas não um fim concreto, uma realidade viva. Não pensavam assim os primeiros cristãos, que usavam os nomes dos santos para se chamarem entre si, com toda a naturalidade e com grande frequência: Todos os santos vos saúdam (Rom XVI, 15), saudai a todos os santos em Cristo Jesus (Phil IV, 21).
Situados agora perante o momento do Calvário, em que Jesus já morreu e ainda se não manifestou a glória do seu triunfo, temos uma excelente ocasião para examinarmos os nossos desejos de vida cristã, de santidade; para reagirmos com um ato de fé perante as nossas fraquezas e, confiantes no poder de Deus, fazermos o propósito de depositar amor nas coisas do nosso dia-a-dia. A experiência do pecado tem que nos conduzir à dor, a uma decisão mais amadurecida e mais profunda de ser fiéis, de nos identificarmos deveras com Cristo, de perseverar custe o que custar nessa missão sacerdotal que Ele confiou a todos os seus discípulos sem exceção, e que nos impele a ser sal e luz do mundo (Cfr. Mt V, 13-14).
97 O pensamento da morte de Cristo traduz-se num convite para que nos situemos com absoluta sinceridade perante os nossos afazeres diários e tomemos a sério a fé que professamos. A Semana Santa não pode, pois, ser um parênteses sagrado no contexto de um viver motivado exclusivamente por interesses humanos; deve ser uma ocasião de adentrar nas profundezas do Amor de Deus, para assim podermos mostrá-lo aos homens, com a palavra e com as obras.
Mas o Senhor estabelece condições. São Lucas conserva-nos uma declaração sua de que não podemos prescindir: Se alguns dos que me seguem não aborrecem seu pai e sua mãe, a mulher e os filhos, os irmãos e as irmãs, e até a sua própria vida, não pode ser meu discípulo (Lc XIV, 26). São termos duros. É verdade que nem a palavra "odiar" nem a palavra "aborrecer" exprimem bem o pensamento original de Jesus. De qualquer forma, as palavras do Senhor foram fortes, porque também não se reduzem a um amar menos, como por vezes se interpreta temperadamente, para suavizar a frase. É terrível uma expressão tão contundente, não porque implique uma atitude negativa ou impiedosa - pois o Jesus que agora fala é o mesmo que manda amar o próximo como à própria alma, e que dá a sua vida pelos homens -, mas por ser uma locução que indica simplesmente que, diante de Deus, não são possíveis as meias medidas. As palavras de Cristo poderiam traduzir-se por amar mais, amar melhor, ou antes, por não amar com um amor egoísta nem tampouco com um amor de curto alcance: devemos amar com o Amor de Deus.
É disso que se trata. Observemos com atenção a última das exigências de Jesus: et animam suam. A vida, a própria alma, é o que o Senhor nos pede. Se somos fátuos, se nos preocupamos apenas com a nossa comodidade pessoal, se encaramos a existência dos outros e inclusive do mundo por referência exclusiva a nós mesmos, não temos o direito de nos chamarmos cristãos e de nos considerarmos discípulos de Cristo. A entrega tem que se realizar com obras e com verdade, não apenas com a boca (I Ioh III, 18). O amor a Deus convida-nos a levar a cruz a pulso, a sentir também sobre nós o peso da humanidade inteira, e a cumprir, dentro das circunstâncias próprias do estado e do trabalho de cada um, os desígnios ao mesmo tempo claros e amorosos da vontade do Pai. Na passagem que comentamos, Jesus prossegue: E aquele que não carrega a sua cruz e me segue, também não pode ser meu discípulo (Lc XIV, 27).
Temos que aceitar a vontade de Deus sem medo, precisamos formular sem vacilações o propósito de edificar toda a nossa vida de acordo com o que nossa fé nos ensina e exige. Não há dúvida de que encontraremos luta, sofrimento e dor, mas, se possuímos uma fé verdadeira, nunca nos consideraremos infelizes: mesmo com penas e até com calúnias, seremos felizes, com uma felicidade que nos impelirá a amar os outros e a fazê-los participar da nossa alegria sobrenatural.
O CRISTÃO PERANTE A HISTÓRIA HUMANA
98 Ser cristão não é título de mera satisfação pessoal: tem nome - substância - de missão. Já antes recordávamos que o Senhor convida todos os cristãos a serem sal e luz do mundo. Fazendo-se eco desse preceito, e com textos tirados do Antigo Testamento, São Pedro escreve umas palavras que definem muito claramente essa missão: Vós sois linhagem escolhida, sacerdócio real, gente santa, povo de conquista, para anunciar as grandezas dAquele que vos arrancou das trevas para a sua luz admirável (I Pet II, 9).
Ser cristão não é algo de acidental; é uma divina realidade que se insere nas entranhas da nossa vida, dando-nos uma visão límpida e uma vontade decidida de agir como Deus quer. Aprende-se assim que a peregrinação do cristão pelo mundo tem que se converter num contínuo serviço, prestado de modos muito diversos, conforme as circunstâncias pessoais, mas sempre por amor a Deus e ao próximo. Ser cristão é agir sem pensar nas pequenas metas do prestígio ou da ambição, nem em outras finalidades aparentemente mais nobres, como a filantropia ou a compaixão perante as desgraças alheias; é avançar em direção ao termo último e radical do amor que Jesus Cristo manifestou ao morrer por nós.
Observam-se, por vezes, certas atitudes que são o resultado de não se saber captar esse mistério de Jesus. Por exemplo, a mentalidade dos que encaram o cristianismo como um conjunto de práticas ou atos de piedade, sem perceberem a sua relação com as situações da vida de todos os dias, com a urgência de atender às necessidades dos outros e de esforçar-se por remediar as injustiças.
Eu diria que os que têm essa mentalidade ainda não compreenderam o que significa que o Filho de Deus se tenha encarnado , que tenha assumido corpo, alma e voz de homem, que tenha participado do nosso destino até experimentar o despedaçamento supremo da morte. Talvez involuntariamente, certas pessoas consideram Cristo como um estranho no ambiente dos homens.
Outros, por sua vez, tendem a imaginar que, para poderem ser humanos, têm que pôr em surdina alguns aspectos centrais do dogma cristão, e comportam-se como se a vida de oração, a relação contínua com Deus, constituísse uma fuga às responsabilidades e um abandono do mundo. Esquecem que foi o próprio Jesus quem nos deu a conhecer até que extremo se devem levar o amor de Deus, desse amor que chega até à morte, é que seremos capazes de entregar-nos totalmente aos outros, sem nos deixarmos o vencer pelas dificuldades ou pela indiferença.
99 É a fé em Cristo - morto e ressuscitado, presente em todos e cada um dos momentos da vida - que ilumina as nossas consciências, incitando-nos a participar com todas as forças nas vicissitudes e nos problemas da história humana. Nessa história, que se iniciou com a criação do mundo e que findará com a consumação dos séculos, o cristão não é um apátrida. É um cidadão da cidade dos homens, com a alma absorvida pelo desejo de Deus, cujo amor começa a entrever já nesta etapa temporal e no qual reconhece o fim a que estamos chamados todos os que vivemos na terra.
Se tem interesse o meu testemunho pessoal, posso dizer que sempre concebi a minha atividade de sacerdote e de pastor de almas como uma tarefa dirigida a situar cada um em face das exigências totais da sua vida, ajudando as pessoas a descobrir aquilo que Deus lhes pedia em concreto, sem estabelecer qualquer limitação a essa independência santa e a essa abençoada responsabilidade individual, que são características de uma consciência cristã. Esse modo de agir e esse espírito baseiam-se no respeito da verdade revelada e no amor à liberdade da criatura humana. Poderia acrescentar que se baseiam também na certeza da indeterminação da História, aberta a múltiplas possibilidades, que Deus não quis limitar.
Seguir Cristo não significa refugiar-se no templo, encolhendo os ombros perante a evolução da sociedade, perante os acertos ou as aberrações dos homens e dos povos. Muito pelo contrário, a fé cristã leva-nos a ver o mundo como criação do Senhor, a apreciar, portanto, tudo o que é nobre e belo, a reconhecer a dignidade de cada pessoa, feita à imagem de Deus, e a admirar o dom especialíssimo da liberdade, que nos faz donos dos nossos próprios atos e nos permite - com a graça do céu - construir o nosso destino eterno.
Amesquinharíamos a fé se a reduzíssemos a uma ideologia terrena, arvorando um estandarte político-religioso para condenar, não se sabe em nome de que investidura divina, os que não pensam do mesmo modo em problemas que são, por sua própria natureza suscetíveis de receber numerosas e diversas soluções.
APROFUNDAR NO SENTIDO DA MORTE DE CRISTO
100 A digressão que acabo de fazer tem por única finalidade pôr de manifesto uma verdade central: lembrar que a vida cristã encontra o seu sentido em Deus. Os homens não foram criados apenas para criar um mundo o mais justo possível; para além disso, fomos estabelecidos na terra para entrar em comunhão com o próprio Deus. Jesus Cristo não nos prometeu nem a comodidade temporal nem a glória terrena, mas a casa de Deus Pai, que nos espera no termo do caminho (Cfr. Ioh XIV, 2).
A liturgia da Sexta-Feira Santa inclui um hino maravilhoso - o Crux fidelis - em que somos convidados a cantar e a celebrar o glorioso combate do Senhor, o troféu da Cruz, o preclaro triunfo de Cristo. O Redentor do Universo, ao ser imolado, vence. Deus, Senhor de todas as coisas criadas, não afirma a sua presença pela força das armas, ou mesmo pelo poder temporal dos seus, mas pela grandeza do seu amor infinito.
O Senhor não destrói a liberdade do homem: foi Ele precisamente que nos fez livres. Por isso não quer respostas forçadas; quer decisões que procedam da intimidade do coração. E espera dos cristãos que vivamos de tal maneira que os que os que estão em contacto conosco percebam, por cima das nossas próprias misérias, erros e deficiências, o eco do drama de amor do Calvário. Tudo o que temos, recebemo-lo de Deus, para sermos sal que salgue, luz que leve aos homens a notícia alegre de que Ele é um Pai que ama sem medida. O cristão é sal e luz do mundo, não porque vence ou triunfa, mas porque dá testemunho do amor de Deus; e não será sal se não servir para salgar; não será luz se, com o seu exemplo e com a sua doutrina, não oferecer um testemunho de Jesus, se perder o que constitui a razão de ser de sua vida.
101 Temos que aprofundar nos aspectos que a morte de Cristo nos revela, sem permanecermos em formas exteriores ou em frases estereotipadas. É necessário penetrar verdadeiramente nas cenas que revivemos nestes dias: a dor de Jesus, a lágrimas de sua Mãe, a fuga dos discípulos, a coragem das santas mulheres, a audácia de José e Nicodemos, que pedem a Pilatos o corpo do Senhor.
Aproximemo-nos, em suma, de Jesus morto, dessa Cruz que se recorta sobre o cume do Gólgota. Mas aproximemo-nos com sinceridade , sabendo encontrar esse recolhimento interior que é sinal de maturidade cristã. Desta forma, os acontecimentos divinos e humanos da Paixão tomarão conta da nossa alma, como palavra que Deus nos dirige para desvendar os segredos do nosso coração e revelar-nos o que espera de nossas vidas.
Faz muitos anos, vi um quadro que se gravou profundamente em meu interior. Representava a Cruz de Cristo e, junto do lenho, três anjos: um chorava desconsoladamente; outro tinha um prego na mão como que para se convencer de que tudo aquilo era verdade; o terceiro estava recolhido em oração. Um programa sempre atual para cada um de nós: chorar, crer e orar.
Perante a Cruz, dor de nossos pecados, dos pecados da humanidade, que levaram Jesus à morte; fé, para aprofundarmos nessa verdade sublime que ultrapassa todo o entendimento, e para nos maravilharmos ante o amor de Deus; oração, para que a vida e a morte de Cristo sejam o modelo e o estímulo da nossa vida e da nossa entrega. Só assim nos chamaremos vencedores; porque Cristo ressuscitado vencerá em nós, e a morte se transformará em vida.
« CRISTO PRESENTE NOS CRISTÃOS »
(Homilia pronunciada em 26 de Março de 1967, Domingo da Ressurreição)
102 Cristo vive. Esta é a grande verdade que enche de conteúdo a nossa fé. Jesus, que morreu na Cruz, ressuscitou, triunfou da morte, do poder das trevas, da dor e da angústia. Não temais, foi a invocação com que um anjo saudou as mulheres que se dirigiam ao sepulcro. Não temais. Vindes buscar Jesus Nazareno que foi crucificado. Já ressuscitou; não está aqui (Mc XVI, 6 (Evangelho da Missa do Domingo da Ressurreição)). Haec est dies quam fecit Dominus exsultemus et laetemur in ea: este é dia que o Senhor fez, alegremo-nos (Ps CXVII, 24 (Gradual da mesma Missa)).
O tempo pascal é tempo de alegria, de uma alegria que não se restringe a esta época do ano litúrgico, mas que habita sempre no coração do cristão. Porque Cristo vive. Não é Cristo uma figura que passou, que existiu num tempo e que se retirou, deixando-nos uma lembrança e um exemplo maravilhosos.
Não. Cristo vive. Jesus é o Emmanuel: Deus conosco. A sua Ressurreição revela-nos que Deus não abandona os seus. Pode a mulher esquecer-se do fruto do seu ventre, não se compadecer do filho de suas entranhas? pois ainda que ela se esquecesse, eu não me esquecerei de ti (Is XLIX, 14-15), tinha Ele prometido. E cumpriu a sua promessa. Deus continua a achar suas delícias entre os filhos dos homens (Cfr. Prv VIII, 31).
Cristo vive na sua Igreja. "Digo-vos a verdade: a vós convém que eu vá, porque, se não for, o Consolador não virá a vós. Mas, se for, eu vo-lo enviarei" (Ioh XVI, 7). Tais eram os desígnios de Deus: Jesus morrendo na Cruz, dava-nos o Espírito de Verdade e de Vida. Cristo permanece na sua Igreja: nos seus sacramentos, na sua liturgia, na sua pregação e em toda a sua atividade.
De modo especial, Cristo continua presente entre nós nessa entrega diária que é a Sagrada Eucaristia. Por isso, a Missa é o centro e a raiz da vida cristã. Em todas as Missas está sempre o Cristo Total, Cabeça e Corpo. Por Cristo, com Cristo, e em Cristo. Porque Cristo é o Caminho, o Medianeiro; nEle encontramos tudo; fora dEle, a nossa vida fica vazia. Em Jesus Cristo, e instruídos por Ele, atrevemo-nos a dizer - audemus dicere - Pater Noster, Pai nosso. Atrevemo-nos a chamar Pai ao Senhor dos céus e da terra.
A presença de Jesus vivo na Hóstia Santa é a garantia, a raiz e a consumação da sua presença no mundo.
103 Cristo vive no cristão. A fé diz-nos que o homem em estado de graça se encontra endeusado. Somos homens e mulheres, não anjos. Seres de carne e osso, com coração e paixões, com tristezas e alegrias. Mas a divinização repercute no homem inteiro, como uma antecipação da ressurreição gloriosa. Cristo ressuscitou dentre os mortos e constituiu-se como primícias dos defuntos; porque, assim como por um homem veio a morte, por um homem devia vir a ressurreição dos mortos. Assim como em Adão todos morrem, assim também em Cristo todos serão vivificados (I Cor XV, 20-21).
A vida de Cristo é a nossa vida conforme Jesus prometera aos seus Apóstolos na última Ceia: Todo aquele que me ama observa os meus mandamentos, e meu Pai amará, e viremos a ele, e nele faremos a nossa morada (Ioh XIV, 23). O cristão deve, pois, viver segundo a vida de Cristo, tornando próprios os sentimentos de Cristo, de tal maneira que possa exclamar com São Paulo: Non vivo ego, vivit vero in me Christus (Gal II, 20), não sou eu que vivo; é Cristo que vive em mim.
JESUS CRISTO, FUNDAMENTO DA VIDA CRISTÃ
104 Quis recordar, embora brevemente, alguns dos aspectos dessa vida atual de Cristo - Iesus Christus heri et hodie, ipse et in saecula (Heb XIII, 8), Jesus Cristo ontem e hoje, o mesmo pelos séculos - por nela se achar o fundamento de toda a vida cristã. Se olharmos à nossas volta e considerarmos o curso da história da humanidade, observaremos progressos e avanços. A ciência deu ao homem maior consciência do seu poder. A técnica domina a natureza em maior grau que em épocas passadas e permite que a humanidade sonhe com um nível mais alto de cultura, de vida material e de unidade.
Talvez alguns se sintam inclinados a matizar esse quadro, recordando que os homens sofrem agora injustiças e guerras, inclusive piores que as do passado. Não lhes falta razão. Mas, por cima dessas considerações, prefiro recordar que, na ordem religiosa, o homem continua a ser homem e Deus continua a ser Deus. Neste terreno, o cume do progresso já se verificou: é Cristo, Alfa e Ômega, princípio e fim (Apoc XXI, 6).
Na vida espiritual, não existe uma nova época a atingir. Já está tudo dado em Cristo, que morreu, e ressuscitou, e vive, e permanece para sempre. Mas é preciso unir-nos a Ele pela fé, deixando que a sua vida se manifeste em nós, de maneira a podermos dizer que cada cristão é não já alter Christus, outro Cristo, mas ipse Christus, o próprio Cristo!
105 Instaurare omnia in Christo, é o lema que São Paulo dá aos cristãos de Éfeso (Eph I, 10): informar o mundo inteiro com o espírito de Jesus, colocar Cristo na entranha de todas as coisas. Si exaltatus fuero a terra, omnia traham ad meipsum (Ioh XII, 32), quando for levantado ao alto sobre a terra, tudo atrairei a mim. Cristo, com a sua encarnação, com a sua vida de trabalho em Nazaré, com a sua pregação e milagres pelas terras da Judéia e da Galiléia, com a sua morte na Cruz, com a sua Ressurreição, é o centro da Criação, Primogênito e Senhor de toda a criatura.
Nossa missão de cristãos é proclamar essa realeza de Cristo, anunciá-la com a nossa palavra e as nossas obras. O Senhor quer os seus em todas as encruzilhadas da terra. Chama alguns ao deserto, para que se desentendam dos avatares das sociedades dos homens e com o seu testemunho recordem aos demais que Deus existe. Confia a outros o ministério sacerdotal. Mas quer a grande maioria dos homens no meio do mundo, nas ocupações terrenas. Estes cristãos devem, pois, levar Cristo a todos os ambientes em que desenvolvem as suas tarefas humanas: à fábrica, ao laboratório, ao cultivo da terra, à oficina do artesão, às ruas das grandes cidades e aos caminhos de montanha.
Gosto de recordar a este propósito o episódio da conversa de Cristo com os discípulos de Emaús. Jesus caminha ao lado daqueles dois homens que perderam quase toda a esperança, a tal ponto que a vida começa a parecer-lhes sem sentido. Compreende a sua dor, penetra em seus corações, comunica-lhes um pouco da vida que nEle habita. Quando, ao chegarem à aldeia, Jesus faz menção de continuar a viagem, os dois discípulos detêm-no e quase o obrigam a ficar com eles. Reconhecem-no depois, ao partir do pão; o Senhor, exclamam, esteve conosco. Então disseram um para o outro: Não é verdade que sentíamos o coração abrasar-se dentro de nós, enquanto nos falava pelo caminho e nos explicava as Escrituras? (Lc XXIV, 32). Cada cristão deve tornar Cristo presente entre os homens; deve viver de t al modo que à sua volta se perceba o bonus odor Christi (Cfr. II Cor II, 15), o bom odor de Cristo; deve agir de tal modo que, através das ações do discípulo, se possa descobrir o rosto do Mestre.
106 O cristão sabe-se enxertado em Cristo pelo Batismo; habilitado a lutar por Cristo, pela Confirmação; chamado a atuar no mundo pela participação na função real, profética e sacerdotal de Cristo; transformado numa só coisa com Cristo pela Eucaristia, sacramento da unidade e do amor. por isso, como Cristo, deve viver de rosto voltado para os outros homens, olhando com amor para todos e cada um dos que o rodeiam, para a humanidade inteira.
A fé leva-nos a reconhecer Cristo como Deus, a vê-lo como nosso Salvador, a identificar-nos com Ele, agindo como Ele agiu. O Ressuscitado, depois de tirar o Apóstolo Tomé de suas dúvidas, mostrando-lhe as chagas, exclama: Bem-aventurados os que não me viram e creram (Ioh XX, 29). E São Gregório Magno comenta: Aqui fala-se de nós de um modo particular, porque nós possuímos espiritualmente Aquele a quem não vimos corporalmente. Fala-se de nós, mas com a condição de que as nossas ações estejam de acordo com a nossa fé. Não crê verdadeiramente sendo aquele que na sua conduta põe em prática o que crê. Por isso diz São Paulo daqueles que da fé só possuem palavras; professam conhecer Deus, mas negam-no com as obras (São Gregório Magno, In Evangelia homiliae, 26, 9 (PL 76, 1202)).
Não é possível separar em Cristo o seu ser de Deus-Homem da sua função de Redentor. O Verbo se fez carne e veio à terra ut omnes homines salvi fiant (Cfr. I Tim II, 4), para salvar todos os homens. Com todas as nossas misérias e limitações pessoais, somos outros Cristos, o próprio Cristo, chamados também a servir a todos os homens.
É necessário que ressoe muitas vezes aquele mandamento que continuará a ser novo através dos séculos. Caríssimos - escreve São João -, não pretendo escrever-vos um mandamento novo, mas um mandamento antigo, que recebestes desde o começo; o mandamento antigo é a palavra divina que ouvistes. E, não obstante, eu vos digo que o mandamento de que vos falo é um mandamento novo, que é verdadeiro em si mesmo e em vós, porque as trevas desapareceram e b rilha já a luz verdadeira. Quem diz estar na luz, e aborrece seu irmão, está ainda em trevas. Quem ama o seu irmão mora na luz e nele não existe escândalo (I Ioh, 7-10).
O Senhor veio trazer a paz, a boa nova, a vida, a todos os homens. Não apenas aos ricos, nem apenas aos pobres. Não apenas aos sábios, nem apenas à gente simples. A todos. Aos irmãos que somos, pois somos filhos de um mesmo Pai Deus. Não existe, pois, senão uma raça: a raça dos filhos de Deus. Não existe mais do que uma cor: a cor dos filhos de Deus. E não existe senão uma língua: essa que falando ao coração e à cabeça, sem ruído de palavras, nos dá a conhecer Deus e faz com que nos amemos uns aos outros.
CONTEMPLAÇÃO DA VIDA DE CRISTO
107 É esse amor de Cristo que cada um de nós deve esforçar-se por realizar na própria vida. Mas para sermos ipse Christus - o próprio Cristo -, é preciso que nos contemplemos nEle. Não basta termos uma idéia geral do espírito de Jesus, mas é preciso aprender dEle pormenores e atitudes. E sobretudo é preciso contemplar a sua passagem pela terra, as suas pisadas, para extrair daí força, luz, serenidade, paz.
Quando amamos uma pessoa, desejamos conhecer até os menores detalhes da sua existência, do seu caráter, para assim nos identificarmos a ela. É por isso que temos que meditar na história de Cristo, desde o seu nascimento num presépio até à sua morte e sua ressurreição. Nos meus primeiros anos de atividade pastoral, costumava oferecer exemplares do Evangelho ou livros em que se narrasse a vida de Jesus. Porque é preciso que conheçamos bem, que a tenhamos toda inteira na cabeça e no coração, de modo que, em qualquer momento, sem necessidade de livro algum, fechando os olhos, possamos contemplá-la como num filme; de forma que, nas mais diversas situações da nossa existência, acudam à nossa memória as palavras e os atos do Senhor.
Assim nos sentiremos integrados na sua vida. Porque não se trata apenas de pensar em Jesus, de imaginar as cenas que lemos. Temos que intervir plenamente nelas, ser protagonistas. Seguir Cristo tão de perto quanto Santa Maria, sua Mãe; quanto os primeiros Doze, as santas mulheres e aquelas multidões que se comprimiam ao seu redor. Se agirmos assim, se não criarmos obstáculos, as palavras de Cristo penetrarão até o fundo da alma e transformar-nos-ão. Porque a palavra de Deus é viva e eficaz, e mais penetrante que a espada de dois gumes, e introduz-se até as dobras da alma e do espírito, até as articulações e medulas, e discerne os pensamentos e intenções do coração (Heb IV, 12).
Se queremos levar até o Senhor os outros homens, temos que abrir o Evangelho e contemplar o amor de Cristo. Poderíamos de ter-nos nas cenas-cume da Paixão porque, como Ele mesmo disse, ninguém tem maior amor que aquele que dá a vida pelos seus amigos (Ioh XV, 13). Mas podemos também considerar o resto de sua vida, o seu modo habitual de lidar com os que se cruzavam com Ele.
Cristo, perfeito Deus e perfeito homem, conduziu-se de um modo humano e divino para fazer chegar aos homens a sua doutrina de salvação e manifestar-lhes o amor de Deus. Deus condescende com o homem, assume a nossa natureza sem reservas, à exceção do pecado.
Causa-me uma profunda alegria considerar que Cristo quis ser plenamente homem, com carne como a nossa. Emociona-me contemplar a maravilha de um Deus que ama com coração de homem.
108 Entre tantas cenas narradas pelos evangelistas, detenhamo-nos a considerar algumas, começando pelos relatos dos momentos de convivência de Jesus com os Doze. O Apóstolo João, que derrama no seu Evangelho a experiência de uma vida inteira, narra a sua primeira conversa com Jesus, com o encanto das coisas que nunca mais se esquecem. Mestre, onde moras? Disse-lhe Jesus: Vinde e vede. Foram, pois, e viram onde morava, e ficaram com Ele aquele dia (Ioh I, 38-39).
Diálogo divino e humano, que transformou as vidas de João e André, de Pedro, Tiago e tantos outros; que preparou seus corações para escutarem a palavra imperiosa que Jesus lhes dirigiu junto ao mar da Galiléia. Caminhando Jesus pelas margens do mar da Galiléia, viu dois irmãos, Simão, chamado Pedro, e André, seu irmão, lançando as redes ao mar, pois eram pescadores. E disse-lhes: Segui-me, e farei que sejais pescadores de homens. Imediatamente os dois deixaram as redes e o seguiram (Mt IV, 18-20).
Nos três anos seguintes, Jesus convive com seus discípulos, conhece-os, responde às suas perguntas, resolve as suas dúvidas. É verdadeiramente o Rabi, o Mestre que fala com autoridade, o Messias enviado por Deus. Mas é ao m esmo tempo acessível, íntimo. Um dia retira-se em oração; os discípulos encontravam-se por perto, quem sabe olhando-o e procurando adivinhar as suas palavras. Quando volta, um deles pede-lhe: Domine, doce nos orare, sicut docuit et Ioannes discipulos suos; ensina-nos a orar, como João ensinou aos seus discípulos. E Jesus respondeu-lhes; quando vos puserdes a orar, haveis de dizer: Pai, santificado seja o teu nome... (Lc XI, 1-2)
Com a mesma autoridade de Deus e carinho do homem, o Senhor recebe os Apóstolos quando, admirados com os frutos da sua primeira missão, comentavam com Ele as primícias do seu apostolado: Retirai-vos comigo a um lugar isolado e descansai um pouco (Mc VI, 31).
Uma cena muito similar se repete já no fim da permanência de Jesus sobre a terra, pouco antes da Ascensão. Chegada a manhã, Jesus apareceu na margem; mas antes os discípulos não o reconheceram. E Jesus disse-lhes: Rapazes, tendes alguma coisa que comer? Aquele que perguntara como homem, fala depois como Deus: Lançai as redes à direita da barca e achareis. Lançaram-nas, pois, e já não as podiam tirar pela quantidade de peixes que havia. Então o discípulo a quem Jesus amava disse a Pedro: É o Senhor.
E Deus espera-os na margem: Ao saltarem para terra, viram preparadas umas brasas acesas com peixe em cima e pão. E Jesus disse-lhes: Trazei para cá os peixes que acabais de pescar. Simão Pedro subiu à barca e trouxe a rede para terra, cheia de cento e cinquenta e três grandes peixes. E, apesar de serem tantos, a rede não se rompeu. Disse-lhes Jesus: Vinde, comei. E nenhum dos discípulos se atrevia a perguntar-lhe: Quem és? sabendo que era o Senhor. Jesus aproximou-se, tomou o pão e o distribuiu, e o mesmo fez com o peixe (Ioh XXI, 5-13).
Jesus manifesta essa delicadeza e carinho não só com um grupo pequeno de discípulos, mas com todos: com as santas mulheres, com representantes do Sinédrio - como Nicodemos - e com publicanos - como Zaqueu -, com doentes e sãos, com doutores da lei e pagãos, com as pessoas individualmente e com multidões inteiras.
Os Evangelhos contam-nos que Jesus não tinha onde recostar a cabeça, mas contam-nos também que tinha amigos queridos e de confiança, desejosos de recebê-lo em sua casa. E falam-nos da sua compaixão pelos doentes, da sua dor pelos que ignoram e erram, da sua indignação perante a hipocrisia. Jesus chora a more de Lázaro, ira-se com os mercadores que profanam o templo, deixa que seu coração se enterneça perante a dor da viúva de Naim.
109 Cada um desses gestos humanos é gesto de Deus. Em Cristo habita toda a plenitude da divindade corporalmente (Col II, 9). Cristo é Deus feito homem, homem perfeito, homem cabal. E, nos seus aspectos humanos, dá-nos a conhecer a divindade.
Ao recordarmos esta delicadeza humana de Cristo, que gasta a sua vida a serviço dos outros, fazemos muito mais do que descrever um possível modo de nos comportarmos. Estamos descobrindo Deus. Toda a obra de Cristo tem um valor transcendente: dá-nos a conhecer o modo de ser de Deus, convida-nos a crer no amor de Deus, que nos criou e nos quer trazer à sua intimidade. Manifestei o teu nome aos homens que me deste no mundo; eles eram teus, e mos deste; e eles puseram em prática a tua palavra. Agora souberam que tudo o que me destes vem de Ti (Ioh XVII, 6-7), exclamou Jesus na longa oração que o evangelista João nos conserva.
Por isso o relacionamento de Jesus com os homens não fica em meras palavras ou em atitudes superficiais. Jesus toma a sério o homem e quer dar-lhe a conhecer o sentido divino da sua vida. Jesus sabe exigir, colocar cada um em face dos seus deveres, tirar os que o escutam do comodismo e conformismo, para levá-los a conhecer o Deus três vezes santo. A fome e a dor comovem Jesus, mas comove-o sobretudo a ignorância. Jesus viu a multidão que esperava por ele, e enterneceu-se no seu íntimo porque andavam como ovelhas sem pastor. Começou então a instruí-los sobre muitas coisas (Mc VI, 34).
APLICAÇÃO À NOSSA VIDA COMUM
110 Percorremos algumas páginas dos Santos Evangelhos para contemplar Jesus no seu convívio com os homens e aprender a levar a Cristo os nossos irmãos, sendo nós mesmos Cristo. É preciso aplicar essa lição à vida diária, à nossa própria vida. Porque a vida comum e normal, aquela que vivemos entre os demais concidadãos, nossos iguais, não é nenhuma coisa sem altura e sem relevo. É precisamente nessas circunstâncias que o Senhor quer que a imensa maioria de seus filhos se santifique.
É necessário repetir muitas e muitas vezes que Jesus não se dirigiu a um grupo de privilegiados, mas veio revelar-nos o amor universal de Deus. Todos os homens são amados por Deus, de todos espera amor. De todos. Sejam quais forem as suas condições pessoais, sua posição social, sua profissão ou ofício. A vida comum e vulgar não é coisa de pouco valor; todos os caminhos da terra podem ser ocasião de um encontro com Cristo, que nos chama à identificação com Ele para realizarmos - no lugar onde estivermos - a sua missão divina.
Deus chama-nos através das vicissitudes da vida diária, no sofrimento e na alegria das pessoas com quem convivemos, nas aspirações humanas dos nossos companheiros, nos pequenos acontecimentos da vida familiar. Chama-nos também através dos grandes problemas, conflitos e tarefas que definem cada época histórica e que atraem o esforço e os ideais de grande parte da humanidade.
111 Compreende-se muito bem a impaciência, a angústia e os anseios inquietos daqueles que, com alma naturalmente cristã (Cfr. Tertuliano, Apologeticum, 17 (PL 1, 375)), não se resignam perante as situações de injustiça pessoal e social que o coração humano é capaz de criar. Tantos séculos de convivência entre os homens, e ainda tanto ódio, tanta destruição, tanto fanatismo acumulado em olhos que não querem ver e em corações que não querem amar.
Os bens da terra, repartidos entre poucos; os bens da cultura, encerrados em cenáculos. E, lá fora, fome de pão e de sabedoria; vidas humanas - que são santas, porque vêm de Deus - tratadas como simples coisas, como números de uma estatística. Compreendo e partilho dessa impaciência, levantando os olhos para Cristo, que continua a convidar-nos a pôr em prática o mandamento novo do amor.
Todas as situações por que a nossa vida atravessa nos trazem uma mensagem divina, pedem-nos uma resposta de amor, de entrega aos outros. Quando vier o Filho do homem em toda a sua majestade e acompanhado de todos os seus anjos, sentar-se-á no trono da sua glória e fará comparecer diante de si todas as nações, e separará uns dos outros, como o pastor separa as ovelhas dos cabritos, pondo as ovelhas à sua direita e os cabritos à esquerda.
Então o rei dirá aos que estiverem à sua direita: Vinde, benditos de meu pai, tomai posse do reino que vos está preparado desde o princípio do mundo. porque tive fome e me destes de comer; tive sede, e me destes de beber; era peregrino, e me hospedastes; estava nu, e me vestistes; doente, e me visitastes; preso, e viestes ver-me. Ao que os justos lhe responderão: Senhor, quando te vimos com fome, e te demos de comer; com sede, e te demos de beber; quando te vimos peregrino, e te hospedamos; nu, e te vestimos; ou quando te vimos doente ou na prisão, e te fomos visitar? E o rei, em resposta, dir-lhes-á: na verdade vos digo, sempre que o fizestes a um destes meus irmãos mais pequenos, a mim o fizestes (Mt XXV, 31-40).
Temos que reconhecer Cristo que nos sai ao encontro nos nossos irmãos, os homens. Nenhuma vida humana é uma vida isolada, mas entrelaça-se com as outras vidas. Nenhuma pessoa é um verso solto: fazemos todos parte de um mesmo poema divino, que Deus escreve com o concurso da nossa liberdade.
112 Não há nada que possa ser alheio ao interesse de Cristo. Falando com profundidade teológica, isto é, se não nos limitamos a uma classificação funcional; falando com rigor, não se pode dizer que haja realidades - boas, nobres ou mesmo indiferentes - que sejam exclusivamente profanas, uma vez que o Verbo de Deus estabeleceu a sua morada entre os filhos dos homens, teve fome e sede, trabalhou com suas mãos, conheceu a amizade e a obediência, experimentou a dor e a morte. Porque em Cristo aprouve ao Pai situar a plenitude de todo o ser, e reconciliar por Ele todas as coisas consigo, restabelecendo a paz entre o céu e a terra, por meio do sangue que derramou na cruz (Col I, 19-20).
Temos que amar o mundo, o trabalho, as realidades humanas. Porque o mundo é bom: foi o pecado de Adão que quebrou a divina harmonia das coisas criadas. Mas Deus Pai enviou seu Filho Unigênito para que restabelecesse a paz; para que, convertidos em filhos por adoção, pudéssemos libertar a criação da desordem e reconciliar todas as coisas com Ele.
Cada situação humana é irrepetível, fruto de uma vocação única que se deve viver com intensidade, realizando nela o espírito de Cristo. Deste modo, vivendo cristãmente entre os nossos iguais, de uma maneira normal mas coerente com a nossa fé, seremos Cristo presente entre os homens.
113 Ao considerarmos a dignidade da missão a que Deus nos chama, talvez possa surgir na alma humana a presunção, a soberba. Seria uma falsa consciência da vocação cristã aquela que nos cegasse e nos fizesse esquecer que somos feitos de barro, que somos pó e miséria. Na verdade, não há mal apenas no mundo, à nossa volta; o mal está dentro de nós e aninha-se no nosso próprio coração, tornando-nos capazes de vilanias e egoísmos. Só a graça de Deus é rocha forte; nós somos areia, e areia movediça.
Se percorremos com o olhar a história dos homens ou a situação atual do mundo, é doloroso verificar como, depois de vinte séculos, existem tão poucos que se chamam cristãos e que os que se adornam com esse nome são tantas vezes infieis à sua vocação. Faz alguns anos, uma pessoa que não tinha mau coração, mas não tinha fé, apontou para um mapa-mundi e comentou comigo: Eis o fracasso de Cristo. Tantos séculos procurando introduzir na alma dos homens a sua doutrina, e veja o resultado: não há cristãos.
Não falta quem pense assim nos nossos dias. Mas Cristo não fracassou; sua vida e sua palavra fecundam continuamente o mundo. A obra de Cristo, a tarefa que seu Pai lhe encomendou está se realizando; sua força atravessa a história trazendo-nos a verdadeira vida e quando já todas as coisas estiverem submetidas a Ele, então o próprio Filho ficará submetido, enquanto homem, Àquele que tudo lhe submeteu, a fim de que Deus seja tudo em todas as coisas (I Cor XV, 28).
Nessa tarefa que vai realizando no mundo, Deus quis que fôssemos seus cooperadores, quis correr o risco da nossa liberdade. Toca-me o fundo da alma a figura de Jesus recém-nascido em Belém: uma criança indefesa, inerme, incapaz de oferecer resistência. Deus entrega-se nas mãos dos homens, aproxima-se e desce até nós.
Jesus Cristo, que tinha a natureza de Deus, não reivindicou o seu ser igual a Deus, mas aniquilou-se a si mesmo, tomando a forma de escravo (Phil II, 6-7). Deus condescende com a nossa liberdade, com a nossa imperfeição, com as nossas misérias. Consente que os tesouros divinos se contenham em vasos de barro, que os demos a conhecer misturando as nossas deficiências humanas com a sua força divina.
114 A experiência do pecado não nos deve, pois, fazer duvidar da nossa missão. É certo que os nossos pecados podem tornar difícil que se reconheça Cristo, e por isso devemos enfrentar as nossas próprias misérias pessoais, procurar a purificação. Porém, conscientes de que Deus não nos prometeu a vitória absoluta sobre o mal durante esta vida, mas nos pede luta. Sufficit tibi gratia mea (II Cor XII, 9), basta-te a minha graça, respondeu Deus a São Paulo, quando lhe pedia que o libertasse do aguilhão que o humilhava.
O poder de Deus manifesta-se na nossa fraqueza e incita-nos a lutar, a combater os nossos defeitos, mesmo que saibamos que nunca obteremos uma vitória completa durante o nosso peregrinar terreno. A vida cristã é um constante começar e recomeçar, um renovar-se cada dia.
Cristo ressuscitará em nós, se nos tornarmos comparticipantes da sua Cruz e da sua Morte. Temos que amar a Cruz, a entrega, a mortificação. O otimismo do cristão não é um otimismo meloso, nem a simples confiança humana de que tudo correrá bem. É um otimismo que mergulha suas raízes na consciência da liberdade e na fé na graça; é um otimismo que nos leva a ser exigentes conosco mesmos, a esforçar-nos por corresponder à chamada de Deus.
Desse modo, não já apesar de nossa miséria, mas de certo modo através da nossa miséria, da nossa vida de homens feitos de carne e de barro, Cristo se manifesta - no esforço por sermos melhores, por realizarmos um amor que aspira ser puro, por dominarmos o egoísmo, por nos entregarmos plenamente aos outros, convertendo a nossa existência num serviço constante.
115 Não quero concluir sem uma última reflexão. O cristão - ao tornar Cristo presente entre os homens, sendo ele mesmo ipse Christus, o próprio Cristo -, não procura apenas viver numa atitude de amor, mas esforça-se por dar a conhecer o Amor de Deus através desse amor humano.
Jesus concebeu toda a sua vida como uma revelação desse amor: Filipe - respondeu a um dos seus discípulos -, quem me vê, vê também o Pai (Ioh XIV, 9). Na esteira desse ensinamento, o Apóstolo João convida os cristãos a manifestarem com obras o amor de Deus, depois de o terem conhecido; Caríssimos, amemo-nos uns aos outros, porque a caridade procede de Deus; e todo aquele que ama é filho de Deus e conhece a Deus. Quem não possui esse amor não conhece a Deus, porque Deus é amor. Nisso se manifestou o amor de Deus por nós, em que enviou o seu Filho Unigênito ao mundo, para que por Ele tenhamos a vida. E nisso consiste seu amor, em que não fomos nós que amamos a Deus, mas foi Ele que nos amou primeiro e enviou o seu Filho como vítima de propiciação por nossos pecados. Caríssimos, se assim nos amou Deus, também nós devemos amar- nos uns aos outros (I Ioh IV, 7-11).
116 É necessário, pois, que a nossa fé seja viva, que nos leve realmente a crer em Deus e a manter um diálogo constante com Ele. A vida cristã deve ser vida de oração contínua, que procura estar na presença do Senhor da manhã até à noite e da noite até à manhã. O cristão não é nunca um homem solitário, porque vive num contínuo colóquio com Deus, que está junto de nós e nos céus.
Sine intermissione orate, prescreve o Apóstolo, orai sem interrupção (I Thes V, 17). E Clemente Alexandrino escreve, recordando esse preceito apostólico: Manda-se que louvemos e honremos o Verbo, a quem conhecemos como salvador e rei; e por Ele ao Pai, não em dias escolhidos, como fazem os outros, mas constantemente, ao longo de toda a vida e de todas as formas possíveis (Clemente Alexandrino, Stromata, 7, 7, 35 (PG 9, 450)).
No meio das ocupações de cada dia, no momento de vencer a tendência para o egoísmo, ao sentir a alegria da amizade com os outros homens, em todos esses instantes o cristão deve reencontrar Deus. Por Cristo e no Espírito Santo, o cristão tem acesso à intimidade do Pai, e percorre o seu caminho em busca do reino que não é deste mundo, mas que neste mundo se incoa e se prepara.
É preciso procurar Cristo na Palavra e no Pão, na Eucaristia e na Oração. E tratá-lo como se trata um amigo, um ser real e vivo como é Cristo, porque ressuscitou. Cristo, lemos na Epístola dos Hebreus, como permanece sempre, possui eternamente o sacerdócio. Daí que pode perpetuamente salvar aqueles que por seu intermédio se apresentam a Deus, posto que está sempre vivo para interceder por nós (Heb VII, 24-25).
Cristo, Cristo ressuscitado, é o companheiro, o Amigo. Um companheiro que se deixa ver apenas entre sombras, mas cuja realidade inunda toda a nossa vida e nos faz desejar a sua companhia definitiva. O Espírito e a Esposa dizem: vem. Diga também quem escuta: Vem. Por isso quem tem sede, venha; e o que quiser tome a água da vida, a felicidade eterna... E o que dá testemunho destas coisas diz: Certamente venho em breve. Assim Seja. Vem, Senhor Jesus (Apoc. XXII, 17 e 20).
« A ASCENSÃO DO SENHOR AOS CÉUS »
(Homilia pronunciada em 19 de Maio de 1966, Festa da Ascensão do Senhor)
117 Uma vez mais, a liturgia põe diante dos nossos olhos o último dos mistérios da vida de Jesus Cristo entre os homens: a sua Ascensão aos céus. Desde o seu nascimento em Belém, muitas coisas aconteceram: encontramo-lo no berço, adorado por pastores e por reis; contemplamo-lo nos longos anos de trabalho silencioso, em Nazaré; acompanhamo-lo pelas terras da Palestina, pregando aos homens o reino de Deus e fazendo o bem a todos. E, mais tarde, nos dias da sua Paixão, sofremos ao presenciar como o acusavam, com que fúria o maltratavam, com quanto ódio o crucificavam.
À dor seguiu-se a alegria luminosa da Ressurreição. Que fundamento tão claro e tão firme para a nossa fé! Não deveríamos continuar duvidando. Mas talvez ainda sejamos fracos, como os Apóstolos, e perguntemos a Cristo neste dia da Ascensão: É agora que vais restaurar o reino de Israel? (Act I, 6); é agora que vão desaparecer definitivamente todas as nossas perplexidades e todas as nossas misérias?
O Senhor responde-nos subindo aos céus. Tal como os Apóstolos, ficamos meio admirados, meio tristes ao ver que nos deixa. Na realidade, não é fácil acostumar-mo-nos à ausência física de Jesus. Comove-me recordar que Jesus, num gesto magnífico de amor, foi-se embora e ficou; foi para o céu e entrega-se a nós como alimento na Hóstia Santa. Sentimos, no entanto, a falta da sua palavra humana, da sua forma de atuar, de olhar, de sorrir, de fazer o bem. Gostaríamos de voltar a vê-lo de perto, quando se senta à beira do poço, cansado da dura caminhada (Cfr. Ioh IV, 6), quando chora por Lázaro (Cfr. Ioh XI, 35), quando se recolhe em prolongada oração (Cfr. Lc VI, 12), quando se compadece da multidão (Cfr. Mt XV, 32; Mc VIII, 2).
Sempre me pareceu lógico - e me cumulou de alegria - que a Santíssima Humanidade de Jesus Cristo subisse à glória do Pai. Mas penso também que esta tristeza, própria do dia da Ascensão, é uma manifestação do amor que sentimos por Jesus, Senhor Nosso. Sendo perfeito Deus, Ele se fez homem, carne da nossa carne e sangue do nosso sangue. E separa-se de nós, indo para o céu. Como não havíamos de notar a sua falta?
INTIMIDADE COM JESUS CRISTO NO PÃO E NA PALAVRA
118 Se soubermos contemplar o mistério de Cristo, se nos esforçarmos por vê-lo com os olhos limpos, perceberemos que é possível, mesmo agora, aproximar-se intimamente de Jesus, em corpo e alma. Cristo marcou-nos claramente o caminho: pelo Pão e pela Palavra; alimentando-nos com a Eucaristia e conhecendo e praticando o que nos veio ensinar, ao mesmo tempo que conversamos com Ele na oração. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim e eu nele (Ioh VI, 57). Aquele que retém os meus mandamentos e os guarda, esse é o que me ama. E aquele que me ama será amado por meu Pai, e eu o amarei e me manifestarei a ele (Ioh XIV, 21).
Não são simples promessas. São o âmago, a realidade de uma vida autêntica: a vida da graça, que nos impele a entrar numa relação pessoal e direta com Deus. Se observardes os meus preceitos, permanecereis no meu amor, assim como eu observei os preceitos de meu Pai e permaneço no seu amor (Ioh XV, 10). Esta afirmação de Jesus, no discurso da Última Ceia, é o melhor preâmbulo para o dia da Ascensão. Cristo sabia que era necessário ir-se embora porque, de um modo misterioso que não acertamos a compreender, depois da Ascensão é que chegaria - numa nova efusão de Amor divino - a terceira pessoa da Santíssima Trindade: Digo-vos a verdade: convém que eu vá. Se não for, o Paráclito não virá a vós. Mas se for, eu vo-lo enviarei (Ioh XVI, 7).
Foi-se e envia-nos o Espírito Santo, que governa e santifica a nossa alma. Ao atuar em nós, o Paráclito confirma o que Cristo nos anunciava: que somos filhos de Deus e que não recebemos o espírito de escravidão, para continuarmos agindo por temor, mas o espírito de adoção de filhos, em virtude do qual clamamos: "Abba", Pai! (Rom VIII, 15)
Vemos? É a ação trinitária das nossas almas. Todo o cristão tem acesso a essa inabitação de Deus no mais íntimo do seu ser, desde que corresponda à graça que o leva a unir-se a Cristo no Pão e na Palavra, na Sagrada Hóstia e na oração. A Igreja submete todos os dias à nossa consideração a realidade do Pão vivo, e consagra-lhe duas das grandes festas do ano litúrgico: a da Quinta-Feira Santa e a do Corpus Christi. Hoje vamos deter-nos na forma de conseguir intimidade com Jesus escutando atentamente a sua Palavra.
VIDA DE ORAÇÃO
119 Uma oração ao Deus de minha vida (Ps XLI, 9). Se Deus é vida para nós, nada tem de estranho que a nossa existência de cristãos deva estar entretecida de oração. Mas não pensemos que a oração é um ato que se realiza e depois se abandona. O justo compraz-se na lei de Iavé e tende a acomodar-se a essa lei durante o dia e durante a noite (Ps I, 2). Pela manhã penso em Ti (Cfr. Ps LXII, 7); e, de tarde, a Ti se eleva minha oração como o incenso (Cfr. Ps CXL, 2). O dia inteiro pode ser tempo de oração: da noite até à manhã e da manhã até à noite. Mais ainda: como nos recorda a Escritura Santa, o próprio sono deve ser oração (Cfr. Dt VI, 6 e 7).
Lembremo-nos do que os Evangelhos nos contam de Jesus. Às vezes, passava a noite inteira ocupado num colóquio íntimo com seu Pai. Como cativou os primeiros discípulos a figura de Cristo em oração! Depois de contemplarem esta atitude constante do Mestre, pedem-lhe: Domine, doce nos orare (Lc XI, 1), Senhor, ensina-nos a orar assim.
São Paulo - oratione instantes (Rom XII, 12), contínuos na oração, escreve - difunde por toda a parte o exemplo vivo de Cristo. e São Lucas, numa pincelada, retrata a maneira de agir dos primeiros fiéis: Animados de um mesmo espírito, perseveravam juntos na oração (Act I, 14).
A têmpera do bom cristão adquire-se, mediante a graça, na forja da oração. E, por ser vida, este alimento que é a oração não segue uma trilha única. O coração saberá desafogar-se habitualmente, por meio de palavras, nessas orações vocais ensinadas pelo próprio Deus - o Pai Nosso - ou por seus anjos - a Ave Maria. Outras vezes, utilizaremos orações acrisoladas pelo tempo, nas quais se verteu a piedade de milhões de irmãos na fé: as da liturgia - lex orandi -, ou as que nasceram do ardor de um coração enamorado, como tantas antífonas marianas: Sub tuum praesidium..., Memorare..., Salve Regina...
Em outras ocasiões, serão suficientes duas ou três expressões lançadas ao Senhor como setas, iaculata, jaculatórias, que aprendemos na leitura atenta da história de Cristo: Domine, si vis potes me mundare (Mt VIII, 2) - Senhor, se quiseres, podes curar-me; Domine, tu omnia nosti, tu scis quia amo te (Ioh XXI, 17) - Senhor, tu sabes tudo, Tu sabes que te amo; Credo, Domine, sed adiuva incredulitatem meam (Mc IX, 23) - Creio, Senhor, mas ajuda a minha incredulidade, fortalece a minha fé; Domine, non sum dignus (Mt VIII, 8) - Senhor, não sou digno!; Dominus meus et Deus meus (Ioh XX, 28) - Meu Senhor e meu Deus!... Ou outras frases, breves e afetuosas, que brotam do fervor íntimo da alma e correspondem a circunstâncias particulares.
A vida de oração deve apoiar-se, além disso, em alguns minutos diários dedicados exclusivamente ao trato com Deus. São momentos de colóquio sem ruído de palavras, junto do Sacrário sempre que possível, para agradecer ao Senhor por essa espera - como está só! - de vinte séculos. A oração mental é esse diálogo com Deus, de coração a coração, em que intervém a alma toda; a inteligência e a imaginação, a memória e a vontade. É uma meditação que contribui para dar valor sobrenatural à nossa pobre vida humana, à nossa vida diária e corrente.
Graças a esses momentos de meditação, às orações vocais, às jaculatórias, sabemos converter o nosso dia num contínuo louvor a Deus, sempre com naturalidade e sem espetáculo. Assim, à semelhança dos enamorados, que não tiram nunca os sentidos da pessoa que amam, manter-nos-emos sempre na sua presença; e todas as nossas ações - mesmo as mais pequenas e insignificantes - transbordarão de eficácia espiritual.
Por isso, quando um cristão envereda por um caminho de intimidade ininterrupta com o Senhor - e é um caminho para todos, não uma senda para privilegiados -, a vida interior cresce, segura e firme; e o homem consolida-se nessa luta , simultaneamente amável e exigente, por realizar até o fundo a vontade de Deus.
A partir da vida de oração, podemos entender esse outro tema que a festa de hoje nos propõe: o apostolado, a realização dos ensinamentos de Jesus transmitidos aos Apóstolos pouco antes de subir aos céus: Vós me servireis de testemunhas em Jerusalém e em toda a Judéia e Samaria e até os confins do mundo (Act I, 8).
APOSTOLADO, CORREDENÇÃO
120 Com a maravilhosa normalidade do divino, a alma contemplativa expande-se em ímpetos de ação apostólica: ardia-me o coração dentro do peito, ateava-se o fogo em minha meditação (Ps XXXVIII, 4). Que fogo é esse, senão o mesmo de que fala Cristo: Fogo vim trazer à terra e que hei de querer senão que arda? (Lc XII, 49). Fogo de apostolado, que se robustece na oração; não há melhor meio do que este para desenvolver, por toda a redondeza do mundo, esta batalha pacífica em que cada cristão é chamado a participar - cumprir o que resta a padecer a Cristo (Cfr. Col I, 24).
Jesus subiu aos céus, dizíamos. Mas pela oração e pela Eucaristia, o cristão pode ter com Ele a mesma intimidade que tinham os primeiros Doze, inflamar-se no seu zelo apostólico, para com ele realizar um serviço de corredenção, que é sempre a paz e a alegria. Servir, portanto, porque o apostolado não é outra coisa. Se contarmos exclusivamente com as nossas próprias forças, nada obteremos no terreno sobrenatural; se formos instrumentos de Deus, conseguiremos tudo: Tudo posso nAquele que me conforta (Phil IV, 13). Por sua infinita bondade, Deus resolveu servir-se destes instrumentos ineptos. Daí que o Apóstolo não tenha outro fim senão deixar agir o Senhor, mostrar-se inteiramente disponível, para que Deus realize - através das suas criaturas, através da alma escolhida - a sua obra salvadora.
Apóstolo é o cristão que se sente enxertado em Cristo, identificado com Cristo, pelo Batismo; habilitado a lutar por Cristo, pelo Crisma; chamado a servir a Deus com a sua ação no mundo, pelo sacerdócio comum dos fiéis, que lhe confere uma certa participação no sacerdócio de Cristo - embora essencialmente diferente daquela que constitui o sacerdócio ministerial - e o torna capaz de participar no culto da Igreja e de ajudar os homens a caminhar para Deus, mediante o testemunho da palavra e do exemplo, mediante a oração e a expiação.
Cada um de nós tem que ser ipse Christus, o próprio Cristo. Ele é o único medianeiro entre Deus e os homens (Cfr. I Tim II, 5); e nós unimo-nos a Ele para com Ele oferecermos todas as coisas ao Pai. nossa vocação de filhos de Deus, no meio do mundo, exige não apenas que procuremos atingir a nossa santidade pessoal, mas que avancemos pelos caminhos da terra, para convertê-los em atalhos que, através dos obstáculos, levem as almas ao Senhor; que tomemos parte, como cidadãos comuns, em todas as atividades temporais, para sermos levedura (Cfr. Mt XIII, 33) que informe a massa inteira (Cfr. I Cor V, 6).
Cristo subiu aos céus, mas transmitiu a tudo o que é humano e honesto a possibilidade concreta de ser redimido. São Gregório Magno aborda esse grande tema cristão com palavras incisivas: Partia assim Jesus para o lugar de onde era e regressava do lugar em que continuava morando. Com efeito, no momento em que subia ao céu, unia com a sua divindade o céu e a terra. Na festa de hoje devemos destacar solenemente o fato de ter sido suprimido o decreto que nos condenava, o juízo que nos submetia à corrupção. A natureza a que se dirigiam aquelas palavras: "Tu és pó e em pó te hás de tornar" (Gen. III, 19) -, essa mesma natureza subiu hoje ao céu com Cristo (São Gregório Magno, In Evangelia homiliae, 29, 10 (PL 76, 1218)).
Não me cansarei de repetir, portanto, que o mundo é santificável, e que compete especialmente aos cristãos levar a cabo essa tarefa: purificando-o das ocasiões de pecado com que os homens o desfeiam e oferecendo-o ao Senhor como hóstia espiritual, apresentada e dignificada mediante a graça de Deus e o nosso esforço. Em rigor não se pode dizer que haja nobres realidades exclusivamente profanas, um vez que o Verbo se dignou assumir uma natureza humana íntegra e consagrar a terra com a sua presença e com o trabalho de suas mãos. A grande missão que recebemos no Batismo é a corredenção. A caridade de Cristo nos compele (Cfr. II Cor V, 14) a tomar sobre os ombros uma parte dessa tarefa divina de resgatar as almas.
121 Tenhamos presente que a redenção, que se consumou quando Jesus morreu na vergonha e na glória da Cruz - escândalo para os judeus, loucura para os gentios (I Cor I, 23) -, continuará a realizar-se por vontade de Deus até que chegue a hora do Senhor. Não são coisas compatíveis viver segundo o Coração de Jesus Cristo e não nos sentirmos enviados, como Ele, peccatores salvos facere (I Tim I, 15), a salvar todos os pecadores, convencidos de que nós mesmos necessitamos de confiar cada vez mais na misericórdia de Deus. Daí o desejo veemente de nos considerarmos corredentores com Cristo, de salvar com Ele todas as almas, porque somos, queremos ser ipse Christus, o próprio Jesus Cristo; e Ele deu-se a si mesmo em resgate por todos (I Tim II, 6).
Temos à nossa frente uma grande tarefa. não é possível permanecermos passivos, porque o Senhor nos declarou expressamente: negociai até que eu volte (Lc XIX, 13). Enquanto esperamos o regresso do Senhor, que voltará para tomar posse plena do seu Reino, não podemos estar de braços cruzados. A propagação do Reino de Deus não é apenas tarefa oficial dos membros da Igreja, que representam Cristo por terem recebido dEle os poderes sagrados. Vos autem estis corpus Christi (I Cor XII, 27): vós também sois corpo de Cristo - frisa o Apóstolo -, com o mandato específico de negociar até o fim.
Ainda há tanto o que fazer! Mas será que em vinte séculos não se fez nada? Em vinte séculos trabalhou-se muito. Não me parece nem objetiva nem honesta a persistência com que alguns se empenham em menosprezar a tarefa dos que nos precederam. Em vinte séculos realizou-se um grande trabalho e, com frequência realizou-se muito bem. Em certas épocas, houve desacertos, recuos, como também hoje há retrocessos, medo, timidez, ao mesmo tempo que não faltam atitudes de valentia e generosidade. Mas a família humana renova-se constantemente; em cada geração é necessário continuar com o empenho de ajudar o homem a descobrir a grandeza da sua vocação de filho de Deus, e inculcar-lhe o mandamento do amor ao Criador e ao próximo.
122 Cristo ensinou-nos definitivamente o caminho desse amor a Deus: o apostolado é o amor de Deus que transborda e se dá aos outros. A vida interior exige crescimento na união com Cristo, pelo Pão e pela Palavra. E a preocupação de apostolado é a manifestação exata, adequada e necessária da vida interior. Quando se saboreia o amor de Deus, sente-se o peso das almas. Não se pode dissociar a vida interior do apostolado, como não é possível separar em Cristo o seu ser de Deus-Homem da sua função de Redentor. O verbo quis encarnar-se para salvar os homens, para os fazer uma só coisa com Ele. Esta é a razão da sua vinda ao mundo: Por nós, homens, e por nossa salvação desceu dos céus, rezamos no Credo.
Para o cristão o apostolado é algo congênito; não tem nada de artificial, de justaposto, não é externo à sua atividade diária, à sua ocupação profissional. Tenho-o dito sem cessar, desde que o Senhor dispos que surgisse o Opus Dei. Trata-se de santificar o trabalho ordinário, de santificar-se nessa tarefa e santificar os outros mediante o exercício da respectiva profissão, permanecendo cada um no seu estado de vida.
O Apostolado é como a respiração do cristão; não pode um filho de Deus viver sem esse palpitar espiritual. Recorda-nos a festa de hoje que o zelo pelas almas é um mandamento amoroso do Senhor: ao subir para a sua glória Ele nos envia pelo orbe inteiro como suas testemunhas. Grande é a nossa responsabilidade, porque ser testemunha de Cristo implica, antes de mais nada, procurar comportar-se segundo a sua doutrina, lutar para que a nossa conduta recorde Jesus e evoque a sua figura amabilíssima. Temos que conduzir-nos de tal maneira que, ao ver-nos, os outros possam dizer: este é cristão porque não odeia, porque sabe compreender, porque não é fanático, porque está acima dos instintos, porque é sacrificado, porque manifesta sentimentos de paz, porque ama.
O TRIGO E O JOIO
123 Com a doutrina de Cristo, não com as minhas idéias, acabo de traçar um caminho ideal para o cristão. Temos de convir em que é alto, sublime, atrativo. Mas talvez nos perguntemos: será possível viver assim na sociedade de hoje?
É verdade que o Senhor nos chamou em momentos em que se fala muito de paz, e não há paz: nem nas almas, nem nas instituições, nem na vida social, nem entre os povos. Fala-se continuamente de igualdade e de democracia, e proliferam as castas fechadas, impenetráveis. Chamou-nos num tempo em que se c lama por compreensão; e a compreensão brilha pela sua ausência, mesmo entre pessoas que agem de boa fé e querem praticar a caridade, porque, não o esqueçamos, a caridade, mais do que em dar, consiste em compreender.
Atravessamos uma época em que os fanáticos e os intransigentes - incapazes de admitir as razões dos outros - se protegem de antemão tachando de violentas e agressivas as suas vítimas. Chamou-nos enfim, quando se ouve tagarelar muito sobre unidade, e talvez seja difícil conceber maior desunião, não já entre os homens em geral, mas entre os próprios católicos.
Nunca faço considerações políticas, porque não é esse o meu ofício. Para descrever sacerdotalmente a situação do mundo atual, basta-me pensar de novo numa parábola do Senhor: a do trigo e do joio. O reino dos céus é semelhante a um homem que semeou boa semente em seu campo; mas, enquanto os trabalhadores dormiam, veio certo inimigo seu, espalhou joio no meio do trigo , e foi-se (Mt XIII, 24-25). Está tudo bem claro: o campo é fértil e a semente é boa. O Senhor do campo lançou a mãos cheias a semente no momento propício e com arte consumada; além disso, organizou uma vigilância para proteger a semeadura recente. Se depois apareceu o joio, foi porque não houve correspondência, porque os homens - os cristãos especialmente, adormeceram e permitiram que o inimigo se aproximasse.
Quando os servidores irresponsáveis perguntaram ao Senhor por que cresceu o joio no seu campo, a explicação salta aos olhos: Inimicus homo hoc fecit (Mt XIII, 28), foi o inimigo! Nós, os cristãos, que devíamos estar vigilantes, para que as coisas boas postas pelo Criador no mundo se desenvolvessem a serviço da verdade e do bem, nós adormecemos - triste preguiça, esse sono! -, enquanto o inimigo e todos os que o servem se moviam sem descanso. Bem vemos como cresceu o joio: que semeadura tão abundante e por toda a parte!
Não tenho vocação para profeta de desgraças. Não desejo com as minhas palavras apresentar um panorama desolador, sem esperança. Não pretendo queixar-me destes tempos em que vivemos por providência do Senhor. Amamos esta nossa época, porque é o âmbito em que temos de alcançar a nossa santificação pessoal. Não admitimos nostalgias ingênuas e estéreis; o mundo nunca esteve melhor. Desde sempre, desde o nascimento da Igreja, quando ainda se escutava a pregação dos primeiros Doze, surgiam já com violência as perseguições, começavam as heresias, propalava-se a mentira e desencadeava-se o ódio.
Mas também não é lógico negar que o mal parece ter prosperado. Dentro de todo esse campo de Deus, que é a terra, que é herança de Cristo, irrompeu o joio: e não apenas joio, mas abundância de joio! Não nos podemos deixar enganar pelo mito do progresso perene e irreversível. O progresso retamente ordenando é bom e Deus o quer. Mas hoje tem-se mais em conta esse falso progresso, que cega os olhos a tanta gente, porque com frequência não se percebe que a humanidade, em alguns dos seus passos, volta para trás e perde o que antes havia conquistado.
O Senhor, repito, deu-nos o mundo por herança. E é necessário termos a alma e a inteligência despertas; temos que ser realistas, sem derrotismos. Só uma consciência cauterizada, só a insensibilidade produzida pela rotina, só o aturdimento frívolo podem permitir que se contemple o mundo sem ver o mal, a ofensa a Deus, o prejuízo, às vezes irreparável, que se causa às almas. Temos que ser otimistas, mas com um otimismo que nasça da fé no poder de Deus - Deus não perde batalhas -, com um otimismo que não proceda da satisfação humana, de uma complacência néscia e presunçosa.
SEMEADURA DE PAZ E DE ALEGRIA
124 Que fazer? disse que não procurava descrever crises sociais ou políticas, derrocadas ou mazelas culturais. Sob a perspectiva da fé cristã, venho-me referindo ao mal no sentido preciso de ofensa a Deus. O apostolado cristão não é um programa político nem uma alternativa cultural: consiste na difusão do bem, no contágio do desejo de amar, numa semeadura concreta de paz e de alegria. E desse apostolado derivarão sem dúvida benefícios espirituais para todos: mais justiça, mais compreensão, mais respeito do homem pelo homem.
Há muitas almas à nossa volta; e não temos o direito de ser obstáculo ao seu bem eterno. Estamos obrigados a ser plenamente cristãos, a ser santos, a não defraudar Deus nem todos aqueles que esperam do cristão o exemplo e a doutrina.
O nosso apostolado deve basear-se na compreensão. Insisto novamente: a caridade, mais do que em dar, consiste em compreender. Não escondo que aprendi na minha própria carne quanto custa não ser compreendido. Sempre me esforcei por fazer-me compreender, mas há quem se empenhe em não me compreender: eis outra razão, prática e viva, para que deseje compreender a todos. Mas não há de ser um impulso circunstancial o que nos obrigue a ter esse coração amplo, universal, católico. O espírito de compreensão é expressão da caridade cristã do bom filho de Deus: porque o Senhor quer que estejamos presentes em todos os caminhos retos da terra, para espalhar a semente da fraternidade - não a do joio - da desculpa, do perdão, da caridade, da paz. Nunca nos sintamos inimigos de ninguém.
O cristão tem que se mostrar sempre disposto a conviver com todos, a dar a todos - com o seu trato - a possibilidade de se aproximarem de Cristo Jesus. Há de sacrificar-se de bom grado por todos, sem estabelecer condições, sem dividir as almas em compartimentos estanques, sem lhes aplicar rótulos, como se fossem mercadorias ou insetos dissecados. Não pode o cristão separar-se dos outros, porque então a sua vida seria miserável e egoísta: deve fazer-se tudo para todos, para salvar a todos (I Cor IX, 22).
Quem dera que vivêssemos assim, que soubéssemos impregnar a nossa conduta desta semeadura de generosidade, deste desejo de convivência, de paz! Desse modo, fomentar-se-ia a legítima independência pessoal dos homens e cada um assumiria a sua responsabilidade pelas tarefas que lhe incumbem na ordem temporal. O cristão saberia defender acima de tudo a liberdade alheia, para poder depois defender a sua própria. Teria a caridade de aceitar os outros como são - porque não há ninguém que não arraste consigo uma cauda de misérias e não cometa erros -, ajudando-os com a graça de Deus e com delicadeza humana a vencer o mal, a arrancar o joio, afim de que possamos mutuamente amparar-nos e viver com dignidade a nossa condição de homens e de cristãos.
A VIDA FUTURA
125 A tarefa apostólica, que Cristo confiou a todos os seus discípulos, produz, portanto, resultados concretos na esfera social. Não é admissível pensar que, para sermos cristãos, seja preciso voltarmos as costas ao mundo, sermos derrotistas da natureza humana. Tudo, até o mais ínfimo dos acontecimentos honestos, encerra um sentido humano e divino. Cristo, perfeito homem, não veio destruir o que é humano, mas enobrecê-lo, assumindo a nossa natureza humana, à exceção do pecado: veio compartilhar todas as aspirações do homem, exceto a triste aventura do mal.
O cristão deve estar sempre disposto a santificar a sociedade a partir de dentro, permanecendo plenamente no mundo, mas sem ser do mundo naquilo que o mundo encerra - não por ser característica real, mas por defeito voluntário, pelo pecado -- de negação de Deus, de oposição à sua amável vontade salvífica.
126 A festa da Ascensão do Senhor sugere-nos também outra realidade: esse Cristo que nos anima a empreender esta tarefa no mundo espera-nos no céu. Por outras palavras: a vida na terra, que nós amamos, não é a realidade definitiva; pois não temos aqui cidade permanente, mas andamos em busca da futura (Heb XIII, 14) cidade imutável.
Cuidemos, porém, de não interpretar a palavra de Deus dentro dos limites de horizontes estreitos. O Senhor não nos incita a ser infelizes enquanto caminhamos, esperando a consolação apenas no mais além. Deus nos quer felizes também aqui, se bem que anelando pelo cumprimento definitivo dessa outra felicidade, que só Ele pode consumar plenamente.
Nesta terra, a contemplação das realidades sobrenaturais, a ação da graça em nossas almas, o amor ao próximo como fruto saboroso do amor a Deu, representam já uma antecipação do céu, uma incoação destinada a crescer de dia para dia. Nós, os cristãos, não suportamos uma vida dupla: mantemos uma unidade de vida, simples e forte, em que se fundamentam e se compenetram todas as nossas ações.
Cristo espera-nos. Vivemos já como cidadãos do céu (Phil III, 20), sendo plenamente cidadãos da terra, no meio das dificuldades, das injustiças, das incompreensões, mas também no meio da alegria e da serenidade que nos dá saber-nos filhos amados de Deus, e vermos como aumenta em número e em santidade este exército cristão de paz, este povo de corredenção. Sejamos almas contemplativas, absorvidas num diálogo constante com Deus, procurando a intimidade com o Senhor a toda hora: desde o primeiro pensamento do dia ate o último da noite; pondo continuamente o nosso coração em Jesus Cristo, Nosso Senhor; achegando-nos a Ele por Nossa Mãe, Santa Maria, e por Ele, ao Pai e ao Espírito Santo.
E, se apesar de tudo, a subida de Jesus aos céus nos deixar na alma um travo de tristeza, acudamos à sua Mãe, como fizeram os Apóstolos: Tornaram então a Jerusalém... e oravam unanimemente... com Maria, a Mãe de Jesus (Act I, 12-14).
« O GRANDE DESCONHECIDO »
(Homilia pronunciada em 25 de Maio de 1969, Festa de Pentecostes)
127 Ao narrarem os acontecimentos daquele dia de Pentecostes, em que o Espírito Santo desceu em forma de línguas de fogo sobre os discípulos de Nosso Senhor, os Atos dos Apóstolos fazem-nos assistir à grande manifestação do poder de Deus com que a Igreja iniciou a sua caminhada entre as nações. A vitória que Cristo - pela sua obediência, pela sua imolação na Cruz e pela sua Ressurreição - havia obtido sobre a morte e o pecado, revelou-se então em todo o seu divino esplendor.
Os discípulos, que já eram testemunhas da glória do Ressuscitado, experimentaram agora a força do Espírito Santo: suas inteligências e corações abrem-se a uma nova luz. Tinham seguido Cristo e acolhido com fé os seus ensinamentos, mas nem sempre haviam conseguido penetrar totalmente o seu sentido: era necessário que chegasse o Espírito da Verdade, para lhes fazer compreender todas as coisas (Cfr. Ioh XVI, 12-13). Sabiam que só em Jesus podiam encontrar palavras de vida eterna, e estavam dispostos a segui-lo e a dar a vida por Ele, mas eram fracos e, quando chegou a hora da prova, fugiram, deixaram-no só. No dia de Pentecostes, tudo isso passou: o Espírito Santo, que é espírito de fortaleza, tornou-os firmes, seguros, audazes. A palavra dos Apóstolos ressoa agora com energia e ímpeto pelas ruas e praças de Jerusalém.
Os homens e mulheres tinham afluído das mais diversas regiões e povoavam naqueles dias a cidade, escutavam assombrados. Partos, medos e elamitas, e os que habitam a Mesopotâmia, a Judéia e a Capadócia, o Ponto e a Ásia, a Frígia e a Panfília, o Egito e a Líbia vizinha de Cirene, e os que vieram de Roma, tanto judeus como prosélitos, cretenses e árabes, todos ouvimos falar das maravilhas de Deus em nossas próprias línguas (Act II, 9-11). Estes prodígios que se realizaram diante dos seus olhos levam-nos a prestar atenção à pregação apostólica. O mesmo Espírito Santo que atuava nos discípulos do Senhor tocou-lhes também o coração e conduziu-os à fé.
Conta-nos São Lucas que, depois de São Pedro ter falado, proclamando a Ressurreição de Cristo, muitos dos que o rodeavam se aproximaram perguntando: O que devemos fazer, irmãos? O Apóstolo respondeu-lhes: Fazei penitência e seja batizado cada um de vós em nome de Jesus Cristo, para remissão dos vossos pecados; e recebereis o dom do Espírito Santo. E o texto sagrado conclui dizendo que naquele dia, ingressaram na Igreja cerca de três mil pessoas (Cfr. Act II, 37-41).
A vinda solene do Espírito Santo no dia de Pentecostes não foi um acontecimento isolado. Não há quase nenhuma página dos Atos dos Apóstolos em que não se fale dEle e da ação com que guia, dirige e anima a vida e as obras da primeira comunidade cristã: é Ele quem inspira a pregação de São Pedro (Cfr. Act IV, 8), quem confirma os discípulos na fé (Cfr. Act IV, 31), quem sela com a sua presença a chamada dirigida aos gentios (Cfr. Act X, 44-47), quem envia Saulo e Barnabé e terras distantes para abrirem novos caminhos à doutrina de Jesus (Cfr. Act XIII, 2-4). Numa palavra, sua presença e sua ação dominam tudo.
ATUALIDADE DO PENTECOSTES
128 Esta realidade profunda que o texto da Escritura Santa nos dá a conhecer não é uma recordação do passado, uma idade de ouro da Igreja que tenha ficado para trás, na história. Elevando-se acima das misérias e dos pecados de cada um de nós, é também a realidade da Igreja de hoje e da Igreja de todos os tempos. Eu rogarei ao Pai - anunciou o Senhor aos seus discípulos - e Ele vos dará outro Consolador, para que fique convosco eternamente (Ioh XIV, 16). Jesus manteve as suas promessas: ressuscitou, subiu aos céus e. em união com o Pai Eterno, envia-nos o Espírito Santo para que nos santifique e nos dê a vida.
A força e o poder de Deus iluminam a face da terra. O Espírito Santo continua assistindo a igreja de Cristo, para que seja - sempre e em tudo - o sinal erguido diante das nações para anunciar à humanidade a benevolência e o amor de Deus (Cfr. Is XI, 12). Por maiores que sejam as nossas limitações, nós, os homens, podemos olhar com confiança para os céus e sentir-nos cheios de alegria: Deus nos ama e nos livra dos nossos pecados. A presença e a ação do Espírito Santo na Igreja são o penhor e a antecipação da felicidade eterna, dessa alegria e dessa paz que Deus nos proporciona.
Como aqueles primeiros que se aproximaram de São Pedro no dia de Pentecostes, também nós fomos batizados. E através do Batismo, nosso Pai-Deus tomou posse das nossas vidas, incorporou-nos à vida de Cristo e enviou-nos o Espírito Santo. O Senhor, diz a Escritura Santa, salvou-nos fazendo-nos renascer pelo batismo, renovando-nos pelo Espírito Santo, que Ele derramou copiosamente sobre nós por Jesus Cristo Salvador nosso, para que, justificados pela graça, cheguemos a ser herdeiros da vida eterna conforme a esperança que temos (Tit III, 5-7).
A experiência da nossa fragilidade e dos nossos erros, a desedificação que pode causar o espetáculo doloroso da pequenez ou até da mesquinhez de alguns que se chamam cristãos, o aparente fracasso ou a desorientação de alguns movimentos apostólicos, tudo isso- que é comprovar a realidade do pecado e das limitações humanas - pode, no entanto, constituir uma prova para a nossa fé e fazer com que se insinuem a tentação e a dúvida: onde estão a força e o poder de Deus? É o momento de reagir, de pormos em prática com mais pureza e energia a nossa esperança e, portanto, de procurarmos que seja mais firme a nossa fidelidade.
129 Gostaria de relatar um episódio da minha vida pessoal, ocorrido há muitos anos. Um dia, um amigo de bom coração, mas que não tinha fé, disse-me, apontando para um mapa-mundi: Veja! De norte a sul e de leste a oeste! Que quer que veja?, perguntei-lhe. Respondeu-me: o fracasso de Cristo. Tantos séculos procurando introduzir a sua doutrina na vida dos homens, e veja os resultados. Num primeiro momento, enchi-me de tristeza: é uma grande dor, com efeito, considerar que são muitos os que ainda não conhecem o Senhor e que, dentre os que o conhecem, são muitos também os que vivem como se não o conhecessem.
Mas essa sensação durou apenas um instante, para dar lugar ao amor e ao agradecimento, porque Jesus quis fazer de cada homem um cooperador livre da sua obra redentora. Não fracassou: a sua doutrina e a sua vida estão fecundando continuamente o mundo. A Redenção que Ele levou a cabo é suficiente e superabundante.
Deus não quer escravos, mas filhos, e portanto respeita a nossa liberdade. A salvação prossegue, e nós participamos dela: é vontade de Cristo que - segundo a expressão forte de São Paulo - cumpramos na nossa carne, na nossa vida, aquilo que falta à sua paixão, pro Corpore eius, quod est Ecclesia, em benefício do seu Corpo que é a Igreja (Cfr. Col I, 24).
Vale a pena jogar a vida, entregar-se por inteiro, para corresponder ao amor e à confiança que Deus deposita em nós. Vale a pena, acima de tudo, decidir-se a tomar a sério a fé cristã. Quando recitamos o Credo, professamos crer em Deus Pai, Todo Poderoso; em seu Filho Jesus Cristo, que morreu e foi ressuscitado; no Espírito Santo, Senhor e fonte da vida. Confessamos que a Igreja una, santa, católica e apostólica, é o Corpo de Cristo, animado pelo Espírito Santo. Alegramo-nos ante a remissão dos pecados e a esperança da ressurreição futura. Mas essas verdades penetram até o fundo do coração, ou ficam talvez nos lábios? A mensagem divina de vitória, de alegria e de paz do Pentecostes deve ser o fundamento inquebrantável do modo de pensar, reagir e viver de todo o cristão.
FORÇA DE DEUS E FRAQUEZA HUMANA
130 Non est abbreviata manus Domini, não se tornou mais curta a mão de Deus (Is LIX, 1): Deus não é hoje menos poderoso do que em outras épocas, nem é menos verdadeiro seu amor pelos homens. A nossa fé ensina que a criação inteira, o movimento da terra e dos astros, as ações retas das criaturas e tudo quanto há de positivo no curso da história, tudo, numa palavra, veio de Deus e para Deus se ordena.
A ação do Espírito Santo pode passar-nos despercebida, porque Deus não nos dá a conhecer seus planos e porque o pecado do homem turva e obscurece os dons divinos. Mas a fé recorda-nos que o Senhor atua constantemente: foi Ele que nos criou e nos conserva o ser; é Ele quem, com a sua graça, conduz a criação inteira para a liberdade da glória dos filhos de Deus (Cfr. Rom VIII, 21).
Por isso a tradição cristã resumiu num só conceito a atitude que devemos adotar perante o Espírito Santo: docilidade. Temos que ser sensíveis àquilo que o Espírito divino promove à nossa volta e a nós mesmos: aos carismas que distribui, aos movimentos e instituições que suscita, aos efeitos e decisões que nos faz nascer no coração. O Espírito Santo realiza no mundo as obras de Deus: como diz o hino litúrgico, Ele é dador de graças, luz nos corações, hóspede da alma, descanso no trabalho, consolo no pranto. Sem a sua ajuda, nada há no homem que seja inocente e valioso, pois é Ele quem lava o que está manchado, cura o que está enfermo, aquece o que está frio, reconduz o extraviado e encaminha os homens até o porto da salvação e da felicidade eterna (Da sequência Veni Sancte Spiritus da Missa de Pentecostes).
Mas nossa fé no Espírito Santo deve ser plena e completa: não é uma crença vaga na sua presença no mundo; é uma aceitação agradecida dos sinais e realidades a que Ele quis vincular especialmente a sua força. Quando vier o Espírito de Verdade - anunciou Jesus -, Ele me glorificará, porque receberá do que é meu e vo-lo anunciará (Ioh XVI, 14). O Espírito Santo é o Espírito enviado por Cristo para realizar em nós a santificação que Ele nos mereceu na terra.
É por isso que não pode haver fé no Espírito Santo se não houver fé em Cristo, na doutrina de Cristo, nos sacramentos de Cristo, na Igreja de Cristo. Não é coerente com a fé cristã, não crê verdadeiramente no Espírito Santo quem não ama a Igreja, quem não tem confiança nEla, quem só se compraz em apontar as deficiências e as limitações dos que a representam, quem a julga de fora e é incapaz de se sentir seu filho. E sou levado a considerar como é extraordinariamente importante e abundantíssima a ação do Divino Paráclito durante a celebração da Santa Missa nos nossos altares, enquanto o sacerdote renova o sacrifício do Calvário.
131 Nós, os cristãos, trazemos os grandes tesouros da graça em vasos de barro (Cfr. II Cor IV, 7); Deus confiou seus dons à frágil e débil liberdade humana e, embora sejamos sem dúvida assistidos pela força do Senhor, a nossa concupiscência, o nosso comodismo e o nosso orgulho repelem por vezes essa assistência e levam-nos a cair em pecado. Há mais de um quarto de século, ao recitar o Credo, e afirmar minha fé na divindade da Igreja, una, santa, católica e apostólica, em muitas ocasiões acrescento: apesar dos pesares. Quando uma vez por outra comento este costume e alguém me pergunta a que me quero referir, respondo: aos teus pecados e aos meus.
Tudo isso é certo, mas não autoriza de modo algum a julgar a Igreja com critérios humanos, sem fé teologal, atendendo apenas à maior ou menor qualidade de certos eclesiásticos ou de certos cristãos. Proceder assim é permanecer na superfície. O mais importante na Igreja não é ver como nós, os homens, correspondemos, mas ver o que Deus realiza. A Igreja é nem mais nem menos Cristo presente entre nós, Deus que vem até à humanidade para salvá-la, chamando-nos com a sua Revelação, santificando-nos com a sua graça, sustentando-nos com a sua ajuda constante, nos pequenos e nos grandes combates da vida diária.
Podemos chegar a desconfiar dos homens, e cada um deve desconfiar pessoalmente de si mesmo e coroar seus dias com um mea culpa, com um ato de contrição profundo e sincero. Mas não temos o direito de duvidar de Deus. E duvidar da Igreja, da sua origem divina, da eficácia salvadora da sua pregação e dos seus sacramentos é duvidar do próprio Deus, é não crer plenamente na realidade da vinda do Espírito Santo.
Antes que Cristo fosse crucificado - escreve São João Crisóstomo -, não havia nenhuma reconciliação. E enquanto não houve reconciliação, não foi enviado o Espírito Santo... A ausência do Espírito Santo era sinal da ira divina. Agora que o vês enviado em plenitude, não duvides da reconciliação. Mas, se perguntarem: Onde está agora o Espírito Santo? Podia-se falar da sua presença quando havia milagres, quando eram ressuscitados os mortos e curados os leprosos. Porém, como saber agora que está verdadeiramente presente? Não vos preocupeis. Demonstrar-vos-ei que o Espírito Santo está também agora entre nós...
Se não existisse o Espírito Santo, não poderíamos dizer: Senhor Jesus, pois ninguém pode invocar Jesus como Senhor, a não ser no Espírito Santo (1 Cor XII, 3). Se não existisse o Espírito Santo, não poderíamos orar com confiança. Com efeito, ao rezar, dizemos: Pai nosso que estais nos céus (Mt VI, 9). Se não existisse o Espírito Santo, não poderíamos chamar Pai a Deus. E como sabemos isso? Porque o Apóstolo nos ensina: E por sermos filhos, Deus enviou aos nossos corações o Espírito de seu Filho, que clama: Abba, Pai! (Gal IV, 6).
Portanto, quando invocares Deus Pai, lembra-te de que foi o Espírito Santo que, ao mover a tua alma, te deu essa oração. Se não existisse o Espírito Santo, não haveria na Igreja palavra alguma de sabedoria ou de ciência, porque está escrito: É dada pelo Espírito a palavra da sabedoria (1 Cor XII, 8)... Se o Espírito Santo não estivesse presente, a Igreja não existiria. Mas se a Igreja existe, não há dúvida de que o Espírito Santo não falta (São João Crisóstomo, Sermones panegyrici in Solemnitates D. N. Iesu Christi, hom. 1, De Sancta Pentecoste, n. 3-4 (PG 50, 457)).
Acima das deficiências e limitações humanas, insisto, a Igreja é precisamente o sinal e, de certo modo, - não no sentido estrito em que se definiu dogmaticamente a essência dos sete sacramentos da Nova Aliança -, o sacramento universal da presença de Deus no mundo. Ser cristão é ter sido regenerado por Deus e enviado aos homens para lhes anunciar a salvação. Se tivéssemos uma fé firme e experimentada, e se déssemos a conhecer Cristo com audácia, veríamos como continuam a realizar-se diante dos nossos olhos milagres como os da era apostólica.
Porque também hoje se devolve a vista aos cegos, que haviam perdido a capacidade de olhar para o céu e contemplar as maravilhas de Deus; também hoje se dá liberdade aos coxos e entrevados, que se achavam tolhidos por suas paixões e já não tinham um coração que soubesse amar; também hoje se dá ouvido aos surdos, que não desejavam ter notícia de Deus; e se consegue que falem os mudos, que tinham amordaçada a língua por não quererem confessar suas derrotas; também hoje se ressuscitam mortos, em quem o pecado havia destruído a vida. Mais uma vez se verifica que a palavra de Deus é viva e eficaz, é mais penetrante que qualquer espada de dois gumes (Heb IV, 12). E, tal como os primeiros fiéis cristãos, também nós nos alegramos ao admirar a força do Espírito Santo e sua ação sobre a inteligência e a vontade de suas criaturas.
DAR A CONHECER CRISTO
132 Vejo todos os acontecimentos da vida - os de cada existência individual e, de algum modo, os das grandes encruzilhadas da História - como outras grandes chamadas que Deus dirige aos homens para que encarem de frente a verdade; e como ocasiões que se oferecem aos cristãos para que anunciem com suas próprias obras e palavras, ajudados pela graça, o Espírito a que pertencem (Cfr. Lc IX, 55).
Cada geração de cristãos tem que redimir e santificar o seu próprio tempo: para isso, precisa compreender e compartilhar os anseios dos outros homens, seus iguais, a fim de lhes dar a conhecer, com dom de línguas, como devem corresponder à ação do Espírito Santo, à efusão das riquezas do Coração divino. Compete-nos a nós, cristãos, anunciar nestes dias, a esse mundo a que pertencemos e em que vivemos, a mensagem antiga e nova do Evangelho.
Não é verdade que toda a gente de hoje - assim, em geral e em bloco - esteja fechada ou permaneça indiferente ao que a fé cristã ensina sobre o destino e o ser do homem; não é verdade que os homens destes tempos se ocupem só das coisas da terra e se desinteressem de olhar para o céu. Ainda que não faltem ideologias - e pessoas a sustentá-las - que permanecem fechadas, há em nossa época anseios elevados de mistura com atitudes rasteiras, heroísmos a par de covardias, idealismos ao lado de desilusões; criaturas que sonham com um mundo novo mais justo e mais humano, embora outras, decepcionadas talvez com o fracasso dos seus primitivos ideais, se refugiem no egoísmo de cuidar apenas da sua própria tranqüilidade ou de permanecer imersas no erro.
A todos esses homens e a todas essas mulheres, estejam onde estiverem, em seus momentos de exaltação ou em suas crises ou derrotas, temos que fazer chegar o anúncio solene e firme de São Pedro, durante os dias que se seguiram ao Pentecostes: Jesus é a pedra angular, o Redentor, a totalidade da nossa vida, porque fora dEle não foi dado aos homens outro nome debaixo do céu pelo qual possamos ser salvos (Act IV, 12).
133 Entre os dons do Espírito Santo, diria que há um de que todos nós, cristãos, necessitamos especialmente: o dom da sabedoria, que nos faz conhecer e saborear Deus, e nos coloca assim em condições de poder avaliar com verdade as situações e as coisas desta vida. Se fôssemos conseqüentes com a nossa fé, ao olharmos à nossa volta e contemplarmos o espetáculo da história e do mundo, não poderíamos deixar de sentir crescer em nossos corações os mesmos sentimentos que animaram o de Jesus Cristo: Ao ver aquelas multidões, compadeceu-se delas, porque estavam desamparadas e abatidas, como ovelhas sem pastor (Mt IX, 36).
Não é que o cristão não enxergue tudo que há de bom na humanidade, que não aprecie as alegrias puras, que não participe dos anseios e ideais terrenos. Pelo contrário, sente tudo isso no mais recôndito de sua alma e de tudo partilha e tudo vive com especial profundidade, já que conhece melhor que qualquer homem os arcanos do espírito humano.
A fé cristã não amesquinha o ânimo nem cerceia os impulsos nobres da alma, posto que os engrandece ao revelar o seu verdadeiro e mais autêntico sentido: não estamos destinados a uma felicidade qualquer, pois fomos chamados a penetrar na intimidade divina, a conhecer e amar Deus Pai, Deus Filho, Deus Espírito Santo e, na Trindade e na Unidade de Deus, todos os anjos e todos os homens.
Esta é a grande ousadia da fé cristã; proclamar o valor e a dignidade da natureza humana e afirmar que, mediante a graça, que nos eleva à ordem sobrenatural, fomos criados para alcançar a dignidade de filhos de Deus. Ousadia certamente incrível, se não se baseasse no decreto salvador de Deus Pai e não tivesse sido confirmada pelo sangue de Cristo e reafirmada e tornada possível pela ação constante do Espírito Santo.
Temos que viver de fé, crescer na fé, até que se possa dizer de cada um de nós, de cada cristão, o que escrevia há muitos séculos um dos grandes Doutores da igreja Oriental: Assim como os corpos transparentes e nítidos, ao receberem os raios de luz, se tornam resplandecentes e irradiam brilho, assim também as almas que são conduzidas e ilustradas pelo Espírito Santo se tornam espirituais e levam aos outros a luz da graça. Do Espírito Santo provém o conhecimento das coisas futuras, a inteligência dos mistérios, a compreensão das verdades ocultas, a distribuição dos dons, a cidadania celeste, a conversação com os anjos. DEle a alegria que nunca termina, a perseverança em Deus, a semelhança com Deus, e o que de mais sublime se pode conceber: o fazer-se Deus (São Basílio, De Spiritu Sancto, 9, 23 (PG 32, 110)).
A consciência da magnitude da dignidade humana - de modo eminente e inefável, pois fomos constituídos filhos de Deus pela graça - forma no cristão uma só coisa com a humanidade, pois o que nos salva e dá vida não são as nossas forças, mas o favor divino. É uma verdade que não se pode esquecer nuca, porque de outro modo o endeusamento se perverteria e se transformaria em presunção, em soberba e, mais cedo ou mais tarde, em desmoronamento espiritual ante a experiência da própria fraqueza e miséria.
Atrever-me-ei a dizer que sou santo? interrogava-se Santo Agostinho. Se dissesse santo como sinônimo de santificador e não necessitado de ninguém que me santificasse, seria soberbo e mentiroso. Mas se por santo entendermos o santificado, conforme se lê no Levítico: sede santos, porque Eu, Deus, sou santo, então também o corpo de Cristo, até o último homem situado nos confins da terra, em união com a sua Cabeça e sob a sua Cabeça, diga audazmente: sou santo! (Santo Agostinho, Enarrationes in Psalmos, 85, 4 (PL 37, 1084)).
Amemos a Terceira Pessoa da Trindade Beatíssima; escutemos na intimidade do nosso ser as moções divinas - esses alentos, essas censuras -, caminhemos pela terra dentro da luz derramada em nossas almas; e o Deus da esperança nos cumulará de toda a sorte de paz, para que essa esperança cresça em nós cada vez mais, pela virtude do Espírito Santo (Cfr. Rom XV, 13).
CONVÍVIO COM O ESPÍRITO SANTO
134 Viver segundo o Espírito Santo é viver de fé, de esperança, de caridade: é deixar que Deus tome posse de nós e mude pela raiz os nossos corações, para os moldar à sua medida.
Uma vida cristã amadurecida, profunda e rija, não é coisa que se improvise, porque é fruto do crescimento da graça de Deus em nós. Nos Atos dos Apóstolos, descreve-se a situação da primitiva comunidade cristã numa frase breve, mas cheia de sentido: Perseveravam todos na doutrina dos Apóstolos, na participação da fração do pão e na oração (Act II, 42).
Foi assim que viveram os primeiros cristãos, e é assim que devemos nós viver: a meditação da doutrina da fé, até a fazermos própria; o encontro com Cristo na Eucaristia; o diálogo pessoal - a oração sem anonimato - face a face com Deus, devem constituir como que a substância última da nossa conduta. Se isso faltar, talvez haja reflexão erudita, atividade mais ou menos intensa, devoções e prática de piedade. Mas não haverá existência cristã autêntica, porque faltará a compenetração com Cristo, a participação real na obra divina da salvação.
É uma doutrina que se aplica a qualquer cristão, porque
todos fomos igualmente chamados à santidade. Não há cristãos de segunda categoria, obrigados a por em prática apenas uma versão reduzida do Evangelho: todos recebemos o mesmo Batismo e, se bem que exista uma ampla diversidade de carismas e de situações humanas, um só é o Espírito Santo que distribui os dons divinos, uma só a fé, a esperança, a caridade (Cfr. I Cor XII, 4-6 e XIII, 1-13).
Podemos, pois, tomar como dirigida a nós a pergunta do Apóstolo: Não sabeis que sois templo de Deus e que o Espírito Santo habita em vôs? (I Cor III, 16), e recebê-la como convite para uma relação mais pessoal e direta com Deus. Infelizmente, para alguns cristãos, o Paráclito é o Grande Desconhecido: um nome que se pronuncia, mas que não é Alguém - uma das três Pessoas do único Deus -, com quem se fala e de quem se vive.
Ora, é preciso que procuremos a sua intimidade com assídua simplicidade e com confiança, como a Igreja nos ensina a fazê-lo através da Liturgia. Assim conheceremos melhor a Deus e ao mesmo tempo compreenderemos mais plenamente o imenso dom que significa chamar-se cristão: compreenderemos toda a grandeza e toda a verdade desse endeusamento, dessa participação na vida divina a que antes me referia.
Porque o Espírito Santo não é um artista que desenhe em nós a divina substância, como se fosse alheio a ela; não é assim que nos conduz à semelhança divina. Sendo Deus e procedendo de Deus, Ele mesmo se imprime nos corações que o recebem, como o selo sobre a cera e, dessa forma, pela comunicação de si mesmo e pela semelhança, restabelece a natureza consoante a beleza do modelo divino e restitui ao homem a imagem de Deus (São Cirilo de Alexandria, Thesaurus de sancta et consubstantiali Trinitate, 34 (PG 75, 609)).
135 Para determinarmos, mesmo de uma maneira muito geral, um estilo de vida que nos anime a procurar o convívio com o Espírito Santo - e ao mesmo tempo, com o Pai e o Filho - e a ter familiaridade com o Paráclito, podemos atentar para três realidades fundamentais: docilidade - repito -, vida de oração e união com a Cruz.
Em primeiro lugar, docilidade, porque é o Espírito Santo quem, com suas inspirações, vai dando tom sobrenatural aos nossos pensamentos, desejos e obras. É Ele quem nos impele a aderir à doutrina de Cristo e a assimilá-la com profundidade; quem nos dá luz para tomarmos consciência da nossa vocação pessoal e força para realizarmos tudo o que Deus espera de nós. Se formos dóceis ao Espírito Santo, a imagem de Cristo ir-se-á formando cada vez mais em nós e assim nos iremos aproximando cada dia mais de Deus Pai. Os que são conduzidos pelo Espírito de Deus, esses são filhos de Deus (Rom VIII, 14).
Se nos deixarmos guiar por esse princípio de vida presente em nós, que é o Espírito Santo, a nossa vitalidade espiritual irá crescendo e abandonar-nos-emos nas mãos do nosso Pai-Deus com a mesma espontaneidade e confiança com que uma criança se lança nos braços de seu pai. Se não vos fizerdes semelhantes às crianças, não entrareis no reino dos céus, disse o Senhor (Mt XVIII, 3). Velho caminho interior de infância, sempre atual, que não é mimalhice nem falta de maturidade humana: é maturidade sobrenatural, que nos leva a aprofundar nas maravilhas do amor divino, a reconhecer a nossa pequenez e a identificar plenamente a nossa vontade com a de Deus.
136 Em segundo lugar, vida de oração, porque a entrega, a obediência, a mansidão do cristão nascem do amor e para o amor se orientam. E o amor leva à vida de relação, à conversa assídua, à amizade. A vida cristã requer um diálogo constante com Deus Uno e Trino, e é a essa intimidade que o Espírito Santo nos conduz. Quem sabe das coisas do homem, senão o espírito do homem, que está dentro dele? Assim as coisas de Deus, ninguém as conhece a não ser o espírito de Deus (1 Cor II, 11). Se mantivermos uma relação assídua com o Espírito Santo, também nós nos faremos espirituais, nos sentiremos irmãos de Cristo e filhos de Deus, e saberemos invocá-lo sem hesitação, como Pai que é de cada um de nós (Cfr. Gal IV, 6; Rom VIII, 15).
Acostumemo-nos a procurar o convívio com o Espírito Santo, que é quem nos há de santificar; a confiar nEle, a pedir sua ajuda, a senti-lo perto de nós. Assim se irá dilatando o nosso pobre coração, teremos mais ânsias de amar a Deus e. por Ele, a todas as criaturas. E reproduzir-se-á em nossas vidas aquela visão final do Apocalipse: o Espírito e a Esposa, o Espírito Santo e a Igreja - e cada Cristão -, que se dirigem a Jesus, a Cristo, e lhe pedem que venha, que fique conosco para sempre (Cfr. Apoc XXII, 17).
137 União com a Cruz, finalmente, porque, na vida de Cristo, o Calvário precedeu a Ressurreição e o Pentecostes, e esse mesmo processo se deve reproduzir na vida de cada cristão: Somos - diz São Paulo - coherdeiros com Jesus Cristo, contanto que soframos com Ele, a fim de sermos com Ele glorificados (Rom VIII, 17). O Espírito Santo é fruto da Cruz, da entrega total a Deus, da procura exclusiva da sua glória e da completa renúncia a nós mesmos. Só quando o homem, fiel á graça, decide colocar no centro da sua alma a Cruz, negando-se a si mesmo por amor de Deus, desprendendo-se realmente do egoísmo e de toda a falsa segurança humana, quer dizer, só quando vive verdadeiramente de fé, só então é que recebe com plenitude o grande fogo, a grande consolação do Espírito Santo.
É então que chegam também à alma aquela paz e aquela liberdade que Cristo nos conquistou (Cfr. Gal IV, 31), e que nos são comunicadas com a graça do Espírito Santo. Os frutos do Espírito Santo são caridade, alegria, paz, paciência, benignidade, bondade, longanimidade, mansidão, fé, modéstia, continência, castidade (Gal V, 22-23); e onde está o Espírito do Senhor, lá está a liberdade (II Cor III, 17).
138 No meio das limitações inseparáveis da nossa situação presente - porque o pecado ainda habita de algum modo em nós -, o coração percebe com nova claridade toda a riqueza da sua filiação divina, na medida em que se reconhece plenamente livre por trabalhar nas coisas do Pai, e se sente possuído de uma alegria que se torna constante, por nada ser capaz de destruir a sua esperança.
Além disso, é também nessa hora que se torna capaz de admirar todas as belezas e maravilhas da terra, de apreciar toda a riqueza e toda a bondade, de viver o amor com toda a inteireza e toda a pureza para que foi criado o coração humano. É nessa altura que a sua dor perante o pecado não degenera nunca em reação amarga, desesperada ou arrogante, porque a compunção e o reconhecimento da fraqueza humana o levam a identificar-se de novo com as ânsias redentoras de Cristo e a sentir mais profundamente a solidariedade com todos os homens. É então, enfim, que o cristão experimenta em si, com segurança, a força do Espírito Santo, de maneira que nem as próprias quedas o abatem: porque são um convite para que recomece e para que continue a ser testemunha fiel de Cristo em todas as encruzilhadas da terra, apesar das suas misérias pessoais; misérias que, nestes casos, costumam ser faltas leves e mal turvam a sua alma, ou se são graves, encontram no Sacramento da Penitência, procurado com compunção, o meio de fazê-lo retornar à paz de Deus e de convertê-lo novamente em testemunha das misericórdias divinas.
Assim é, em breve resumo que mal consegue traduzir em pobres palavras humanas a riqueza da fé, a vida do cristão, quando se deixa guiar pelo Espírito Santo. Por isso, só posso concluir tornando minha a súplica contida num dos hinos litúrgicos da festa de Pentecostes, que é como um eco da oração incessante de toda a Igreja: Vem, Espírito Santo, visita a inteligência dos teus, enche de graça celeste os corações que criaste. Em tua escola, faz-nos conhecer o Pai, como também o Filho; faz, enfim, que acreditemos eternamente em Ti, Espírito que procedes de Um e Outro (Hino Veni Creator Spiritus do Ofício de Pentecostes).
« POR MARIA, A JESUS »
(Homilia pronunciada em 4 de Maio de 1957)
139 Um olhar sobre o mundo, um olhar sobre o Povo de Deus (Cfr. I Pet II, 10), neste mês de Maio que começa, faz-nos contemplar o espetáculo da devoção mariana que se manifesta em tantos costumes, antigos ou novos, mas vividos com um mesmo espírito de amor. Dá alegria verificar que a devoção à Virgem está sempre viva, despertando nas almas cristãs o impulso sobrenatural de se comportarem como domestici Dei, como membros da família de Deus (Eph II, 19).
Estou certo de que cada um de nós, ao ver nestes dias como tantos cristãos exprimem de mil formas diferentes o seu carinho pela Virgem Santa Maria, se sentirá também mais dentro da Igreja, mais irmão de todos os seus irmãos. É como uma reunião de família, em que os filhos já adultos, que a vida separou, voltam a encontrar-se junto de sua mãe por ocasião de uma festa. E se uma vez ou outra discutiram entre si e se trataram mal, naquele dia é diferente; naquele dia sentem-se unidos, reconhecem-se todos no afeto comum.
Maria edifica continuamente a Igreja, reúne-a, mantém-na coesa. É difícil ter uma devoção autêntica à Virgem e não sentir-se mais vinculado aos outros membros do Corpo Místico e mais unido à sua cabeça visível, o Papa. Por isso gosto de repetir: Omnes cum Petro ad lesum per Mariam!, todos, com Pedro, a Jesus por Maria! E, ao reconhecermo-nos parte da Igreja e convidados a sentir-nos irmãos na fé, descobrimos mais profundamente a fraternidade que nos une a toda a humanidade: porque a Igreja foi enviada por Cristo a todos os homens e a todos os povos (Cfr. Mt XXVIII, 19).
O que acabo de dizer é algo que já todos experimentamos, pois não nos tem faltado ocasiões de comprovar os efeitos sobrenaturais de uma sincera devoção à Virgem. Cada um poderia contar muitas coisas. E eu também. Vem agora à minha memória uma romaria que fiz em 1933, a uma ermida da Virgem em terra castelhana: a Sonsoles.
Não era uma romaria tal como se entende habitualmente. Não era ruidosa nem multitudinária: fomos apenas três pessoas. Respeito e amo essas outras manifestações públicas de piedade, mas pessoalmente prefiro tentar oferecer a Maria o mesmo carinho e o mesmo entusiasmo por meio de visitas pessoais ou em pequenos grupos, com sabor de intimidade.
Naquela romaria a Sonsoles, conheci a origem dessa invocação à Virgem, um detalhe sem muita importância, mas que é uma manifestação filial da gente daquela terra. A imagem de Nossa Senhora que se venera naquele lugar esteve escondida durante certo tempo, na época das lutas entre cristãos e muçulmanos na Espanha. Ao fim de alguns anos, foi encontrada por uns pastores que - segundo conta a tradição -, ao v ê-la, exclamaram: Que olhos tão formosos! São sóis! (N.T.: Em castelhano, Son soles).
MÃE DE CRISTO, MÃE DOS CRISTÃOS
140 Desde aquele ano de 1933, em numerosas e habituais visitas a santuários de Nossa Senhora, tive ocasião de refletir e meditar sobre a realidade desse carinho de tantos cristãos pela Mãe de Jesus. E sempre pensei que esse carinho era uma correspondência de amor, uma prova de agradecimento filial. Porque Maria está muito unida a essa manifestação máxima do amor de Deus: a Encarnação do Verbo, que se fez homem como nós e carregou com as nossas misérias e pecados. Maria, fiel à missão divina para que foi criada, excedeu-se e excede-se continuamente no serviço aos homens, que foram chamados todos eles a ser irmãos de seu Filho Jesus. E assim a Mãe de Deus é também agora, realmente, a Mãe dos homens.
Assim é, porque o quis o Senhor. E o Espírito Santo dispos que ficasse escrito, para conhecimento de todas as gerações: Estavam, junto à cruz de Jesus, sua mãe, e a irmã de sua mãe, Maria, mulher de Cleofas e Maria Madalena. E Jesus, vendo a sua Mãe e, junto dela, o discípulo que Ele amava, disse à sua Mãe: Mulher, eis aí o teu filho. Depois disse ao discípulo: Eis aí a tua Mãe. E a partir daquele momento, o discípulo a teve por Mãe (Ioh XIX, 25-27).
João, discípulo amado de Jesus, recebe Maria e introdu-la em sua casa, em sua vida. Os autores espirituais viram nessas palavras do Santo Evangelho um convite dirigido a todos os cristãos para que todos saibamos também introduzir Maria em nossas vidas. Em certo sentido, é um esclarecimento quase supérfluo, porque Maria quer sem dúvida que a invoquemos, que nos aproximemos dEla com confiança, que recorramos à sua maternidade, pedindo-lhe que se manifeste como nossa Mãe (Monstra te esse Matrem (Hino litúrgico Ave maris stella)).
Mas é uma mãe que não se faz rogar, que até se antecipa às nossas súplicas, porque conhece as nossas necessidades e vem prontamente em nosso auxílio, demonstrando com obras que se lembra constantemente de seus filhos. Cada um de nós, ao evocar a sua própria vida, e ao ver como nela se manifesta a misericórdia divina, pode descobrir mil motivos para se sentir de um modo muito especial filho de Maria.
141 Os textos das Sagradas Escrituras que nos falam de Nossa Senhora mostram-nos precisamente como a Mãe de Jesus acompanha seu Filho passo a passo, associando-se à sua missão redentora, alegrando-se e sofrendo com Ele, amando aqueles a quem Jesus ama, ocupando-se com solicitude maternal de todos os que estão a seu lado.
Pensemos, por exemplo, no relato das bodas de Caná. Entre tantos convidados de uma dessas ruidosas bodas do meio rural, a que comparecem pessoas de vários povoados, Maria percebe que falta vinho (Cfr. Ioh II, 3). Só Ela o percebe, e sem demora. Só Ela percebe, e sem demora. Como se nos revelam familiares as cenas da vida de Cristo! Porque a grandeza de Deus convive com as coisas normais e comuns. É próprio de uma mulher e de uma solícita dona de casa notar um descuido, prestar atenção a esses pequenos detalhes que tornam agradável a existência humana: e foi assim que Maria se comportou.
Reparemos também que é João quem relata o episódio de Caná: é o único evangelista que registra esse gesto de solicitude maternal. São João quer recordar-nos que Maria esteve presente no começo da vida pública do Senhor, e com isso demonstra que soube aprofundar na importância da presença da Senhora. Jesus sabia a quem confiava sua Mãe: a um discípulo que a amara, que aprendera a querer-lhe como à sua própria mãe e que era capaz de entendê-la.
Relembremos agora os dias que se seguiram à Ascensão, na expectativa do Pentecostes. Os discípulos, cheios de fé pelo triunfo de Cristo ressuscitado, e ansiosos ante a promessa do Espírito Santo, querem sentir-se unidos, e vamos encontrá-los cum Maria, Matre Iesu, com Maria, a Mãe de Jesus (Cfr. Act I, 14). A oração dos discípulos acompanha a oração de Maria; era a oração de uma família unida.
Desta vez quem nos transmite esse dado é São Lucas, o evangelista que mais longamente narrou a infância de Jesus. É como se quisesse dar-nos a entender que, assim como Maria teve um papel primordial na Encarnação do Verbo, de modo análogo esteve também presente nas origens da Igreja, que é o Corpo de Cristo.
Desde o primeiro momento da vida da Igreja, todos os cristãos que têm procurado o amor de Deus - esse amor que se nos revela e se faz carne em Jesus Cristo - encontraram-se com a Virgem e experimentaram de maneiras muito diferentes o seu desvelo maternal. A Virgem Santíssima pode chamar-se verdadeiramente Mãe de todos os cristãos. Santo Agostinho disse-o com palavras claras: Cooperou com a sua caridade para que nascessem na Igreja os fiéis, membros daquela cabeça de que Ela é efetivamente Mãe segundo o corpo (Santo Agostinho, De Sancta Virginitate, 6 (PL 40, 399)).
Não é, pois, de estranhar que um dos testemunhos mais antigos da devoção a Maria seja precisamente uma oração cheia de confiança. Refiro-me a uma antífona composta há séculos e que ainda hoje continuamos a repetir: À vossa proteção nos acolhemos, Santa Mãe de Deus. Não desprezeis as súplicas que em nossas necessidades vos dirigimos, mas livrai-nos sempre de todos os perigos, ó Virgem gloriosa e bendita (Sub tuum praesidium confugimus, Sancta Dei Genitrix: nostras deprecationes ne despicias in necessitatibus, sed a periculis cunctis libera nos semper, Virgo gloriosa et benedicta).
RELAÇÃO DE INTIMIDADE COM MARIA
142 Surge assim em nós, de forma espontânea e natural, o desejo de procurarmos a intimidade com a Mãe de Deus, que é também nossa Mãe; de convivermos com Ela como se convive com uma pessoa viva, já que sobre Ela não triunfou a morte, antes está em corpo e alma junto de Deus Pai, junto de seu Filho, junto do Espírito Santo.
Para compreendermos o papel que Maria desempenha na vida cristã, para nos sentirmos atraídos por Ela, para desejarmos a sua amável companhia com afeto filial, não necessitamos de grandes investigações, embora o mistério da Maternidade divina tenha uma riqueza de conteúdo que nunca aprofundaremos bastante.
A fé católica soube reconhecer em Maria um sinal privilegiado do amor de Deus. Deus nos chama, já agora, seus amigos; sua graça atua em nós, regenera-nos do pecado, dá-nos forças para que, no meio das fraquezas próprias de quem ainda é pó e miséria, possamos refletir de algum modo o rosto de Cristo. Não somos meros náufragos a quem Deus tenha prometido salvar, porque a salvação se realiza desde já em nós. A nossa relação com Deus não é a de um cego que anseia pela luz enquanto geme entre as angústias da escuridão; é a de um filho que se sabe amado por seu Pai.
Dessa cordialidade, dessa confiança, dessa segurança nos fala Maria. por isso o seu nome chega tão direto ao coração. A relação de cada um de nós com a sua própria Mãe pode servir-nos de modelo e de pauta para o nosso relacionamento com a Senhora do Doce Nome, Maria. Temos que amar a Deus com o mesmo coração com que amamos nossos pais, nossos irmãos, os outros membros da família, nossos amigos ou amigas: não temos outro coração. E com esse mesmo coração temos que procurar a intimidade com Maria.
Como se comporta um filho ou uma filha normal com sua mãe? De mil maneiras, mas sempre com carinho e confiança. Com um carinho que em cada caso fluirá por condutos nascidos da própria vida, e que nunca são uma coisa fria, mas costumes íntimos de lar, pequenos detalhes diários que o filho precisa ter com sua mãe e de que a mãe sente falta se alguma vez seu filho as esquece: um beijo ou uma carícia ao sair de casa ou ao voltar, uma pequena delicadeza, umas palavras expressivas...
Em nossas relações com nossa Mãe do céu, existem também essas normas de piedade filial que são os moldes do nosso comportamento habitual com Ela. Muitos cristãos adotam o antigo costume do escapulário; ou adquirem o hábito de saudar - não são precisas palavras, basta o pensamento - as imagens de Maria que se encontram em todo o lar cristão ou adornam as ruas de tantas cidades; ou vivem essa maravilhosa oração que é o terço, em que a alma não se cansa de dizer sempre as mesmas coisas, como não se cansam os namorados, e em que se aprende a reviver os momentos centrais da vida do Senhor; ou então acostumam-se a dedicar à Senhora um dia da semana - precisamente este em que agora estamos reunidos: o sábado - oferecendo-lhe alguma pequena delicadeza e meditando mais especialmente na sua maternidade.
Há muitas outras devoções marianas que não é necessário recordar neste momento. Não se trata de introduzi-las todas na vida de um cristão - crescer na vida sobrenatural é muito diferente de um simples ir amontoando devoções -, mas devo afirmar, ao mesmo tempo, que não possui a plenitude da fé cristã quem não vive algumas delas, quem não manifeste de algum modo o seu amor por Maria.
Os que consideram ultrapassadas as devoções à Santíssima Virgem dão sinais de terem perdido o profundo sentido cristão que elas encerram, e de ter em esquecido a fonte de que nascem:; a fé na vontade salvífica de Deus Pai; o amor a Deus Filho, que se fez realmente homem e nasceu de uma mulher; a confiança em Deus Espírito Santo, que nos santifica com a sua graça. Foi Deus quem nos deu Maria: não temos o direito de rejeitá-la, antes pelo contrário, devemos recorrer a Ela com amor e com alegria de filhos.
FAZER-SE CRIANÇA NO AMOR A DEUS
143 Consideremos atentamente este aspecto. Pode ajudar-nos a compreender coisas muito importantes, já que o mistério de Maria nos faz ver que, para nos aproximarmos de Deus, temos que nos tornar pequenos. Em verdade vos digo - exclamou o Senhor, dirigindo-se aos seus discípulos - se não vos fizerdes como crianças, não entrareis no reino dos céus (Mt XVIII, 3).
Fazer-se criança: renunciar à soberba, à auto-suficiência; reconhecer que sozinhos, nada podemos, porque necessitamos da graça, do poder do nosso Pai-Deus para aprender a caminhar e para perseverar no caminho. Ser criança exige abandonar-se como se abandonam as crianças, crer, como crêem as crianças, pedir como pedem as crianças.
São coisas que aprendemos no convívio com Maria. A devoção à Virgem não é blandície nem languidez: é consolo e júbilo que se apossam da alma, precisamente porque exige um exercício profundo e íntegro da fé, que nos faz sair de nós mesmos e colocar a nossa esperança no Senhor. O Senhor é meu pastor - canta um dos salmos -, nada me faltará. Em verdes prados me faz descansar, conduz-me junto às águas refrescantes; refaz a minha alma e guia-me por caminhos retos pela virtude do seu nome. Ainda que eu atravesse um vale tenebroso, nada temerei. Tu estás comigo (Ps XXII, 1-4).
Porque Maria é Mãe, sua devoção nos ensina a ser filhos: a amar deveras, sem medida; a ser simples, sem essas complicações que nascem do egoísmo de pensarmos só em nós; a estar alegres, sabendo que nada pode destruir a nossa esperança. O princípio do caminho que leva à loucura do amor de Deus é um amor confiado a Maria Santíssima. Assim o escrevi há muitos anos, no prólogo a uns comentários ao Santo Rosário, e desde então voltei a comprovar muitas vezes a verdade dessas palavras. Não vou tecer aqui muitas considerações para comentar essa idéia: prefiro, antes, convidar cada um a fazer a experiência, a descobri-lo por si mesmo, procurando manter uma relação amorosa com Maria, abrindo-lhe o coração, confiando-lhe suas alegrias e penas, pedindo-lhe que o ajude a conhecer e a seguir Jesus.
144 Se procurarmos Maria, encontraremos Jesus. E aprenderemos a entender um pouco do que há no coração de um Deus que se aniquila, que renuncia a manifestar o seu poder e a sua majestade para se apresentar sob a forma de escravo (Cfr. Phil II, 6-7). Falando em termos humanos, poderíamos dizer que Deus se excede, pois não se limita ao que seria essencial ou imprescindível para nos salvar, mas vai mais longe. A única norma ou medida que nos permite compreender de algum modo a maneira como Deus age é perceber que não tem medida, ver que nasce de uma loucura de amor que o leva a tomar a nossa carne e carregar com o peso dos nossos pecados.
Como é possível perceber tudo isso, reparar que Deus nos ama, e não enlouquecer também de amor? É necessário deixar que essas verdades da nossa fé calem na alma, até mudarem toda a nossa vida. Deus nos ama: o Onipotente, o Todo-Poderoso, o que fez o céu e a terra!
Deus interessa-se até pelas pequenas coisas das suas criaturas: e chama-nos, um a um, pelo nosso próprio nome (Cfr. Is XLIII). Essa certeza, que procede da fé, faz- nos olhar o que nos cerca sob uma nova luz, e leva-nos a perceber que, permanecendo tudo como antes, tudo se torna diferente, porque tudo é expressão do amor de Deus.
A nossa vida converte-se assim numa contínua oração, num bom humor e numa paz que nunca se acabam, num ato de ação de graças desfiado ao longo das horas.
Minha alma glorifica o Senhor - cantou a Virgem Maria - e meu espírito exulta de alegria em Deus, meu Salvador: porque olhou para a baixeza de sua serva. Por isso, desde agora me chamarão bem-aventurada todas as gerações, porque fez em mim grandes coisas o Todo-Poderoso, cujo nome é santo (Lc I, 46-49).
A nossa geração pode acompanhar e imitar essa oração de Maria. Como Ela, sentiremos o desejo de cantar, de proclamar as maravilhas de Deus, para que a humanidade inteira e todos os seres participem da nossa felicidade.
JUNTO DE MARIA, SENTIMO-NOS IRMÃOS
145 Não é possível mantermos uma relação filial com Maria e pensarmos apenas em nós mesmos, nos nossos problemas. Não podemos permanecer em relação íntima com a Virgem e termos problemas pessoais carregados de egoísmo. Maria leva a Jesus, e Jesus é primogenitus in multis fratribus, primogênito entre muitos irmãos (Rom VIII, 29). Conhecer Jesus é, portanto, compreender que não podemos ter outro sentido para a nossa vida a não ser o da entrega ao serviço do próximo. Um cristão não pode deter-se apenas nos seus problemas pessoais, mas deve viver de olhos postos na Igreja Universal, pensando na salvação de todas as almas.
Deste modo, até as facetas que se poderiam considerar mais privadas e íntimas - como a preocupação pelo progresso interior - não são na realidade pessoais, já que a santificação se funde numa só coisa com o apostolado. Devemos, pois, ser esforçados na nossa vida interior e no desenvolvimento das virtudes cristãs, mas de olhos postos no bem de toda a Igreja, já que não poderíamos fazer o bem e dar a conhecer Cristo se em nossas vidas não houvesse um esforço sincero por converter em realidade prática os ensinamentos do Evangelho.
Impregnados deste espírito, nossas orações, ainda que comecem por temas e propósitos aparentemente pessoais, acabam sempre por desembocar no serviço aos outros. E se caminhamos pela mão da Santíssima Virgem, Ela fará com que nos sintamos irmãos de todos os homens: porque somos todos filhos desse Deus de quem Ela é Filha, Esposa e Mãe.
Os problemas dos outros devem ser problemas nossos. A fraternidade cristã deve estar tão arraigada no fundo da alma, que nenhuma pessoa nos seja indiferente. Maria, Mãe de Jesus - a quem ela criou, educou e acompanhou durante a sua vida terrena e com quem está agora nos céus - ajudar-nos-á a reconhecer Jesus que passa ao nosso lado, que se nos torna presente nas necessidades dos nossos irmãos, os homens.
146 Naquela romaria de que antes falava, enquanto caminhávamos até a ermida de Sonsoles, passamos junto de um campo de trigo. A messe brilhava ao Sol, embalada pelo vento. Veio então à minha memória um texto do Evangelho, umas palavras que o Senhor dirigiu ao grupo de seus discípulos: Não dizeis vós que dentro de quatro meses virá a colheita? Pois eu vos digo: erguei os olhos e vê-de os campos que já branqueiam para a ceifa (Ioh IV, 35). Pensei uma vez mais que o Senhor queria suscitar em nossos corações o mesmo empenho, o mesmo fogo que dominava o seu. E, afastando-me um pouco do caminho, colhi umas espigas para que me servissem de lembrança.
É preciso abrir os olhos, saber olhar ao nosso redor e reconhecer essas chamadas que Deus nos dirige através dos que nos cercam. Não podemos viver de costas para a multidão, encerrados no nosso pequeno mundo. Não foi assim que Jesus viveu. Os Evangelhos falam-nos muitas vezes da sua misericórdia, da sua capacidade de participar da dor e das necessidades dos outros: compadece-se da viúva de Naim (Cfr. Lc VII, 11-17), chora a morte de Lázaro (Cfr. Ioh XI, 33), preocupa-se com as multidões que o seguem e não têm que comer (Cfr. Mat XV, 32), compadece-se sobretudo dos pecadores, que caminham pelo mundo sem conhecerem a luz nem a verdade: Ao desembarcar, Jesus viu uma grande multidão e compadeceu-se dela, porque eram como ovelhas sem pastor. E começou a ensinar-lhes muitas coisas (Mc VI 34).
Quando somos verdadeiramente filhos de Maria, compreendemos essa atitude do Senhor, nosso coração se dilata e revestimo-nos de entranhas de misericórdia. Dóem-nos, então, os sofrimentos, as misérias, os erros, a solidão, a angústia, a dor dos outros homens, nossos irmãos. E sentimos a urgência de ajudá-los em suas necessidades e de lhes falar de Deus, para que saibam tratá-lo como filhos e possam conhecer as delicadezas maternais de Maria.
SER APÓSTOLO DE APÓSTOLOS
147 Encher o mundo de luz, ser sal e luz (Cfr. Mat V, 13-14): assim descreveu o Senhor a missão dos discípulos. Levar ate os últimos confins da terra a boa nova do amor de Deus. A isso devem todos os cristãos dedicar a sua vida, de um modo ou de outro.
Direi mais: temos que sentir o profundo anseio de não permanecer sós, temos que fazer com que muitos outros se animem a contribuir para essa missão divina de levar a alegria e a paz aos corações dos homens: Na medida em que progredirdes, atraí os outros convosco, escreve São Gregório Magno. desejai ter companheiros no caminho para o Senhor (São Gregório Magno, In Evangelia homiliae, 6, 6 (PL 76, 1098)).
Mas tenhamos presente que, cum dormirent homines, enquanto os homens dormiam, veio o semeador do joio, diz o Senhor numa parábola (Mt XVIII, 25). Nós, os homens, estamos expostos a deixar-nos vencer pelo sono do egoísmo, da superficialidade, dispersando o coração em mil experiências passageiras, evitando aprofundar no verdadeiro sentido das realidades terrenas. Má coisa esse sono, que sufoca a dignidade do homem e o torna escravo da tristeza!
Há um caso que nos deve doer de modo especial: o daqueles cristãos que poderiam dar mais e não se decidem; que poderiam entregar-se totalmente, vivendo todas as conseqüências da sua vocação de filhos de Deus, mas relutam em ser generosos. Deve doer-nos porque a graça da fé não nos foi dada para que permaneça oculta, mas para que brilhe diante dos homens (Cfr. Mt V, 15-16); porque, alem disso, está em jogo a felicidade temporal e eterna dos que assim procedem. A vida cristã é uma maravilha divina, com promessas de satisfação e serenidade, com a condição, porém, de que saibamos apreciar o dom de Deus (Cfr. Ioh IV, 10), sendo generosos sem medida.
É necessário, pois, despertar os que tenham caído nesse mau sono: lembrar-lhes que a vida não é um divertimento, mas tesouro divino que deve frutificar. E é necessário também ensinar o caminho aos que têm boa vontade e bons desejos, mas não sabem como levá-los à prática. Somos urgidos a fazê-lo pelo próprio Jesus Cristo. Cada um de nós tem que ser não apenas apóstolo, mas apóstolo de apóstolos: que arraste os outros consigo, que os mova a dar a conhecer Cristo por sua vez.
148 Talvez se possa perguntar como transmitir esse conhecimento às pessoas. E respondo: com naturalidade, com simplicidade, vivendo cada qual como vive, no meio do mundo, entregue ao seu trabalho profissional e ao cuidado da família, participando das aspirações nobres dos homens, respeitando a legítima liberdade de cada um.
Há já quase trinta anos Deus pôs em meu coração o anseio de fazer compreender às pessoas de qualquer estado, condição ou ofício, esta doutrina: a vida corrente pode ser santa e plena de Deus; o Senhor chama-nos a santificar as ocupações habituais, porque nelas se encontra a perfeição do cristão. Consideremo-lo uma vez mais, contemplando a vida de Maria.
Não esqueçamos que a quase totalidade dos dias que Nossa Senhora passou na terra decorreram de forma muito parecida à de milhões de outras mulheres, ocupadas em cuidar da família, em educar os filhos, em levar a cabo as tarefas do lar. Maria santifica as coisas mais pequenas, aquelas que muitos consideram erroneamente como intranscendentes e sem valor: o trabalho de cada dia, os pormenores de atenção com as pessoas queridas, as conversas e visitas por motivos de parentesco ou de amizade. Bendita normalidade, que pode estar repassada de tanto amor de Deus!
Porque é isso o que explica a vida de Maria: o seu amor. Um amor levado até ao extremo, até ao esquecimento completo de si mesma, feliz de estar onde Deus a quer, cumprindo com esmero a vontade divina. Isso é o que faz com que o menor de seus gestos não seja nunca banal, mas cheio de conteúdo. Maria, nossa Mãe, é para nós exemplo e caminho. Temos que procurar ser como Ela, nas circunstâncias concretas em que Deus quis que vivêssemos.
Se procedermos assim, daremos aos que nos rodeiam o testemunho de uma vida simples e normal, com as limitações e os defeitos próprios da nossa condição humana, mas coerente. E ao percebermos que somos iguais a eles em todas as coisas, os outros sentir-se-ão impelidos a perguntar-nos: Como se explica a sua alegria? Donde vos vêm as forças para vencer o egoísmo e o comodismo? Quem vos ensina a viver a compreensão, a reta convivência e a entrega, o serviço aos outros?
É então o momento de lhes manifestar o segredo divino da existência cristã, de lhes falar de Deus, de Cristo, do Espírito Santo, de Maria; o momento de procurar transmitir, através das nossas pobres palavras, a loucura do amor a Deus que a graça derramou em nossos corações.
149 São João conserva em seu Evangelho uma frase maravilhosa da Virgem, num episódio que já consideramos antes: o das bodas de Caná. Narra-nos o evangelista que, dirigindo-se aos criados, Maria lhes disse: Fazei o que Ele vos disser (Ioh II, 5). É disso que se trata: de levar as almas a situar-se diante de Jesus e a perguntar-lhe: Domine, quid me vis facere?, Senhor, que queres que eu faça? (Act IX, 6).
O apostolado cristão - e refiro-me agora, especificamente, ao apostolado de um simples cristão, ao de um homem ou mulher que vive como outro qualquer entre os seus iguais - é uma grande catequese em que, através do relacionamento pessoal, de uma amizade leal e autêntica, se desperta nos outros a fome de Deus e se ajuda cada um a descobrir novos horizontes - com naturalidade, com simplicidade, como disse, com o exemplo de uma fé bem vivida, com a palavra amável, mas cheia da força da verdade divina.
Sejamos audazes. Contamos com o auxílio de Maria, Regina Apostolorum. E Nossa Senhora, sem deixar de se comportar como Mãe, sabe colocar seus filhos sem face de suas responsabilidades. Aos que dEla se aproximam e contemplam a sua vida, Maria faz sempre o imenso favor de os levar a até a cruz, de os colocar bem diante do exemplo do Filho de Deus. E nesse confronto em que se decide a vida cristã, Maria intercede para que a nossa conduta culmine com uma reconciliação do irmão menor - tu e eu - com o Filho primogênito do Pai.
Muitas conversões, muitas decisões de entrega ao serviço de Deus foram precedidas de um encontro com Maria. Nossa Senhora fomentou os desejos de procura, ativou maternalmente as inquietações da alma, fez ansiar por uma mudança, por uma vida nova. E, assim, aquele fazei o que Ele vos disser converteu-se em realidades de amorosa entrega, em vocação cristã que ilumina desde então toda a nossa vida.
Estes momentos de conversa diante do Senhor, em que meditamos sobre a nossa devoção e carinho por sua Mãe, podem, pois, reavivar a nossa fé. O mês de Maio está começando. O Senhor quer que não desperdicemos esta ocasião de crescer no seu Amor através de um trato íntimo com sua Mãe. Saibamos ter com Ela, em cada dia, esses pormenores filiais - pequenas coisas, atenções delicadas - que se irão tornando grandes realidades de santidade pessoal e de apostolado, quer dizer, de empenho constante por contribuir para a salvação que Cristo veio trazer ao mundo.
Sancta Maria, spes nostra, ancilla Domini, sedes Sapientiae, ora pro nobis! Santa Maria, esperança nossa, escrava do Senhor, sede de Sabedoria, rogai por nós!
« NA FESTA DO CORPUS CHRISTI »
(Homilia pronunciada em 28 de Maio de 1964, festa do Corpus Christi)
150 Hoje, festa do Corpus Christi, meditemos juntos na profundidade do amor do Senhor, que o levou a permanecer oculto sob as espécies sacramentais; e é como se ouvíssemos fisicamente aqueles seus ensinamentos à multidão: Eis que saiu o semeador a semear. E, quando semeava, parte da semente caiu junto do caminho, e vieram as aves do céu e comeram-na. Outra parte em terreno pedregoso, onde não havia muita terra, e logo brotou, porque estava à superfície; mas saindo o sol, queimou-se e, como não tinha raiz, secou. Outra parte caiu entre espinhos, e os espinhos cresceram e sufocaram-na. Outra parte caiu em terra boa e deu fruto: uns grãos cem, outros sessenta, outros trinta (Mt XIII, 3-8).
A cena é atual. Também agora o Semeador divino lança a sua semente. A obra da salvação continua a realizar-se, e o Senhor quer servir-se de nós: deseja que nós, os cristãos, abramos ao seu amor todos os caminhos da terra; convida-nos a propagar a mensagem divina, com a doutrina e com o exemplo, até os últimos recantos da terra. Pede-nos que, sendo cidadãos tanto da sociedade eclesial como da civil, ao desempenharmos com fidelidade os nossos deveres, sejamos cada um de nós outro Cristo, santificando o trabalho profissional e as obrigações do nosso próprio estado.
Se olharmos ao nosso redor, para este mundo que amamos porque é obra saída das mãos de Deus, observaremos que a parábola se converte em realidade: a palavra de Jesus Cristo é fecunda, suscita em muitas almas desejos de entrega e de fidelidade. A vida e o comportamento dos que servem a Deus mudaram a História, e até muitos dos que não conhecem o Senhor se deixam guiar, talvez até sem o saberem, por ideais nascidos do cristianismo.
Vemos também que parte da semente cai em terra estéril, entre espinhos e abrolhos: há corações que se fecham à luz da fé. Os ideais de paz, de reconciliação, de fraternidade são aceitos e proclamados, mas - não poucas vezes - são desmentidos pelos fatos. Alguns homens empenham-se inutilmente em aferrolhar a voz de Deus, impedindo a sua difusão pela força bruta ou servindo-se de uma arma menos ruidosa, mas talvez mais cruel, porque insensibiliza o espírito: a indiferença.
O PÃO DA VIDA ETERNA
151 Gostaria que ao considerarmos tudo isto, tomássemos consciência da nossa missão de cristãos e volvêssemos os olhos para a Sagrada Eucaristia, para Jesus que, presente entre nós, nos constituiu seus membros: Vos estis corpus Christi et membra de membro (I Cor XII, 27), vós sois o corpo de Cristo e membros unidos a outros membros. Nosso Deus decidiu permanecer no Sacrário para nos alimentar, para nos fortalecer, para nos divinizar, para dar eficácia ao nosso trabalho e ao nosso esforço . Jesus é simultaneamente o semeador, a semente e o fruto da semeadura: é o Pão da vida eterna.
Este milagre da Sagrada Eucaristia, que continuamente se renova, encerra todas as características do modo como Jesus se comporta. Perfeito Deus e perfeito homem, Senhor dos céus e da terra, Ele se oferece a cada um como sustento, da maneira mais natural e comum. Assim espera o nosso amor, desde há quase dois mil anos. É muito tempo e não é muito tempo: porque, quando há amor, os dias voam.
Vem à minha memória uma encantadora poesia galega, uma das cantigas de Afonso X, o Sábio. É a lenda de um monge que, na sua simplicidade, suplicou a Santa Maria que lhe deixasse contemplar o céu, ainda que fosse por um instante. A Virgem acolheu seu desejo, e o bom monge foi levado ao Paraíso. Quando regressou, não reconhecia nenhum dos moradores do mosteiro: a sua oração, que lhe parecera brevíssima, havia durado três séculos. Três séculos não são nada para um coração que ama. Assim compreendo eu esses dois mil anos de espera do Senhor na Eucaristia. É a espera de um Deus que ama os homens, que nos procura, que nos quer tal como somos - limitados, egoístas, inconstantes -, mas com capacidade para descobrir seu infinito carinho e nos entregarmos a Ele por inteiro.
Por amor e para nos ensinar a amar, veio Jesus à terra e ficou entre nós na Eucaristia. Como tivesse amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim (Ioh XIII, 1). Com essas palavras começa São João o relato do que sucedeu naquela véspera da Páscoa, em que Jesus - refere-nos São Paulo - tomou o pão e, dando graças, partiu-o e disse: Isto é o meu corpo, que será entregue por vós; fazei isto em memória de mim. E do mesmo modo, depois da ceia, tomou o cálice, dizendo: Este cálice é o novo testamento do meu sangue; fazei isto em memória de mim todas as vezes que o beberdes (I Cor XI, 23-25).
UMA VIDA NOVA
152 É o momento simples e solene da instituição do Novo Testamento. Jesus derroga a antiga economia da Lei e revela-nos que Ele mesmo será o conteúdo da nossa oração e da nossa vida.
Reparemos na alegria que inunda a liturgia de hoje: Seja o louvor pleno, sonoro, alegre (Sequência Lauda Sion). É o júbilo cristão que canta a chegada de outro tempo: Terminou a antiga Páscoa, inicia-se a nova. O velho é substituído pelo novo, a verdade faz a sombra desaparecer, a noite é eliminada pela luz (Idem).
Milagre de amor. Este é verdadeiramente o pão dos filhos (Idem): Jesus, o primogênito do Pai Eterno, se oferece a todos nós em alimento. E o mesmo Jesus Cristo, que aqui nos robustece, espera-nos no céu como comensais, co-herdeiros e sócios (Idem), porque aqueles que se nutrem de Cristo, morrerão de morte terrena e temporal, mas depois viverão eternamente, porque Cristo é a vida imperecível (Santo Agostinho, In Ioannis Evangelium tractatus, 26, 20 (PL 35, 1616)).
Para o cristão que se conforta com o maná definitivo da Eucaristia, a felicidade eterna começa já agora. O que era velho passou; deixemos de lado as coisas caducas, seja tudo novo opara nós: os corações, as palavras e as obras (Hino Sacris Solemnis).
Esta é a Boa Nova. É novidade, notícia, porque nos fala de uma profundidade de Amor de que antes não suspeitávamos. É boa, porque nada há de melhor que unir-nos intimamente a Deus. Bem de todos os bens. É a Boa Nova, porque, de alguma maneira, e de um modo indescritível, nos antecipa a eternidade.
COMUNICAR-SE COM JESUS PELA PALAVRA E PELO PÃO
153 Jesus esconde-se no Santíssimo Sacramento do altar para que nos atrevamos a procurar a sua companhia, para ser nosso sustento, e para que assim nos tornemos uma só coisa com Ele. Quando disse: Sem mim, nada podeis fazer (Ioh XV, 5), não condenou o cristão à ineficácia nem o obrigou a uma busca árdua e difícil da sua Pessoa. Ficou entre nós com uma disponibilidade total.
Nos momentos em que nos reunimos diante do altar, enquanto se celebra o Santo Sacrifício da Missa, quando contemplamos a Sagrada Hóstia exposta no ostensório ou a adoramos escondida no Sacrário, devemos reavivar a nossa fé, pensar na nova existência que vem até nós, e comover-nos perante o carinho e a ternura de Deus.
E perseveraram todos na doutrina dos Apóstolos, na comunicação da fração do pão e nas orações (Act II, 42). É assim que as Escrituras nos descrevem a conduta dos primeiros cristãos: congregados pela fé dos Apóstolos em perfeita unidade, ao participarem da Eucaristia: unânimes na oração. Fé, Pão, Palavra.
Jesus na Eucaristia é penhor firme da sua presença em nossas almas; do seu poder, que sustenta o mundo; das suas promessas de salvação, que ajudarão a família humana a habitar perpetuamente na casa do céu, quando chegar o fim dos tempos, em torno de Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo: Trindade Beatíssima, Deus Único. É toda a nossa fé que se põe em movimento quando cremos em Jesus, na sua presença real sob os acidentes do pão e do vinho.
154 Não entendo como se pode viver cristãmente sem sentir a necessidade de uma amizade constante com Jesus na Palavra e no Pão, na oração e na Eucaristia. E entendo perfeitamente que, ao longo dos séculos, as sucessivas gerações de fiéis tenham ido concretizando essa piedade eucarística: umas vezes, com práticas multitudinárias, professando publicamente a sua fé; outras, com gestos silenciosos e calados, na sagrada paz do templo ou na intimidade do coração.
Antes de mais, devemos amar a Santa Missa, que tem que ser o centro do nosso dia. Se vivemos bem a Missa, como não havemos de continuar depois o resto da jornada com o pensamento no Senhor, com o desejo irreprimível de não nos afastarmos da sua presença, para trabalhar como Ele trabalhava e amar como Ele amava? Aprendemos então a agradecer ao Senhor mais outra delicadeza: que não tenha querido limitar a sua presença ao instante do Sacrifício do Altar, mas tenha decidido permanecer na Hóstia Santa que se reserva no Tabernáculo, no Sacrário.
Devo dizer que, para mim, o Sacrário foi sempre Betânia, o lugar tranqüilo e aprazível onde está Cristo, onde lhe podemos contar as nossas preocupações, nossos sofrimentos, nossos anseios e nossas alegrias, com a mesma simplicidade e naturalidade com que lhe falavam aqueles seus amigos Marta, Maria e Lázaro. Por isso, ao percorrer as ruas de uma cidade ou de uma aldeia, alegra-me descobrir, mesmo ao longe, a silhueta de uma igreja: é um novo Sacrário, uma nova ocasião de deixar que a alma se escape para estar em desejo junto do Senhor Sacramentado.
FECUNDIDADE DA EUCARISTIA
155 Quando o Senhor instituiu a Sagrada Eucaristia, na Última Ceia, era de noite, o que manifestava - comenta São João Crisóstomo - que os tempos já se tinham cumprido (In Matthaeum homiliae, 82, 1 (PG 58, 700)). Caía a noite sobre o mundo, porque os velhos ritos, os antigos sinais da misericórdia infinita de Deus para com a humanidade seriam realizar plenamente, abrindo caminho a um verdadeiro amanhecer: a nova Páscoa. A Eucaristia foi instituída durante a noite, preparando de antemão a manhã da Ressurreição.
Também em nossas vidas temos que preparar essa alvorada. Tudo o que é caduco e nocivo, tudo o que não presta - o desânimo, a desconfiança, a tristeza, a covardia -, tudo isso deve ser jogado fora. A Sagrada Escritura introduz a novidade divina nos filhos de Deus, e devemos corresponder in novitate sensus (Rom XII, 2), com uma renovação de todos os nossos sentimentos e de toda a nossa conduta. Foi-nos dado um princípio novo de energia, uma raiz poderosa, enxertada no Senhor. Não podemos voltar ao antigo fermento, nós que temos o Pão de hoje e de sempre.
156 Nesta festa, em cidades de um extremo ao outro da terra, os cristãos acompanham o Senhor em procissão. Escondido na Hóstia, Ele percorre as ruas e praças - como na sua vida terrena - saindo ao encontro daqueles que o querem ver, fazendo-se encontradiço dos que não o procuram. Jesus aparece assim, uma vez mais, no meio dos seus: como reagimos perante essa chamada do Mestre?
As manifestações externas de amor devem nascer do coração e prolongar-se através do testemunho de uma conduta cristã. Se fomos renovados pela Recepção do Corpo do Senhor, devemos manifestá-lo com obras. Que os nossos pensamentos sejam sinceros: de paz, de entrega, de serviço. Que as nossas palavras sejam verdadeiras, claras, oportunas; que saibam consolar e ajudar, que saibam sobretudo levar aos outros a luz de Deus. Que as nossas ações sejam coerentes, eficazes, acertadas: que tenham esse bonus odor Christi (II Cor II, 15), o bom odor de Cristo, por recordarem o seu modo de se comportar e de viver.
A procissão do Corpo de Deus torna Cristo presente nas aldeias e cidades do mundo. Mas essa presença, repito, não deve ser coisa de um dia, ruído que se ouve e se esquece. Essa passagem de Jesus lembra-nos que devemos descobri-lo também nas nossas ocupações habituais. A par da procissão solene desta quinta-feira, deve avançar a procissão silenciosa e simples da vida comum de cada cristão, homem entre os homens, mas feliz de ter recebido a fé e a missão divina de se conduzir de tal modo que renove a mensagem do Senhor sobre a terra. Não nos faltam erros, misérias, pecados. Mas Deus está com os homens, e devemos colocar-nos à sua disposição para que Ele se sirva de nós e se torne contínua a sua passagem entre as criaturas.
Peçamos, pois, ao Senhor que nos conceda a graça de ser almas de Eucaristia, que a nossa relação pessoal com Ele se traduza em alegria, em serenidade, em propósitos de justiça. E assim facilitaremos aos outros tarefa de reconhecerem Cristo, contribuiremos para colocá-lo no cume de todas as atividades humanas. Cumprir-se-á a promessa de Jesus: Eu, quando for exaltado sobre a terra, tudo atrairei a mim (Ioh XII, 32).
O PÃO E A CEIFA: COMUNHÃO COM TODOS OS HOMENS
157 Jesus, dizia no começo, é o Semeador. E, por intermédio dos cristãos, prossegue a sua semeadura divina. Cristo aperta o trigo em suas mãos chagadas, embebe-o no seu sangue, limpa-o, purifica-o e lança-o no sulco que é o mundo. Lança os grãos um a um, para que cada cristão, no seu próprio ambiente, dê testemunho da fecundidade da Morte e da Ressurreição do Senhor.
Se estamos nas mãos de Cristo, devemos impregnar-nos do seu Sangue redentor, deixar-nos lançar ao vento, aceitar a nossa vida tal como Deus a quer. E convencer-nos de que, para frutificar, a semente tem que enterrar-se e morrer (Cfr. Ioh XII, 24). Depois ergue-se o talo e surge a espiga; e da espiga, o pão, que será convertido por Deus no Corpo de Cristo. Dessa forma voltamos a reunir-nos em Jesus, que foi o nosso Semeador. Porque um só é o pão, e, embora sejamos muitos, formamos um só corpo, pois todos participamos desse único pão (I Cor X, 17).
Não percamos nunca de vista que não há fruto onde antes não houve semeadura: é preciso, portanto, espalhar generosamente a palavra de Deus, fazer com que os homens conheçam Cristo e, conhecendo-o, tenham fome dEle. A festa do Corpus Christi - Corpo de Cristo, Pão da Vida - é uma boa ocasião para meditarmos nessa fome que se observa nos homens: fome de verdade, de justiça, de unidade e de paz. Perante a fome de paz, devemos repetir com São Paulo: Cristo é a nossa paz, pax nostra (Eph II, 14). Os desejos de verdade hão de recordar-nos que Jesus é o caminho, a verdade e a vida (Cfr. Ioh XIV, 6). Aos que aspiram a unidade, devemos colocá-los diante de Cristo, que ora para que sejamos consummati in unum, consumados na unidade (Ioh XVII, 23). A fome de justiça deve conduzir-nos à fonte originária da concórdia entre os homens: ser e sabermo-nos filhos do Pai e irmãos.
Paz, verdade, unidade, justiça. Que difícil parece às vezes a tarefa de transpor as barreiras que impedem a convivência humana! E, não obstante, nós, cristãos, somos chamados a realizar esse grande milagre da fraternidade: conseguir, com a graça de Deus, que os homens se tratem cristãmente, levando uns as cargas dos outros (Gal VI, 2), vivendo o mandamento do Amor, que é o vínculo da perfeição e resumo da Lei (Cfr. Col III, 14 e Rom XIII, 10).
158 Não se nos pode ocultar que resta ainda muito por fazer. Em certa ocasião, contemplando talvez o suave movimento das espigas já graúdas, disse Jesus aos seus discípulos: A messe é grande, mas os operários são poucos. Rogai, pois, ao Senhor da messe que mande operários para a sua messe (Mt IX, 38). Como então, também agora faltam peões que queiram suportar o peso do dia e do calor (Mt XX, 12). E se nós, os que trabalhamos, não formos fiéis, acontecerá o que descreveu o profeta Joel: Destruída a colheita, a terra fica de luto: porque o trigo está seco, o vinho arruinado e o azeite perdido. Os lavradores estão confusos, os vinhateiros gritam por causa do trigo e da cevada. Não há colheita (Ioel I, 10-11).
Não há colheira quando não se está disposto a aceitar generosamente um trabalho constante, que pode tornar-se longo e cansativo: lavrar a terra, semear, cuidar dos campos, fazer a ceifa e a debulha... É na história, no tempo, que se edifica o Reino de Deus. O Senhor confiou-nos a todos essa tarefa, e ninguém pode sentir-se dispensado dela. Ao adorarmos e contemplarmos hoje Cristo na Eucaristia, pensemos que ainda não chegou a hora do descanso, que a jornada continua.
Lê-se no livro dos Provérbios: Aquele que cultiva a sua terra terá pão em abundância (Prv XII, 11). Procuremos aplicar esta passagem à nossa vida espiritual: quem não lavra o terreno de Deus, quem não é fiel à missão divina de se entregar ao serviço dos outros, ajudando-os a conhecer Cristo, dificilmente conseguirá entender o que é o Pão Eucarístico. Ninguém aprecia o que não lhe custou esforço. Para apreciarmos e amarmos a Sagrada Eucaristia, temos que percorrer o caminho de Jesus: ser trigo, morrer para nós mesmos, ressurgir cheios de vida e dar fruto abundante: cem por um! (Cfr. Mc IV, 8).
Esse caminho resume-se numa única palavra: amar. Amar é ter o coração grande, sentir as preocupações dos que estão ao nosso lado, saber perdoar e compreender: sacrificar-se, com Jesus Cristo, por todas as almas. Se amarmos com o coração de Cristo, aprenderemos a servir, e defenderemos a verdade claramente e com amor. Para amar desse modo, é preciso que cada um extirpe da sua própria vida tudo o que estorva a vida de Cristo em nós: O apego à nossa comodidade, a tentação do egoísmo, a tendência para a exaltação pessoal. Só se reproduzirmos em nós a vida de Cristo, poderemos transmiti-la aos outros; só se experimentarmos a morte do grão de trigo, poderemos trabalhar nas entranhas da terra, transformá-la por dentro, torná-la fecunda.
O OTIMISMO CRISTÃO
159 Talvez possa surgir uma vez por outra a tentação de pensar que tudo isso é tão bonito quanto um sonho irrealizável. Falei de renovar a fé e a esperança; permaneçamos firmes, com a certeza absoluta de que as nossas aspirações se verão cumuladas pelas maravilhas de Deus. Mas para isso é indispensável que nos ancoremos de verdade na virtude cristã da esperança.
Não nos acostumemos aos milagres que se operam diante dos nossos olhos: ao admirável prodígio de que o Senhor desça todos os dias às mãos do sacerdote. Jesus quer que estejamos despertos, para que nos convençamos da grandeza do seu poder, e para que ouçamos novamente a sua promessa: Venite post me, et faciam vos fieri piscatores hominum (Mc I, 17), se me seguirdes, farei de vós pescadores de homens; sereis eficazes e atraireis as almas para Deus. Devemos confiar, pois, nessas palavras do Senhor, entrar na barca, empunhar os remos, içar as velas e lançar-nos a esse mar do mundo que Cristo nos entrega por herança. Duc in altum et laxate retia vestra in capturam! (Lc V, 4) - fazei-vos ao largo e lançai as vossas redes para pescar.
Este zelo apostólico que Cristo infundiu em nossos corações não deve esgotar-se - extinguir-se - por falsa humildade. Se é verdade que arrastamos misérias pessoais, também é verdade que o Senhor conta com os nossos erros. Não escapa ao seu olhar misericordioso que nós, os homens, somos criaturas com limitações, com fraquezas, com imperfeições, inclinadas a pecar. Porém, manda-nos que lutemos, que reconheçamos os nossos defeitos; não para nos acovardarmos, mas para nos arrependermos e fomentarmos o desejo de ser melhores.
Além disso devemos lembrar-nos sempre de que somos apenas instrumentos: Porquanto, que é Apolo, que é Paulo? Ministros daquele em quem vós crestes, e segundo o dom que Deus conferiu a cada um. Eu plantei, Apolo regou; mas quem deu o crescimento foi Deus (I Cor III, 4-6). A doutrina, a mensagem que devemos propagar, tem uma fecundidade própria e infinita, que não é nossa, mas de Cristo. É o próprio Deus quem está empenhado em realizar a obra salvadora, em redimir o mundo.
160 Fé, pois, sem permitir que o desalento nos do mine, sem nos determos em cálculos meramente humanos. Para vencer os obstáculos, é necessário começar a trabalhar, mergulhar de corpo e alma na tarefa, de tal maneira que o próprio o esforço nos leve a abrir novos caminhos. Perante qualquer dificuldade, esta é a panacéia: santidade pessoal, entrega ao Senhor.
A santidade consiste em viver tal como nosso Pai dos céus dispos que vivêssemos. É difícil? Sim, o ideal á muito elevado. Mas, por outro lado, é fácil: está ao alcance da mão. Quando uma pessoa adoece, acontece às vezes que não se consegue encontrar o remédio adequado. No terreno sobrenatural não é assim. O remédio está sempre junto de nós: é Cristo Jesus, presente na Sagrada Eucaristia, que nos dá, além disso, a sua graça através dos outros Sacramentos que instituiu.
Repitamos com a palavra e com as obras: Senhor, confio em Ti, basta-me a tua providência ordinária, a tua ajuda de cada dia. Não é questão de pedir a Deus grandes milagres. Devemos, antes, pedir-lhe que aumente a nossa fé, que ilumine a nossa inteligência, que fortaleça a nossa vontade. Jesus permanece sempre junto de nós, e comporta-se sempre como quem é.
Desde o começo da minha pregação, tenho prevenido contra um falso endeusamento. Não te perturbes se te conheces tal como és; assim, de barro. Não te preocupes. Porque tu e eu somos filhos de Deus - Eis o endeusamento bom - escolhidos pela chamada divina desde toda a eternidade: Escolheu-nos o Pai, por Jesus Cristo, antes da criação do mundo, para que sejamos santos na sua presença (Eph I, 4). Nós que pertencemos especialmente a Deus, que somos seus instrumentos apesar da nossa pobre miséria pessoal, seremos eficazes se não perdermos o conhecimento da nossa fraqueza. As tentações dão-nos a dimensão da nossa própria fragilidade.
Se nos sentirmos abatidos, por experimentarmos - talvez de um modo particularmente vivo - a nossa mesquinhez, é o momento de nos abandonarmos por completo, com docilidade, nas mãos de Deus. Conta-se que, certo dia, um mendigo saiu ao encontro de Alexandre Magno e pediu-lhe uma esmola. Alexandre deteve-se e ordenou que o fizessem senhor de cinco cidades. O pobre, confuso e aturdido, exclamou: "Eu não pedia tanto!" E Alexandre respondeu: "Tu pediste como quem és; eu te dou como quem sou".
Mesmo nos momentos em que percebemos mais profundamente a nossa limitação, podemos e devemos olhar para Deus Pai, para Deus Filho e para Deus Espírito Santo, sabendo-nos participantes da vida divina. Não há nunca motivo suficiente para voltarmos a cara para trás (Cfr. Lc IX, 62): o Senhor está ao nosso lado. Temos que ser fiéis, leais, fazer frente às nossas obrigações, encontrando em Jesus o amor e o estímulo para compreender os erros dos outros e vencer os nossos próprios erros. Assim, todos esses abatimentos - os teus, os meus, os de todos os homens -, servirão também de suporte para o reino de Cristo.
Reconheçamos as nossas mazelas, mas confessemos o poder de Deus. O otimismo, a alegria, a convicção firme de que o Senhor quer servir-se de nós, têm de informar a vida cristã. Se nos sentimos parte da Igreja Santa, se nos consideramos sustentados pela rocha firme de Pedro e pela ação do Espírito Santo, decidir-nos-emos a cumprir o pequeno dever de cada instante: a semear cada dia um pouco. E a colheita fará transbordar os celeiros.
161 Terminemos esse tempo de oração. Saboreando na intimidade da alma a infinita bondade divina, lembremo-nos de que, pelas palavras da Consagração, Cristo se tornará realmente presente na Hóstia, com seu Corpo, seu Sangue, sua Alma e sua Divindade. Adoremo-lo com reverência e com devoção; renovemos na sua presença o oferecimento sincero do nosso amor; digamos-lhe sem medo que o amamos; agradeçamos-lhe esta prova diária de misericórdia, tão cheia de ternura, e fomentemos o desejo de nos aproximarmos da Comunhão com confiança. Eu me surpreendo diante deste mistério de Amor: o Senhor procura como trono o meu pobre coração, para não me abandonar se eu não me afasto dEle.
Reconfortados pela presença de Cristo, alimentados com o seu Corpo, seremos fiéis durante esta vida terrena; e mais tarde, no céu, junto de Jesus e de sua Mãe, chamar-nos-emos vencedores. Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão? Demos, pois, graças a Deus, que nos trouxe à vitória por Nosso Senhor Jesus Cristo (I Cor XV, 55 e 57).
« O CORAÇÃO DE CRISTO, PAZ DOS CRISTÃOS »
(Homilia pronunciada em 17 de junho de 1966, festa do Sagrado Coração de Jesus)
162 Deus Pai dignou-se conceder-nos, no coração de seu Filho, infinitos dilectionis thesauros (Oração da missa do Sagrado Coração), tesouros inesgotáveis de amor, de misericórdia, de carinho. Se quisermos descobrir a evidência de que Ele nos ama - de que não só escuta as nossas orações, como a elas se antecipa -, basta-nos seguir o mesmo raciocínio de São Paulo: Aquele que nem ao seu próprio Filho perdoou, antes o entregou à morte por todos nós, como não nos dará com Ele todas as coisas? (Rom VIII, 32).
A graça renova o homem por dentro e converte-o, de pecador e rebelde, em servo bom e fiel (Cfr. Mt XXV, 21). E a fonte de todas as graças é o amor que Deus nos dedica e que nos revelou não apenas com palavras, mas também com fatos. Foi o amor divino que levou a segunda Pessoa da Santíssima Trindade - o Verbo, o Filho de Deus Pai - a assumir a nossa carne, isto é, a nossa condição humana, à exceção do pecado. E o Verbo, a Palavra de Deus, é Verbum spirans amorem, é a Palavra da qual procede o Amor (São Tomás de Aquino, S. Th. I, q. 43, a. 5 (citando Santo Agostinho, De Trinitate, IX, 10)).
O Amor revela-se-nos através da Encarnação, desse caminhar redentor de Jesus Cristo pela nossa terra, até ao sacrifício supremo da Cruz. E, na Cruz, manifesta-se por de um novo sinal: Um dos soldados abriu o lado de Jesus com uma lança, e imediatamente saiu sangue e água (Ioh XIX, 34). Água e sangue de Jesus, que nos falam de uma entrega realizada até ao último extremo, até ao consummatum est (Ioh XIX, 30), ao "tudo está consumado", por amor.
Na festa de hoje, ao considerarmos uma vez mais os mistérios centrais da nossa fé, maravilhamo-nos de que as realidades mais profundas - o amor de Deus Pai, que nos entrega seu Filho; o amor do Filho, que o leva a caminhar serenamente para o Gólgota - se traduzam em gestos muito próximos dos homens. Deus não se dirige a nós em atitude de poder e de domínio. Aproxima-se de cada um, tomando forma de servo, feito semelhante aos homens (Phil II, 7). Jesus nunca se mostra distante ou altaneiro. Por vezes, durante os seus anos de pregação, chegamos a vê-lo desgostoso, por lhe doer a maldade humana. mas, se prestamos um pouco de atenção, logo compreenderemos que o desgosto e a ira lhe nascem do amor: são um novo convite para que abandonemos a infidelidade e o pecado. Quero eu porventura a morte do ímpio - diz o Senhor Deus -, e não antes que se converta do seu mau caminho e viva? (Ez XVIII, 23) Estas palavras explicam-nos toda a vida de Cristo e fazem-nos compreender porque se apresentou diante de nós com um Coração de carne, com um Coração como o nosso, que é prova fidedigna do amor e testemunho constante do mistério inenarrável da caridade divina.
CONHECER O CORAÇÃO DE CRISTO JESUS
163 Não posso deixar de confidenciar algo que constitui para mim motivo de pena e ao mesmo tempo de estímulo para agir: é pensar nos homens que ainda não conhecem Cristo, que ainda não vislumbram a profundidade da bem-aventurança que nos espera nos céus, e que andam pela terra como cegos, em perseguição de uma alegria cujo verdadeiro nome ignoram, ou se perdem por caminhos que os afastam da autêntica felicidade. Como se entende bem o que deve ter sentido o Apóstolo Paulo na cidade de Trôade, naquela noite em que, entre sonhos, teve uma visão! Um homem macedônio postou-se diante dele, rogando-lhe: passa à Macedônia e ajuda-nos. Terminada a visão, logo procuraram - Paulo e Timóteo - passar à Macedônia, certos de que Deus os chamava a pregar o Evangelho àquelas gentes (Act XVI, 9-10).
Não sentimos também que Deus nos chama, que - através de tudo o que sucede à nossa volta - nos incita a proclamar a boa nova da vinda de Jesus? Mas às vezes nós, cristãos, apoucamos a nossa vocação, caímos na superficialidade e perdemos o tempo em disputas e rixas. Ou, o que é pior ainda, não falta quem se escandalize com o modo como os outros vivem certos aspectos da fé ou determinadas devoções; e, em lugar de abrirem eles o caminho, esforçando- se por vivê-las da maneira que consideram reta, se põem a destruir e a criticar. É claro que podem surgir, e de fato surgem, deficiências na vida dos cristãos. Mas o que importa não somos nós e as nossas misérias: só Ele, só Jesus, é que importa. É de Cristo que devemos falar, não de nós mesmos.
As reflexões que acabo de fazer vão ao encontro de certos comentários sobre uma suposta crise na devoção ao Sagrado Coração de Jesus. Não há tal crise. A verdadeira devoção foi e continua a ser nos nossos dias uma atitude viva, cheia de sentido humano e de sentido sobrenatural. Seus frutos têm sido e continuam a ser frutos saborosos de conversão, de entrega, de cumprimento da vontade de Deus, de penetração amorosa nos mistérios da Redenção.
Coisa bem diversa, pelo contrário, são as manifestações do sentimentalismo ineficaz, vazio de doutrina, empanturrado de pietismo. Eu também não gosto das imagens adocicadas, dessas representações do Sagrado Coração que não podem inspirar devoção alguma a pessoas com senso comum e com senso sobrenatural de cristãos. Mas não é prova de boa lógica converter certos abusos práticos, que acabam desaparecendo por si, num problema doutrinal, teológico.
Se há crise, é no coroação dos homens, que - por miopia, por egoísmo, por estreiteza de vistas - não conseguem vislumbrar o insondável amor de Cristo Senhor Nosso. Desde que se instituiu a festa de hoje, a liturgia da Santa Igreja soube oferecer o alimento da verdadeira piedade, incluindo entre as leituras da missa um texto de São Paulo em que nos é proposto todo um programa de vida contemplativa - conhecimento e amor, oração e vida - e que começa por esta devoção ao Coração de Jesus. O próprio Deus, pela boca do Apóstolo, nos convida a avançar por esse caminho: Que Cristo habite pela fé em vossos corações; e que, arraigados e alicerçados na caridade, possais compreender com todos santos qual a amplitude e a grandeza, a altura e a profundidade do mistério; e conhecer também aquele amor de Cristo que excede todo o conhecimento, para que estejais repletos de toda a plenitude de Deus (Eph III, 17-19).
A plenitude de Deus é-nos revelada e conferida em Cristo, no amor de Cristo, no Coração de Cristo. Porque é o Coração dAquele em quem habita toda a plenitude da divindade corporalmente (Col II, 9). Por isso, se perdermos de vista este grande desígnio de Deus - a corrente de amor instaurada no mundo pela Encarnação, pela Redenção e pelo Pentecostes -, não poderemos compreender as delicadezas do Coração do Senhor.
A VERDADEIRA DEVOÇÃO AO CORAÇÃO DE CRISTO
164 Consideremos toda a riqueza que se encerra nestas palavras: Sagrado Coração de Jesus.
Quando falamos de um coração humano, não nos referimos apenas aos sentimentos; aludimos à pessoa toda - que quer, que ama, que convive com os outros. E, no modo de os homens se exprimirem, que a Sagrada Escritura acolheu para nos dar a entender as coisas divinas, o coração é considerado como o resumo e a fonte, a expressão e o fundo íntimo dos pensamentos, das palavras, das ações. Um homem vale o que valer o seu coração, poderíamos dizer com palavras da nossa linguagem.
Ao coração pertencem a alegria: Alegre-se meu coração com o teu auxílio (Ps XII, 6); o arrependimento: Meu coração é como cera que se derrete dentro do meu peito (Ps XXI, 15); o louvor a Deus: Do meu coração brota formoso canto (Ps XLIV, 2); a decisão necessária para ouvir o Senhor: Meu coração está disposto (Ps LVI, 8); a vigília amorosa: Eu durmo, mas meu coração vigia (Cant V, 2). E ainda a dúvida e o temor: Não se perturbe o vosso coração, crede em Mim (Ioh XIV, 1).
O coração não se limita a sentir; também sabe e entende. A lei de Deus é recebida no coração (Cfr. Ps XXXIX, 9) e nele permanece escrita (Cfr. Prv VII, 3). E a Escritura acrescenta: Da abundância do coração fala a boca (Mt XII, 34). O Senhor lançou em rosto a uns escribas esta censura: Por que pensais mal em vossos corações? (Mt IX, 4). E, para resumir todos os pecados que um homem pode cometer, disse: Do coração saem todos os maus pensamentos, os homicídios, os adultérios, as fornicações, os furtos, os falsos testemunhos, as blasfêmias (Mt XV, 19).
Quando na Sagrada Escritura se fala do coração, não se alude a um sentimento passageiro, que produz emoção ou lágrimas. Fala-se do coração para indicar a pessoa que, como o próprio Jesus Cristo nos manifestou, se orienta toda ela - alma e corpo -, para o que considera seu bem: porque onde está o teu tesouro, aí está o teu coração (Mt VI, 21).
Por isso, quando falamos do Coração de Jesus, pomos de manifesto a certeza do amor de Deus e a verdade da sua entrega por nós. Recomendar a devoção a esse sagrado Coração equivale a recomendar que nos orientemos integralmente - com tudo o que somos: alma, sentimentos, pensamentos, palavras e ações, trabalhos e alegrias - para Jesus todo.
Nisto se traduz a verdadeira devoção ao Coração de Jesus: em conhecer a Deus e nos conhecermos a nós mesmos, e em olhar para Jesus e recorrer a Jesus, que nos anima, nos ensina, nos guia. A única superficialidade que pode existir nesta devoção é a do homem que, não sendo integralmente humano, não consegue alcançar a realidade de um Deus feito carne.
165 Jesus na Cruz, com o coração trespassado de Amor pelos homens, é uma resposta eloqüente - as palavras são desnecessárias - à pergunta sobre o valor das coisas e das pessoas. Valem tanto os homens, a sua vida e a sua felicidade, que o próprio Filho de Deus se entrega pra os redimir, para os purificar, para os elevar. Quem não amará o seu Coração tão ferido? perguntava uma alma contemplativa, ao aperceber-se disso. E continuava perguntando: Quem não retribuirá o amor com amor? Quem não abraçará um Coração tão puro? Nós, que somos de carne, pagaremos amor com amor, abraçaremos o nosso Ferido, a quem os ímpios atravessaram as mãos e os pés, o lado e o Coração. Peçamos que se digne prender nosso coração com o vínculo do seu amor e feri-lo com uma lança, pois é ainda duro e impenitente (São Boaventura, Vitis mystica, 3, 11 (PL 184, 643)).
São pensamentos, afetos, colóquios que as almas enamoradas entretiveram com Jesus desde sempre. Mas, para entender essa linguagem, para saber de verdade o que é o coração, humano, e o Coração de Cristo, e o amor de Deus, é preciso ter fé e humildade. Foi com fé e humildade que Santo Agostinho nos deixou estas palavras universalmente famosas: Para Ti nos criaste, Senhor, e o nosso coração está inquieto enquanto em Ti não descansar (Santo Agostinho, Confessiones, I, 1, 1 (PL 32, 661)).
Quando descura a a humildade, o homem passa a querer apropriar-se de Deus, não daquela maneira divina que o próprio Cristo tornou possível quando disse: Tomai e comei: isto é o meu corpo (I Cor XI, 24), mas tentando reduzir a grandeza divina aos limites humanos. A razão, essa razão fria e cega - que não é a inteligência nascida da fé, nem sequer a inteligência reta da criatura capaz de saborear e amar as coisas -, converte-se na sem-razão de quem tudo submete às suas pobres experiências habituais, que amesquinham a verdade sobrenatural e recobrem o coração humano de uma crosta insensível às moções do Espírito Santo. Nossa pobre inteligência estaria perdida se não fosse o poder misericordioso de Deus, que rasga as fronteiras da nossa miséria: Dar-vos-ei um coração novo e revestir-vos-ei de um novo espírito; tirarei o vosso coração de pedra e dar-vos-ei em seu lugar um coração de carne (Ez XXXVI, 26). E a alma recupera a luz e enche-se de alegria ante as promessas da Escritura Santa.
Eu tenho pensamentos de paz e não de aflição (Ier XXIX, 11), declarou Deus por boca do profeta Jeremias. A liturgia aplica essas palavras a Jesus, porque nEle se manifesta claramente que é assim que Deus nos ama. Não vem condenar-nos, não vem lançar-nos em rosto a nossa indigência ou a nossa mesquinhez: vem salvar-nos, perdoar-nos, trazer-nos a paz e a alegria. Se reconhecermos esta maravilhosa relação do Senhor com seus filhos, nossos corações mudarão necessariamente, e veremos abrir-se diante dos nossos olhos um panorama absolutamente novo, cheio de relevo, de profundidade e de luz.
LEVAR AOS OUTROS O AMOR DE CRISTO
166 Mas vejamos bem: Deus não nos declara que, em lugar do coração, nos dará uma vontade de puro espírito. Não. Dá-nos um coração, e um coração de carne, como o de Cristo. Eu não disponho de um coração para amar a Deus, e de outro para amar as pessoas da terra. Com o mesmo coração com que amei os meus pais e estimo os meus amigos, com esse mesmo coração amo a Cristo, e o Pai, e o Espírito Santo, e Santa Maria. Não me cansarei de repeti-lo: temos que ser muito humanos; porque, de outro modo, também não poderemos ser divinos. O amor humano, o amor aqui em baixo na terra, quando é verdadeiro, ajuda-nos a saborear o amor divino. E assim entrevemos o amor com que chegaremos a gozar de Deus e aquele que nos há de unir uns aos outros, lá no céu, quando o Senhor for tudo em todas as coisas (I Cor XV, 28). E ao começarmos a entender o que é o amor divino, seremos impelidos a mostrar-nos habitualmente mais compassivos com os outros, mais generosos, mais delicados.
Temos que dar o que recebemos, ensinar o que aprendemos. Sem arrogância, com simplicidade, temos que fazer os outros participarem desse conhecimento do amor de Cristo. Ao realizar o seu trabalho, ao exercer a profissão na sociedade, cada um pode e deve converter as suas ocupações numa tarefa de serviço. O trabalho bem acabado - que progride e faz progredir, que tem em conta os avanços da cultura e da técnica - desempenha uma grande função, que será sempre útil à humanidade inteira, desde que tenha por motivo a generosidade, não o egoísmo; o bem de todos, não o proveito próprio: desde que esteja impregnado de sentido cristão da vida.
É no âmbito desse trabalho, na própria trama das relações humanas, que devemos manifestar a caridade de Cristo e seus resultados concretos de amizade, de compreensão, de afeto humano, de paz. Assim como Cristo passou fazendo o bem (Act X, 38) por todos os caminhos da Palestina, assim temos nós que desenvolver uma grande sementeira de paz pelos caminhos humanos da família, da sociedade civil, das relações profissionais, da cultura e do descanso. Será a melhor prova de que nos chegou ao coração o reino de Deus: Nós sabemos que fomos transferidos da morte para a vida - escreve o Apóstolo São João - porque amamos os nossos irmãos (I Ioh III, 14).
Mas ninguém pode viver esse amor se não se formar na escola do Coração de Jesus. Só se olharmos e contemplarmos o Coração de Cristo, é que conseguiremos que o nosso se livre do ódio e da indiferença; somente assim saberemos reagir cristãmente perante os sofrimentos alheios e perante a dor.
Recordemos a cena relatada por São Lucas, quando Cristo andava pelas proximidades da cidade de Naim (Lc VII, 11-17). Jesus vê a angústia daquelas pessoas com quem se cruzou ocasionalmente. Podia ter passado ao largo, ou esperar por um chamado, por um pedido. Mas nem se afasta nem espera. Toma Ele próprio a iniciativa, movido pela aflição de uma viúva que havia perdido tudo que lhe restava: o filho.
O evangelista explica que Jesus se compadeceu: talvez se tivesse emocionado externamente como por ocasião da morte de Lázaro. Jesus Cristo não era nem é insensível ao sofrimento que nasce do amor, nem se compraz em separar os filhos de seus pais: passa além da morte para dar a vida, para que estejam perto os que se amam, embora exija antes e ao mesmo tempo a proeminência do Amor divino, que deve informar a autêntica existência cristã.
Cristo tem consciência de estar rodeado de uma multidão que ficará atônita perante o milagre e irá apregoando o acontecido por toda a região. Mas o Senhor não se comporta artificialmente, não pretende realizar um grande gesto: sente-se simplesmente afetado pelo sofrimento daquela mulher e não pode deixar de consolar. Aproximou-se dela e disse-lhe: Não chores (Lc VII, 13). Foi como se lhe dissesse: não te quero ver em lágrimas, porque eu vim trazer a alegria e a paz à terra. A seguir, vem o milagre, manifestação do poder de Cristo-Deus. Mas antes tivera lugar a comoção de sua alma, manifestação evidente da ternura do coração de Cristo-Homem.
167 Se não aprendermos de Jesus, não amaremos nunca. Se pensarmos, como alguns, que conservar o coração limpo, digno de Deus, significa não misturá-lo, não contaminá-lo com afetos humanos, então o resultado lógico será tornarmo-nos insensíveis à dor dos outros. Só seremos capazes de uma caridade oficial, seca e sem alma; não da verdadeira caridade de Jesus Cristo, que é ternura, calor humano. Com isto não dou pé a falsas teorias, que são tristes desculpas para desviar os corações de Deus e levá-los a más ocasiões e à perdição.
Na festa de hoje, temos de pedir ao Senhor que nos conceda um coração bom, capaz de se compadecer das penas das criaturas, capaz de compreender que para remediar os tormentos que acompanham e não poucas vezes angustiam as almas neste mundo, o verdadeiro bálsamo é o amor, a caridade: todos os outros consolos apenas servem para distrair por um momento, e deixar mais tarde um saldo de amargura e desespero.
Se queremos ajudar os outros, temos que amá-los - insisto - com um amor que seja compreensão e entrega, afeto e voluntária humildade. Assim entenderemos porque o Senhor decidiu resumir toda a Lei nesse duplo mandamento que é na realidade um só: o amor a Deus e o amor ao próximo, com todo o coração (Cfr. Mt XXII, 40).
Talvez pensemos agora que, às vezes, nós cristãos - não os outros: tu e eu - nos esquecemos das aplicações mais elementares desse dever. Talvez pensemos em tantas injustiças que não se remedeiam, em abusos que não se corrigem, em situações de discriminação que se transmitem de geração em geração sem que se comece a pôr em prática uma solução de fundo.
Não posso nem me compete propor a forma concreta de resolver esses problemas. Mas, como sacerdote de Cristo, é meu dever recordar o que diz a Escritura Santa. Meditemos na cena do Juízo descrita pelo próprio Jesus: Afastai-vos de mim, malditos, e ide para o fogo eterno, que foi preparado para o diabo e seus anjos. Porque tive fome e não me destes de comer, tive sede e não me destes de beber; fui peregrino e não me recebestes; nu, e não me cobristes; enfermo e encarcerado, e não me visitastes (Mt XXV, 41-43).
Um homem e uma sociedade que não reajam perante as tribulações ou as injustiças, e não se esforcem por aliviá-las, não são nem homem nem sociedade à medida do amor do Coração de Cristo. Os cristãos - conservando sempre a mais ampla liberdade à hora de estudar e de aplicar as diversas soluções, e, portanto, com um lógico pluralismo - devem identificar-se no mesmo empenho em servir a humanidade. De outro modo, o seu cristianismo não será a Palavra e a Vida de Jesus: será um disfarce, um logro perante Deus e perante os homens.
A PAZ DE CRISTO
168 Mas não quero deixar de propor ainda uma outra consideração: temos que lutar sem esmorecimento por fazer o bem, precisamente por sabermos como é difícil que nós, os homens, nos decidamos seriamente a praticar a justiça - e ainda falta muito para que a convivência terrena se inspire no amor, e não no ódio ou na indiferença. Não ignoramos também que, embora se consiga atingir uma razoável distribuição dos bens e uma harmoniosa organização da sociedade, jamais desaparecerá a dor da doença, da incompreensão ou da solidão, da morte das pessoas que amamos, da experiência das nossas limitações.
Diante desses pesares, o cristão só tem uma resposta autêntica, uma resposta que é definitiva; Cristo na Cruz, Deus que sofre e que morre, Deus que nos entrega o seu coração, aberto por uma lança por amor a todos. Nosso Senhor abomina as injustiças e condena quem as comete. Mas respeita a liberdade de cada indivíduo e por isso permite que elas existam. Deus nosso Senhor não causa a dor das criaturas, mas tolera-a porque - depois do pecado original - ela faz parte da condição humana. Contudo, seu Coração cheio de Amor pelos homens levou-o a carregar, juntamente com a Cruz, todos esses tormentos: o nosso sofrimento, a nossa tristeza, a nossa angústia, a nossa fome e sede de justiça.
A doutrina cristã sobre a dor não é um programa de consolos fáceis. É, em primeiro lugar, uma doutrina de aceitação do sofrimento, que é de fato inseparável de toda a vida humana. Não posso ocultar - com alegria, porque sempre preguei e procurei viver que onde está a Cruz está Cristo, o Amor - que a dor tem aparecido freqüentemente em minha vida; e mais uma vez tive vontade de chorar. Em outras ocasiões, senti que crescia o meu desgosto perante a injustiça e o mal. E provei o dissabor de ver que não podia fazer nada, que, apesar dos meus desejos e dos meus esforços, não conseguia melhorar certas situações iníquas.
Quando falo de dor, não falo apenas de teorias. Nem me limito a registrar experiências alheias quando confirmo que, se alguma vez sentimos vacilar a alma perante a realidade do sofrimento, o remédio é olhar para Cristo. A cena do Calvário proclama a todos que as aflições devem ser santificadas, se vivemos unidos à Cruz.
Porque as nossas tribulações, cristãmente vividas, se convertem em reparação, em desagravo, em participação no destino e na vida de Jesus, que voluntariamente experimentou, por Amor aos homens, toda a gama de dor, todo o gênero de tormentos. Nasceu, viveu e morreu pobre; foi atacado, insultado, difamado, caluniado e condenado injustamente; conheceu a traição e o abandono dos discípulos; experimentou a solidão e as amarguras do suplício e da morte. Ainda hoje Cristo continua a sofrer nos seus membros, na humanidade inteira que povoa a terra, e da qual Ele é a Cabeça, o Primogênito e o Redentor.
A dor tem um lugar nos planos de Deus. Esta é a realidade, ainda que nos custe entendê-la. O próprio Jesus Cristo, como homem, teve dificuldade em suportá-la: Pai, se é possível, afasta de mim este cálice; não se faça, porém, a minha vontade, mas a tua (Lc XXII, 42). Nesta tensão entre o suplício e a aceitação da vontade do Pai, Jesus vai para a morte serenamente, perdoando aos que o crucificaram.
Mas precisamente essa aceitação sobrenatural da dor representa, ao mesmo tempo, a maior conquista. Morrendo na Cruz, Jesus venceu a morte: da morte, Deus tira a vida. A atitude de um filho de Deus não é a de quem se resigna à sua trágica desventura; é antes a satisfação de quem saboreia antecipadamente a vitória. Em nome desse amor vitorioso de Cristo, os cristãos devem lançar-se por todos os caminhos da terra, para serem semeadores de paz e de alegria, com a sua palavra e com as suas obras. Temos de lutar - é uma luta de paz - contra o mal, contra a injustiça, contra o pecado, para proclamar assim que a atual condição humana não é a definitiva, que o amor de Deus, manifestado no Coração de Cristo, alcançará o glorioso triunfo espiritual dos homens.
169 Evocávamos antes os acontecimentos de Naim. Poderíamos citar agora muitos outros, porque os Evangelhos estão cheios de cenas semelhantes. Esses relatos sempre comoveram e continuarão a comover os corações das criaturas; porque não encerram apenas o gesto sincero de um homem que se compadece dos seus semelhantes, mas são essencialmente a revelação da imensa caridade do Senhor. O Coração de Jesus é o Coração de Deus encarnado, do Emmanuel - Deus conosco.
A Igreja, unida a Cristo, nasce de um coração ferido (Hino das vésperas da Festa). É desse Coração, aberto de par em par, que nos é transmitida a vida. Embora de passagem, como não recordar aqui os Sacramentos, através dos quais Deus opera em nós e nos faz participar da força redentora de Cristo? Como não recordar com particular agradecimento o Santíssimo Sacramento da Eucaristia, o Santo Sacrifício do Calvário e a sua constante renovação incruenta na nossa Missa? Jesus entrega-se a nós em alimento; Jesus Cristo vem até nós. E por isso tudo mudou, e no nosso ser se manifestam forças - a ajuda do Espírito Santo - que se apossam da nossa alma, que informam as nossas ações, o nosso modo de pensar e de sentir. O Coração de Cristo é paz para o cristão.
O fundamento da entrega que o Senhor nos pede não se encontra apenas nos nossos desejos ou nas nossas forças, tantas vezes acanhados e impotentes; apóia-se primeiramente nas graças que nos alcançou o Amor do Coração de Deus feito Homem. Por isso podemos e devemos perseverar na nossa vida interior de filhos de Nosso Pai que está nos céus, sem ceder ao desânimo ou ao desalento. Gosto de mostrar como o cristão, na sua existência habitual e corrente, nos pormenores mais simples, nas circunstâncias normais da sua jornada de trabalho, põe em prática a fé, a esperança e a caridade, porque é nisso que reside a essência da conduta de uma alma que conta com o auxílio divino e que, no exercício dessas virtudes teologais, encontra a alegria, a força e a serenidade.
Estes são os frutos da paz de Cristo, da paz que nos traz o seu Coração Santíssimo. Porque - digamo-lo uma vez mais - o amor de Jesus pelos homens é um dos aspectos insondáveis do mistério divino, do amor do Filho pelo Pai e pelo Espírito Santo, laço de amor entre o Pai e o Filho, encontra no Verbo um Coração humano.
Não é possível falar destas realidades centrais da nossa fé sem percebermos as limitações da inteligência humana e as grandezas da Revelação. Mas, embora não possamos abarcar essas verdades, embora a nossa razão se pasme diante delas, nós as cremos humilde e firmemente: sabemos, apoiados no testemunho de Cristo, que são assim; que o amor, no seio da Trindade, se derrama sobre todos os homens por meio do Amor do Coração de Jesus.
170 Viver no Coração de Jesus, unir-se a Ele estreitamente é, portanto, converter-se em morada de Deus. Aquele que me ama será amado por meu Pai (Ioh XIV, 21), anunciou-nos o Senhor. E Cristo e o Pai, no Espírito Santo, vêm à alma e fazem nela a sua morada (Cfr. Ioh XIV, 23).
Quando compreendemos esses fundamentos - mesmo em parte -, a nossa maneira de ser transforma-se. Temos fome de Deus e fazemos nossas as palavras do salmo: Meu Deus, eu Te busco solícito; sedenta de Ti está minha alma; minha carne Te deseja como terra árida, sem água (Cfr. Ps LXII, 2 (recolhido nas Laudes da festa de hoje)). E Jesus, que fomentou as nossas ânsias, sai ao nosso encontro e diz-nos: Se alguém tem sede, venha a Mim e beba (Ioh VII, 37). Oferece-nos o seu Coração, para que encontremos nele o nosso descanso e a nossa fortaleza. Se aceitarmos o seu chamado, perceberemos como as suas palavras são verdadeiras, e aumentará a nossa fome e a nossa sede, até desejarmos que Deus estabeleça em nosso coração o lugar do seu repouso e não afaste de nós o seu calor e a sua luz.
Ignem veni mittere in terram, et quid volo nisi ut accendatur? Vim trazer fogo à terra, e que quero senão que arda? (Lc XII, 49 (recolhida na antiga antífona Ad magnificat das I Vésperas)) Agora que nos abeiramos um pouco do fogo do Amor de Deus, deixemos que seu impulso mova as nossas vidas, sonhemos com a possibilidade de levar o fogo divino de um extremo ao outro do mundo, de o dar a conhecer aos que nos rodeiam, para que também eles conheçam a paz de Cristo e, com ela, encontrem a felicidade. Um cristão que viva unido ao Coração de Jesus não pode ter outras metas: a paz na sociedade, a paz na Igreja, a paz na sua própria alma, a paz de Deus, que se consumará quando vier a nós o seu reino.
Maria, Regina Pacis, Rainha da Paz, porque tiveste fé e acreditaste que se cumpriria o anúncio do Anjo, ajuda-nos a crescer na fé, a ser firmes na esperança, a aprofundar no Amor. Porque isso é o que hoje quer de nós o teu Filho, ao mostrar-nos o seu Santíssimo Coração.
« A VIRGEM SANTA CAUSA DA NOSSA ALEGRIA »
(Homilia pronunciada em 15 de Agosto de 1961, festa da Assunção de Nossa Senhora)
171 Assumpta est Maria in coelum, gaudent angeli (Antífona das Vésperas da festa da Assunção). Maria foi levada por Deus aos céus, em corpo e alma. Há alegria entre os anjos e entre os homens. Por quê esse gozo íntimo que hoje experimentamos, com o coração parecendo querer saltar do peito, com a alma inundada de paz? Porque celebramos a glorificação da nossa Mãe e é natural que nós, seus filhos, sintamos um júbilo especial ao vermos como é honrada pela Trindade Beatíssima.
Cristo, seu santíssimo Filho, nosso irmão, no-la deu por Mãe no Calvário, quando disse a São João: Eis aí a tua Mãe (Ioh XIX, 27). E nós a recebemos, com o discípulo amado, naquele instante de imenso desconsolo. Santa Maria acolheu-nos na dor, quando se cumpria a antiga profecia: E uma espada trespassará a tua alma (Lc II, 35). Todos somos seus filhos; Ela é Mãe da humanidade inteira. E agora a humanidade comemora a sua inefável Assunção; Maria sobe aos céus, Filha de Deus Pai, Mãe de Deus Filho, esposa de Deus Espírito Santo. Mais do que Ela, só Deus.
MISTÉRIO DE AMOR
É um mistério de amor. A razão humana não consegue compreendê-lo. Só a fé pode esclarecer como é que uma criatura foi elevada a uma dignidade tão grande, até se converter no centro amoroso para o qual convergem as complacências da Trindade. Sabemos que é um segredo divino. Mas tratando-se da nossa Mãe, sentimo-nos capazes de entendê-lo mais do que outras verdades de fé, se é possível falar assim.
Como nos teríamos comportado se tivéssemos podido escolher a nossa mãe? Penso que teríamos escolhido a que temos, cumulando-a de todas as graças. Foi o que Cristo fez, pois, sendo Onipotente, Sapientíssimo e o próprio Amor (Deus caritas est (Deus é amor, I Ioh IV, 8)), seu poder realizou todo o seu querer.
Observemos como os cristãos descobriram há tanto tempo esse raciocínio: Convinha - escreve São João Damasceno - que aquela que no parto havia conservado íntegra a sua virgindade, conservasse sem nenhuma corrupção o seu corpo depois da morte. Convinha que aquela que tinha trazido em seu seio o Criador feito criança, habitasse na morada divina. Convinha que a esposa de Deus entrasse na casa celestial. Convinha que aquela que tinha visto seu Filho na Cruz, recebendo assim em seu coração a dor de que havia estado livre no parto, o contemplasse sentado à direita do Pai. Convinha que a Mãe de Deus possuísse o que pertence ao seu Filho, e que fosse honrada como Mãe e Escrava de Deus por todas as criaturas (São João Damasceno, Homilia II in dormitionem B. V. Mariae, 14 (PG 96, 742)).
Os teólogos têm formulado com frequência um argumento semelhante, destinado a captar de algum modo o sentido desse cúmulo de graças de que Maria se encontra revestida e que culmina com a sua Assunção aos céus. Dizem: Convinha; Deus podia fazê-lo; portanto, fê-lo (Cfr. João Duns Escoto, In III Sententiarum, dist. III, q. 1). É a explicação mais clara da razão pela qual o Senhor concedeu à sua Mãe todos os privilégios, desde o primeiro instante da sua conceição imaculada. Ficou livre do poder de Satanás; é formosa - tota pulchra! -, limpa, pura na alma e no corpo.
O MISTÉRIO DO SACRIFÍCIO SILENCIOSO
172 Mas prestemos atenção: se, por um lado, Deus quis exaltar sua Mãe, por outro, não há dúvida de que, durante a sua vida terrena, Maria não foi poupada nem à experiência da dor, nem ao cansaço do trabalho, nem ao claro-escuro da fé. Àquela mulher do povo que um dia prorrompeu em louvores a Jesus, exclamando: Bem-aventurado o ventre que te trouxe e os peitos que te amamentaram, o Senhor responde: Antes bem-aventurados os que escutam a palavra de Deus e a põem em prática (Lc XI, 27-28). Era o elogio de sua Mãe, do seu fiat (Lc I, 38), do faça-se sincero, rendido, posto em prática até as últimas conseqüências e que não se manifestou em ações aparatosas, mas no sacrifício escondido e silencioso de cada dia.
Ao meditarmos nestas verdades, compreendemos um pouco mais a lógica de Deus, percebemos que o valor sobrenatural da nossa vida não depende de que se tornem realidade as grandes façanhas que às vezes forjamos com a imaginação, mas da aceitação fiel da vontade divina, de uma disposição generosa em face dos pequenos sacrifícios diários.
Para sermos divinos, para nos endeusarmos, temos que começar por ser muito humanos, vivendo de frente para Deus a nossa condição de homens comuns, santificando esta aparente pequenez. Assim viveu Maria. A cheia de graça, aquela que é objeto das complacências de Deus, aquela que está acima dos anjos e dos santos, teve uma existência normal. Maria é uma criatura como nós, com um coração como o nosso, capaz de gozos e alegrias, de sofrimentos e lágrimas. Antes de Gabriel lhe ter comunicado o querer de Deus, Nossa Senhora ignorava que havia sido escolhida desde toda a eternidade para ser a Mãe do Messias. Considera-se cheia de baixeza (Cfr. Lc I, 48). Por isso reconhece logo, com profunda humildade, que nEla fez grandes coisas Aquele que é Todo-Poderoso (Lc I, 49).
A pureza, a humildade e a generosidade de Maria contrastam com a nossa miséria, com o nosso egoísmo. É natural que, depois de nos apercebermos disso, nos sintamos impelidos a imitá-la; somos criaturas de Deus, como Ela, e basta que nos esforcemos por ser fiéis para que também em nós o Senhor faça grandes coisas. Não será obstáculo a nossa pouca valia, porque Deus escolhe o que vale pouco para que assim brilhe melhor a potência do seu amor (Cfr. Cor I, 27-29).
IMITAR MARIA
173 Nossa Mãe é modelo de correspondência à graça, e, ao contemplarmos a sua vida, o Senhor nos dará luz para que saibamos divinizar a nossa existência de todos os dias. Ao longo do ano, quando celebramos as festas marianas, e em bastantes momentos de cada dia, nós, cristãos pensamos muitas vezes na Virgem. Se aproveitarmos estes instantes, imaginando como a nossa Mãe se comportaria nas tarefas que temos que realizar, iremos aprendendo pouco a pouco, e acabaremos por parecer-nos com Ela, como os filhos se parecem com sua Mãe.
Imitar, em primeiro lugar, o seu amor. A caridade não se limita aos sentimentos: deve estar presente nas palavras, mas sobretudo nas obras. A Virgem não se limitou a dizer fiat, mas cumpriu em todos os momentos essa decisão firme e irrevogável. Assim também nós: quando o amor de Deus nos aguilhoar e soubermos o que Ele quer, deveremos comprometer-nos a ser fiéis, leais, mas a sê-lo efetivamente. Por que nem todo que diz Senhor, Senhor, entrará o reino dos céus; mas o que faz a vontade do meu Pai celestial, esse entrará no reino dos céus (Mt VII, 21).
Temos que imitar a sua natural e sobrenatural elegância. Maria é uma criatura privilegiada na história da salvação: nEla o Verbo se fez carne e habitou entre nós (Ioh I, 14). Foi testemunha delicada, que passa despercebida; não foi amiga de receber louvores, porque não ambicionou a sua própria glória. Maria assiste aos mistérios da infância de seu Filho, mistérios, se assim se pode dizer, cheios de normalidade; mas à hora dos grandes milagres e das aclamações populares, desapareceu. Em Jerusalém, quando Cristo - montado sobre um jumentinho - é vitoriado como um Rei, Maria não se encontra presente. Mas reaparece junto da Cruz, quando todos fogem. Este modo de se comportar tem o sabor - não procurado - da grandeza, da profundidade, da santidade da sua alma.
Procuremos aprender também seu exemplo de obediência a Deus, nessa delicada combinação de escravidão e fidalguia. Em Maria não há nada que lembre a atitude das virgens néscias, que obedecem, mas estouvadamente. Nossa Senhora ouve com atenção o que Deus quer, pondera o que não entende, pergunta o que não sabe. Depois entrega-se por completo ao cumprimento da vontade divina: Eis aqui a escrava do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra (Lc I, 38). Vemos a maravilha? Santa Maria, mestre de toda a nossa conduta, ensina-nos agora que a obediência a Deus não é servilismo, não subjuga a consciência; pelo contrário, move-nos interiormente a descobrir a liberdade dos filhos de Deus (Cfr. Rom VIII, 21).
A ESCOLA DA ORAÇÃO
174 O Senhor ter-nos-á feito descobrir muitos outros traços da correspondência fiel da Santíssima Virgem, que de per si nos convidam a tomá-los como modelo: sua pureza, sua humanidade, sua firmeza de caráter, sua generosidade, sua fidelidade... Mas eu gostaria de falar de um aspecto que abrange todos os outros, porque é o clima do progresso espiritual: a vida de oração.
Para aproveitarmos a graça que nossa Mãe nos traz no dia de hoje, e para secundarmos em qualquer momento as inspirações do Espírito Santo, pastor de nossas almas, devemos estar comprometidos seriamente numa atividade de íntima relação com Deus. Não nos podemos esconder no anonimato: se não for um encontro pessoal com Deus, a vida interior não existe. A superficialidade não é cristã. Admitir a rotina na conduta ascética equivale a assinar o atestado de óbito da alma contemplativa. Deus nos procura um por um; e temos que responder-lhe um por um: Aqui estou, Senhor, porque me chamaste (I Reg III, 5).
Oração - todos o sabemos - é falar com Deus. Mas podemos perguntar-nos: falar de que? De que há de ser, senão das coisas de Deus e das que preenchem os nossos dias? Do nascimento de Jesus, do seu caminhar por este mundo, do seu ocultamento e da sua pregação, dos seus milagres, da sua Paixão Redentora, da sua Cruz e da sua Ressurreição. E na presença do Deus Uno e Trino, tendo por Medianeira Santa Maria e por advogado São José, Nosso Pai e Senhor - a quem tanto amo e venero -, falaremos do nosso trabalho de todos os dias, da família, das relações de amizade, dos grandes projetos e das pequenas mesquinharias.
O tema da minha oração é o tema da minha vida. Eu faço assim. E à vista desta situação em que me encontro, surge naturalmente o propósito, determinado e firme, de mudar, de melhorar, de ser mais dócil ao amor de Deus. Um propósito sincero, concreto. E não pode faltar o pedido urgente, mas confiado, de que o Espírito Santo não nos abandone, porque tu és, Senhor, a minha fortaleza (Ps XLII, 2).
Somos cristãos comuns, trabalhamos em campos muito diferentes; toda a nossa atividade corre pelos trilhos da normalidade; tudo se desenvolve a um ritmo previsível. Os dias parecem iguais, até monótono... Pois bem: esse programa, aparentemente tão comum, tem um valor divino: é algo que interessa a Deus, porque Cristo quer encarnar-se nos nossos afazeres, animando por dentro as ações mais humildes.
Este pensamento é uma realidade sobrenatural, límpida, inequívoca; não é uma consideração destinada a consolar, a confortar aqueles que, como nós, não conseguirão gravar seus nomes no livro de ouro da história. Cristo está interessado nesse trabalho que temos que realizar - uma e mil vezes - no escritório, na fábrica, na oficina, na escola, no campo, no exercício da profissão manual ou intelectual; como está interessado no sacrifício escondido que representa não derramarmos sobre os outros o fel do nosso mau humor.
Repassemos na oração estas considerações, sirvamo-nos delas precisamente para dizer a Jesus que o adoramos, e estaremos sendo contemplativos no meio do mundo, no meio do ruído da rua: em todos os lugares. Esta é a primeira lição, na escola da vida de relação com Jesus Cristo. Dessa escola, Maria é a melhor mestra, porque a Virgem manteve sempre essa atitude de fé, de visão sobrenatural, perante tudo o que acontecia à sua volta: Conservava todas essas coisas, ponderando-as em seu coração (Lc II, 51).
Supliquemos hoje a Santa Maria que nos torne contemplativos, que nos ensine a compreender as chamadas contínuas que o Senhor nos dirige, batendo à porta do nosso coração. Peçamos-lhe: Mãe nossa, tu, que trouxeste à terra Jesus, por quem nos é revelado o amor do nosso Pai-Deus, ajuda-nos a reconhecê-lo no meio das ocupações de cada dia; remove a nossa inteligência e a nossa vontade, para que saibamos escutar a voz de Deus, o impulso da graça.
MESTRA DE APÓSTOLOS
175 Mas não pensemos só em nós mesmos: temos que dilatar o coração até abarcar a humanidade inteira. Pensemos, antes de mais nada, nos que nos rodeiam - parentes, amigos, colegas - e vejamos como podemos levá-los a sentir mais profundamente a amizade com Nosso Senhor. Se se trata de pessoas retas e honradas, capazes de estar habitualmente mais perto de Deus, devemos encomendá-las concretamente a Nossa Senhora. E pedir também por tantas almas que não conhecemos, porque todos estamos navegando na mesma barca.
Sejamos leais, generosos. Fazemos parte de um só corpo, do Corpo Místico de Cristo, da Igreja Santa, a que estão chamados muitos que procuram nobremente a verdade. Por isso temos obrigação estrita de manifestar aos outros a qualidade, a profundidade do amor de Cristo. O Cristão não pode ser egoísta; se o fosse, atraiçoaria a sua própria vocação. Não é de Cristo a atitude dos que se limitam a guardar a sua alma em paz - falsa paz é essa -, despreocupando-se do bem dos outros. Se aceitamos o significado autêntico da vida humana - e ele nos foi revelado pela fé - não podemos continuar tranqüilos, persuadidos de que pessoalmente nos portamos bem, se não conseguimos de forma prática e concreta que os outros se aproximem de Deus.
Há um obstáculo real na tarefa de apostolado: o falso respeito, o temor de tocar temas espirituais, a suspeita de que uma conversa assim não será bem recebida em determinados ambientes, porque se podem ferir suscetibilidades. Quantas vezes esse raciocínio é a máscara do egoísmo! Não se trata de ferir ninguém; muito pelo contrário, trata-se de servir. Embora sejamos pessoalmente indignos. a graça de Deus converte-nos em instrumentos de utilidade para os outros, porque lhes comunicamos a boa nova de que Deus quer que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade (I Tim II, 4).
E será lícito intrometer-se desse modo na vida dos outros? É necessário. Cristo interveio na nossa vida sem nos pedir licença. Fez o mesmo com os primeiros discípulos: Passando pelo mar da Galiléia, viu Simão e seu irmão André, que lançavam as redes ao mar, pois eram pescadores. E disse-lhes Jesus: Segui-me e eu vos farei pescadores de homens (Mc I, 16-17). Cada um de nós conserva a liberdade, a falsa liberdade de responder não a Deus, como aquele jovem carregado de riquezas de que nos fala São Lucas (Cfr. Lc XVIII, 23). Mas o Senhor e nós - em obediência às suas palavras: ide e ensinai (Cfr. Mc XVI, 15) - temos o direito e o dever de falar de Deus, deste grande tema humano, porque o desejo de Deus é a coisa mais profunda que brota do coração do homem.
Santa Maria, Regina Apostolorum, rainha de todos os que suspiram por dar a conhecer o amor de teu Filho: tu, que entendes tão bem as nossas misérias, pede perdão por nossa vida; pelo que em nós podia ter sido fogo e foi um punhado de cinzas; pela luz que deixou de iluminar; pelo sal que se tornou insípido. Mãe de Deus, Onipotência Suplicante: traze-nos, junto com o perdão, a força para vivermos verdadeiramente de fé e de amor, para podermos levar aos outros a fé de Cristo.
UMA ÚNICA RECEITA: SANTIDADE PESSOAL
176 O melhor caminho para não perdermos nunca a audácia apostólica, a fome eficaz de servir a todos os homens, não é outro senão a plenitude da vida de fé, de esperança e de amor; numa palavra, a santidade. Não encontro outra receita além dessa: santidade pessoal.
Hoje, em união com a Igreja, celebramos o triunfo da Mãe, Filha e Esposa de Deus. E assim como nos sentíamos felizes no tempo da Pascoa da Ressurreição, três dias após a morte do Senhor, agora nos sentimos alegres porque Maria, depois de acompanhar Jesus de Belém até a Cruz, está junto dEle em corpo e alma, gozando da glória por toda a eternidade. Esta é a misteriosa economia divina: Nossa Senhora, que teve a graça de participar plenamente na obra da nossa salvação, tinha que seguir de perto os passos do seu Filho: a pobreza de Belém, a vida oculta de trabalho em Nazaré, a manifestação da divindade em Caná da Galiléia, as afrontas da Paixão e o Sacrifício divino da Cruz, a bem-aventurança eterna do Paraíso.
Tudo isso nos diz respeito diretamente, porque este itinerário sobrenatural deve ser também o nosso caminho. Maria mostra-nos que essa senda é acessível, que é segura. Ela nos precedeu no caminho da imitação de Cristo, e a glorificação da Nossa Mãe é a firme esperança da nossa própria salvação; por isso a chamamos spes nostra e causa nostrae laetitiae, nossa esperança e causa da nossa felicidade.
Não podemos perder nunca a esperança de chegar a ser santos, de aceitar os convites de Deus, de perseverar até o fim. Deus, que começou em nós a obra da santificação, levá-la-á a cabo (Cfr. Phil I, 6). Porque se o Senhor é por nós, quem será contra nós? Ele que não poupou o seu próprio Filho, mas o entregou à morte por todos nós, como deixará de nos dar com Ele qualquer outra coisa? (Rom VIII, 31-32)
Nesta festa, tudo convida à alegria. A firme esperança na nossa santificação pessoal é um dom de Deus; mas o homem não pode permanecer passivo. Recordemos as palavras de Cristo: Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz cada dia e siga- me (Lc IX, 23). Estamos vendo? A cruz, cada dia. Nulla dies sine cruce!, nenhum dia sem cruz: nenhum dia em que não carreguemos a cruz do Senhor, em que não aceitemos o seu jugo. Por isso não quis deixar de recordar aqui que a alegria da ressurreição é conseqüência da dor da cruz.
Mas nada havemos de temer, porque o próprio Senhor nos disse: Vinde a mim, vós que estais sobrecarregados com trabalhos, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração, e encontrareis repouso para vossas almas; porque o meu jugo é suave e o meu fardo leve (Mt XI, 28-30). Vinde - comenta São João Crisóstomo - não para prestar contas, mas para serdes libertados dos vossos pecados; vinde porque eu não tenho necessidade da glória que podeis proporcionar- me; tenho necessidade da vossa salvação... Não temais ao ouvir falar de jugo, porque é suave; não temais se falo de carga, porque é ligeira (São João Crisóstomo, In Matthaeum homiliae, 37,2 (PG 57, 414)).
O caminho da nossa santificação pessoal passa diariamente pela Cruz; e não é um caminho infeliz, porque o próprio Cristo vem em nossa ajuda, e com Ele não há lugar para a tristeza. In laetitia, nulla dies sine cruce!, gosto de repetir: com a alma trespassada de alegria, nenhum dia sem Cruz.
A ALEGRIA CRISTÃ
177 Voltemos ao tema que a Igreja nos propõe: Maria subiu aos céus em corpo e alma, os anjos se alvoroçam! Penso também no júbilo de São José, seu castíssimo esposo, que a esperava no Paraíso. Mas tornemos à terra. A fé nos confirma que aqui em baixo, na vida presente, estamos em tempo de peregrinação, de viagem; não faltarão os sacrifícios, a dor, as privações. Não obstante, a alegria há de ser sempre o contraponto do caminho.
Servi o Senhor com alegria (Ps XCIX, 2): não há outro modo de servi-lo. Deus ama a quem dá com alegria (II Cor IX, 7), a quem se dá por inteiro, num sacrifício prazeroso, porque não há motivo algum que justifique o desconsolo.
Talvez achemos excessivo este otimismo, porque todos os homens conhecem as suas insuficiências e os seus fracassos, experimentam o sofrimento, o cansaço, a ingratidão, talvez o ódio. Nós, os cristãos, se somos iguais aos outros, como podemos estar livres destas constantes da condição humana?
Seria ingênuo negar a reiterada presença da dor e do desânimo, da tristeza e da solidão, durante o nosso peregrinar por esta terra. Pela fé, aprendemos com segurança que tudo isso não é produto do acaso e que o destino da criatura não é a caminhar para a aniquilação dos seus desejos de felicidade. A fé nos ensina que tudo tem um sentido divino, porque se insere no âmago do chamado que nos leva à casa do Pai. A compreensão sobrenatural da existência terrena do cristão não simplifica a complexidade humana; mas assevera ao homem que essa complexidade pode estar atravessada pelo nervo do amor de Deus, pelo cabo, forte e indestrutível, que une a vida na terra à vida
definitiva na Pátria.
A festa da Assunção de Nossa Senhora propõe-nos a realidade desta feliz esperança. Somos ainda peregrinos, mas a nossa Mãe precedeu-nos e indica-nos já o termo do caminho: repete-nos que é possível lá chegar, e que lá chegaremos, se formos fiéis, pois a Santíssima Virgem não é apenas nosso exemplo: é auxílio dos cristãos. E ante a nossa súplica - Monstra te esse Matrem (Ave maris stella), mostra que és mãe -, não sabe nem quer negar-se a cuidar de seus filhos com solicitude maternal.
178 A alegria é um bem cristão. Só desaparece com a ofensa a Deus, porque o pecado é fruto do egoísmo e o egoísmo é causa de tristeza. Mesmo então, essa alegria permanece no rescaldo da alma, pois sabemos que Deus e sua Mãe nunca se esquecem dos homens. Se nos arrependemos, se brota do nosso coração um ato de dor, se nos purificamos no santo sacramento da penitência, Deus vem ao nosso encontro e perdoa-nos. E já não há tristeza: é muito justo regozijar-se, porque teu irmão tinha morrido e ressuscitou; estava perdido e foi encontrado (Lc XV, 32).
Estas palavras são o final maravilhoso da parábola do filho pródigo, que nunca nos cansaremos de meditar: Eis que o Pai vem ao teu encontro; inclinar-se-á sobre os teus ombros, dar-te-á um beijo, penhor de amor e de ternura; fará com que te entreguem um vestido, um anel, o calçado. Tu ainda temes uma repreensão, e ele te devolve a tua dignidade; temes um castigo, e te dá um beijo; tens medo de uma palavra irada e prepara um banquete para ti (Santo Ambrósio, Expositio Evangelii secundum Lucam, 7 (PL 15, 1540)).
O amor de Deus é insondável. Se procede assim com quem o ofendeu, o que não fará para honrar sua Mãe imaculada, Virgo Fidelis, Virgem Santíssima, sempre fiel?
Se o amor de Deus se mostra tão grande, quando a capacidade do coração humano - com frequência traidor - é tão pequena, como não se manifestará no Coração de Maria, que nunca opos o menor obstáculo à Vontade divina?
Observemos como a liturgia da festa se faz eco da impossibilidade de entender a misericórdia infinita do Senhor com raciocínios humanos: mais do que explicar, canta; fere a imaginação, para que cada um se entusiasme no seu louvor, pois todos ficaremos aquém da realidade: Apareceu no céu um grande prodígio: uma mulher, vestida de sol, e a lua debaixo dos pés, e em sua cabeça uma coroa de doze estrelas (Apoc XII, 1). O rei se enamorou da tua beleza. Como resplandece a filha do rei, em seus vestidos tecidos de ouro! (Ps XLIV, 12-14)
A liturgia termina com umas palavras de Maria em que a maior humildade se conjuga com a maior glória: Todas as gerações me chamarão bem-aventurada, porque fez em mim grandes coisas Aquele que é Todo-Poderoso (Lc I, 48-49).
Cor Mariae Dulcissimum, iter para tutum, Coração Dulcíssimo de Maria, dá força e segurança ao nosso caminho na terra: sê tu mesma o nosso caminho, porque tu conheces as vias e os atalhos certos que, por meio do teu amor, levam ao amor de Jesus Cristo.
« CRISTO-REI »
(Homilia pronunciada em 22 de Novembro de 1970, festa de Cristo-Rei)
179 Termina o ano litúrgico, e no Santo Sacrifício do Altar renovamos ao Pai o oferecimento da Vítima, Cristo, Rei de santidade e de graça, Rei de Justiça, de amor e de paz, como dentro de pouco teremos no Prefácio (... regnum sanctitatis et gratiae, regnum iustitiae, amoris et pacis (Prefácio da Santa Missa)). Todos sentimos na alma uma imensa alegria ao considerarmos a santa Humanidade de Nosso Senhor: um rei com coração de carne, como o nosso; que é o autor do universo e de cada uma das criaturas, e que não se impõe com atitudes de domínio, mas mendiga um pouco de amor, mostrando-nos em silêncio as suas mãos chagadas.
Como é possível, então, que tantos o ignorem? Por que se ouve ainda esse protesto cruel: Nolumus hunc regnare super nos (Lc XIX, 14), não queremos que Ele reine sobre nós? Há na terra milhões de homens que se defrontam assim com Jesus Cristo, ou melhor, com a sombra de Jesus Cristo, porque na realidade, o verdadeiro Cristo, não o conhecem, nem viram a beleza do seu rosto, nem perceberam a maravilha da sua doutrina.
Diante desse triste espetáculo, sinto-me inclinado a desagravar o Senhor. Ao escutar esse clamor que não cessa, e que se compõe não tanto de palavras como de obras pouco nobres, experimento a necessidade de gritar bem alto: Oportet illum regnare! (I Cor XV, 25), convém que Ele reine.
OPOSIÇÃO A CRISTO
Muitos não suportam que Cristo reine. opõe-se a Ele de mil formas; nas estruturas gerais do mundo e da convivência humana; nos costumes, na ciência, na arte. Até mesmo na própria vida da Igreja! Eu não falo - escreve Santo Agostinho - dos malvados que blasfemam contra Cristo. São raros, com efeito, os que blasfemam com a língua, mas são muitos os que blasfemam com a conduta (Santo Agostinho, In Ioannis Evangelium tractatus, 27, 11 (PL 35, 1621)).
Alguns incomodam-se até mesmo com a expressão Cristo-Rei: por uma superficial questão de palavras, como se o reinado de Cristo pudesse confundir-se com fórmulas políticas; ou porque a confissão da realeza do Senhor os levaria a admitir uma lei. E não toleram a lei, nem mesmo a do entranhável preceito da caridade, porque não querem aproximar-se do amor de Deus: são os que ambicionam servir apenas o seu próprio egoísmo.
O Senhor impeliu-me a repetir, desde há muito tempo, um grito silencioso: Serviam!, servirei. Que Ele nos aumente as ânsias de entrega, de fidelidade à sua chamada divina - com naturalidade, sem ostentação, sem ruído - no meio da rua. Agradeçamos-Lhe do fundo do coração. Elevemos uma oração de súditos, de filhos!, e a nossa língua e o nosso paladar experimentarão o gosto do leite e do mel, e nos saberá a favo cuidar das coisas de Deus, que é um reino de liberdade, da liberdade que Ele nos conquistou (Cfr. Gal IV, 31).
CRISTO, SENHOR DO MUNDO
180 Gostaria que considerássemos como esse Cristo - terna criança -, que vimos nascer em Belém, é o Senhor do mundo: pois por Ele foram criados todos os seres nos céus e na terra; Ele reconciliou todas as coisas com o Pai, restabelecendo a paz entre o céu e a terra, por meio do sangue que derramou na Cruz (Cfr. Col I, 11). Hoje Cristo reina à direita do Pai, como declararam os dois anjos de vestes brancas aos discípulos atônitos que contemplavam as nuvens, depois da Ascensão do Senhor: Homens da Galiléia, porque estais aí olhando para o céu? Esse Jesus que vos foi arrebatado ao céu, virá do mesmo modo como acabais de vê-lo subir ao céu (Act I, 11).
Por Ele reinam os reis (Prv VIII, 12), com a diferença que os reis, as autoridades humanas, passam; e o reino de Cristo permanecerá por toda a eternidade (Ex XV, 18), seu reino é um reino eterno e seu domínio perdura de geração em geração (Dan III, 100).
O reino de Cristo não é um modo de falar nem uma figura de retórica. Cristo vive também na sua condição de homem, com aquele mesmo corpo que assumiu na Encarnação, que ressuscitou depois da Cruz e que subsiste glorificado na Pessoa do Verbo, juntamente com sua alma humana. Cristo, Deus e homem verdadeiro, vive e reina, e é o Senhor do mundo. Só por Ele se conserva com vida tudo o que vive.
Mas, então, porque não se apresenta agora em toda a sua glória? Porque o seu reino não é deste mundo (Ioh XVIII, 36), embora esteja no mundo. Replicou Jesus a Pilatos: Eu sou rei. Para isso nasci: para dar testemunho da verdade. Todo aquele que pertence à verdade escuta a minha voz (Ioh XVIII, 37). Os que esperavam do Messias um poderio temporal, visível, enganavam-se, porque o reino de Deus não consiste no comer e no beber, mas na justiça, paz e gozo no Espírito Santo (Rom XIV, 17).
Verdade e justiça; paz e gozo no Espírito Santo. Esse é o reinado de Cristo: a ação divina que salva os homens e que culminará quando a História terminar e o Senhor, que se senta no mais alto do Paraíso, vier julgar definitivamente os homens.
Quando Cristo inicia a sua pregação na terra, não oferece um programa político, mas diz simplesmente: Fazei penitência, porque o Reino dos céus está próximo (Mat III, 2; IV, 17). Encarrega os discípulos de anunciarem essa boa nova (Cfr. Lc X, 9), e ensina a pedir na oração o advento do reino (Cfr. Mt VI, 10). Eis o reino de Deus e a sua justiça: uma vida santa; isso é o que temos que procurar em primeiro lugar (Cfr. Mt VI, 33), a única coisa verdadeiramente necessária (Cfr. Lc X, 42).
A salvação pregada por Nosso Senhor Jesus Cristo é um convite dirigido a todos: O reino dos céus é semelhante a um rei que celebrou as núpcias de seu filho, e enviou os criados a chamar os convidados para as bodas (Mt XXII, 2). Por isso, o Senhor revela que o reino dos céus está no meio de vós (Lc XVII, 21).
Ninguém é excluído da salvação, se livremente abre as portas às amorosas exigências de Cristo: nascer de novo (Cfr. Ioh III, 5), tornar-se semelhante às crianças, com simplicidade de espírito (Cfr. Mc X, 14; Mt VII, 21; V, 3), afastar o coração de tudo que afasta de Deus (Em verdade vos digo que dificilmente um rico entrará no reino dos céus (Mt XIX, 23)). Jesus quer fatos, não apenas palavras (Cfr. Mt VII, 21), e um esforço denodado, porque somente os que lutarem serão merecedores da herança eterna (O reino dos céus adquire-se à força, e os violentos arrebatam-no (Mt XI, 12)).
A perfeição do reino - o juízo definitivo de salvação ou de condenação - não se dará na terra. O reino agora é como uma semente (Cfr. Mt XIII, 24), como o grão de mostarda em crescimento (Cfr. Mt XIII, 31); seu fim será como a pesca com rede de arrastão, da qual - uma vez trazida para terra - serão retirados para diferentes destinos os que praticaram a justiça e os que cometeram a iniquidade (Cfr. Mt XIII, 47). Mas, enquanto aqui vivemos, o reino assemelha-se ao fermento que uma mulher tomou e misturou com três medidas de farinha, até que toda a massa ficou fermentada (Cfr. Mt XIII, 33).
Quem compreende o reino que Cristo propõe, percebe que vale a pena arriscar tudo para consegui-lo: é a pérola que o mercador adquire à vista de vender tudo o que possui, é o tesouro achado no campo (Cfr. Mt XIII, 44 e 45). O reino dos céus 'e uma conquista difícil, e ninguém tem a certeza de alcançá-lo (Cfr. Mt XXI, 43; VIII, 12); mas o clamor humilde do homem arrependido consegue que as suas portas se abram de par em par. Um dos ladrões que foram crucificados com Jesus suplica-lhe: Senhor, lembra-te de mim quando entrares no teu reino. E Jesus respondeu-lhe: em verdade te digo, hoje estarás comigo no paraíso (Lc XXIII, 42).
O REINO NA ALMA
181 Como és grande, Senhor nosso Deus! Tu és quem dá à nossa vida sentido sobrenatural e eficácia divina. Tu és a causa de que, por amor de teu Filho, possamos repetir com todas as forças do nosso ser, como a alma com o corpo: Convém que Ele reine!, enquanto ressoa a canção da nossa fraqueza, pois sabes que somos criaturas - e que criaturas! - feitas de barro, não apenas nos pés (Cfr. Dan II, 33), mas também no coração e na cabeça. De forma divina, vibraremos exclusivamente por Ti.
Cristo deve reinar, acima de tudo, na nossa alma. Mas que resposta lhe daríamos se nos perguntasse: como me deixas reinar em ti? Eu lhe responderia que, para que Ele reine em mim, necessito da sua graça abundantemente: só assim é que o último latejo do coração, o último alento, o olhar menos intenso, a palavra mais intranscendente, a sensação mais elementar se traduzirão num hosanna ao meu Cristo Rei.
Se pretendemos que Cristo reine, temos que ser coerentes, começando por entregar-lhe o nosso coração. Se não o fizermos, falar do reinado de Cristo será palavreado sem substância cristã, manifestação externa de uma fé inexistente, manejo fraudulento do nome de Deus para barganhas humanas.
Se a condição para que Jesus reine em minha alma, na tua alma, fosse contar previamente com um lugar perfeito dentro de nós, teríamos motivos para desesperar. Mas não temas, filha de Sião: Eis que o teu Rei vem montado sobre um jumentinho (Ioh XII, 15). Vemos? Jesus contenta-se com um pobre animal por trono. Não sei o que se passa convosco; quanto a mim, não me humilha reconhecer-me aos olhos do Senhor como um jumento: Sou como um burrinho diante de Ti; mas estarei sempre a teu lado, porque me tomaste pela tua mão direita (Ps LXXII, 23), Tu me conduzes pelo cabresto.
Pensemos nas características do jumento, agora que vão ficando tão poucos. Não do burro velho e teimoso, rancoroso, que se vinga com um coice traiçoeiro, mas no burrinho jovem, de orelhas esticadas como antenas, austero na comida, duro no trabalho, de trote decidido e alegre. Há centenas de animais mais belos, mais hábeis e mais cruéis. Mas Cristo escolheu esse para se apresentar como rei diante do povo que o aclamava. Porque Jesus não sabe o que fazer com a astúcia calculista, com a crueldade dos corações frios, com a formosura vistosa mas oca. Nosso Senhor ama a alegria de um coração jovem, o passo simples, a voz sem falsete, os olhos limpos, o ouvido atento à sua palavra de carinho. É assim que reina na alma.
REINAR SERVINDO
182 Se deixarmos que Cristo reine na nossa alma, não nos converteremos em dominadores; seremos servidores de todos os homens.
Serviço. Como gosto dessa palavra! Servir ao meu Rei e, por Ele, a todos os que foram redimidos pelo seu sangue. Se nós, cristãos, soubéssemos servir! Confiemos ao Senhor a nossa decisão de aprender a realizar essa tarefa de serviço, porque só servindo poderemos conhecer e amar Cristo, dá-lo a conhecer e conseguir que outros mais o amem.
Como havemos de mostrá-lo às almas? Com o exemplo: que sejamos suas testemunhas em todas as nossas atividades, mediante à nossa voluntária servidão a Jesus Cristo, porque Ele é o Senhor de todas as realidades de nossa vida, porque é a única e a última razão da nossa existência. Depois, quando tivermos prestado esse testemunho do exemplo, seremos capazes de instruir com a palavra, com a doutrina. Cristo agiu assim: Coepit facere et docere (Act I, 1), primeiro ensinou com obras, e depois com a sua pregação divina.
Servir os outros, por Cristo, exige que sejamos muito humanos. Se a nossa vida for desumana, Deus nada edificará sobre ela, pois normalmente não constrói sobre a desordem, sobre o egoísmo, sobre a prepotência. Temos que compreender a todos, temos que conviver com todos, temos que desculpar a todos, temos que perdoar a todos. Não diremos que o injusto é justo, que a ofensa a Deus não é ofensa a Deus, que o mau é bom. No entanto, perante o mal, não responderemos com outro mal, mas com a doutrina clara e com a ação boa: afogando o mal em abundância de bem (Cfr. Rom XII, 21). Assim Cristo reinará na nossa alma e nas almas dos que nos rodeiam.
Alguns tentam construir a paz no mundo sem semear amor de Deus em seus corações, sem servir por amor de Deus as criaturas. Assim, como será possível realizar uma missão de paz? A paz de Cristo é a paz do reino de Cristo; e o reino de Nosso Senhor deve cimentar-se no desejo de santidade, na disposição humilde de receber a graça, numa esforçada ação de justiça, num derramamento divino de amor.
CRISTO NO CUME DAS ATIVIDADES HUMANAS
183 Não é um sonho irrealizável ou inútil. Se nós, os homens, nos decidíssemos a albergar o amor de Deus em nossos corações! Cristo, Nosso Senhor, foi crucificado e, do alto da Cruz, redimiu o mundo, restabelecendo a paz entre Deus e os homens. Jesus Cristo recorda a todos: Et ego, si exaltatus fuero a terra, omnia traham ad meipsum (Ioh XII, 32), se vós me colocardes no cume de todas as atividades da terra, cumprindo o dever de cada instante, dando testemunho de mim no que parece grande e no que parece pequeno, omnia traham ad meipsum, tudo atrairei a mim. Meu reino entre vós será uma realidade.
Cristo, Nosso Senhor, continua empenhado nesta semeadura de salvação dos homens e de toda a criação, deste nosso mundo, que é bom porque saiu bom das mãos de Deus. Foi a ofensa de Adão, o pecado da soberba humana, que rompeu a divina harmonia da Criação.
Mas Deus Pai, quando chegou a plenitude dos tempos, enviou seu Filho Unigênito, que, por obra do Espírito Santo, tomou carne em Maria sempre Virgem para restabelecer a paz, para que, redimindo o homem do pecado, adoptionem filiorum reciperemus (Gal IV, 5), fôssemos constituídos filhos de Deus, capazes de participar da intimidade divina; para que assim fosse concedido a este homem novo, a esta nova estirpe dos filhos de Deus (Cfr. Rom VI, 4-5), o poder de libertar todo o universo da desordem, restaurando em Cristo todas as coisas (Cfr. Eph I, 9-10), que por Ele foram reconciliadas com Deus (Cfr. Col I, 20).
Foi para isso que nós, os cristãos, fomos chamados, essa é a nossa tarefa apostólica e a preocupação que deve consumir a nossa alma: conseguir que o reino de Cristo se torne realidade, que não haja mais ódios nem crueldades, que estendamos pela terra o bálsamo forte e pacífico do amor. Peçamos hoje ao nosso Rei que nos faça colaborar humilde e fervorosamente com o propósito divino de unir o que se quebrou, de salvar o que está perdido, de ordenar o que o homem desordenou, de levar a seu termo o que se extraviou, de reconstruir a concórdia entre todas as coisas criadas.
Abraçar a fé cristã é comprometer-se a continuar entre as criaturas a missão de Jesus. Cada um de nós tem que ser alter Christus, ipse Christus, outro Cristo, o próprio Cristo. Só assim podemos empreender essa tarefa grande, imensa. interminável: santificar por dentro todas as estruturas temporais, levando até elas o fermento da Redenção.
Nunca falo de política. Não encaro a tarefa dos cristãos na terra como se tivesse por fim fazer brotar uma corrente político-religiosa - seria uma loucura -, nem mesmo com o bom propósito de infundir o espírito de Cristo em todas as atividades dos homens. O que é preciso situar em Deus é o coração de cada um, seja ele quem for. Procuremos falar a cada cristão, para que lá onde estiver - nas circunstâncias que não dependem apenas da sua posição na Igreja ou na vida civil, mas também do resultado das mutáveis situações históricas -, saiba dar testemunho da fé que professa, com o exemplo e com a palavra.
Por ser homem, o cristão vive no mundo com pleno direito. Se aceitar que Jesus Cristo habite em seu coração, que Cristo reine, a eficácia salvadora do Senhor estará intensamente presente em todas as suas ocupações humanas. E não interessa que sejam ocupações altas ou baixas, como se costuma dizer, pois um ápice humano pode ser aos olhos de Deus uma baixeza; e o que chamamos baixo ou modesto pode ser um ápice cristão, de santidade ou de serviço.
A LIBERDADE PESSOAL
184 Quando trabalha, como é de sua obrigação, o cristão não deve iludir nem esquivar-se às exigências próprias da natureza das coisas. Se pela expressão abençoar as atividades humanas, se entendesse anular ou escamotear a sua dinâmica própria, negar-me-ia a usar essas palavras. Pessoalmente, nunca me convenci de que as ocupações habituais dos homens devessem ostentar um qualificativo confessional, à moda de um letreiro postiço. Embora respeite a opinião contrária parece-me que se correria o perigo de usar em vão o santo nome de nossa fé, e de utilizar, além disso, a etiqueta católica - como já se tem visto em certas ocasiões - para justificar atitudes e operações que, às vezes, nem sequer são honradamente humanas.
Se, à exceção do pecado, o mundo e tudo o que nele se contém é bom, por ser obra de Deus Nosso Senhor, o cristão, lutando continuamente por evitar as ofensas a Deus - uma luta positiva de amor -, deve dedicar-se a todas as realidades terrenas, ombro a ombro com os outros cidadãos; e defender todos os bens derivados da dignidade da pessoa.
E existe um bem que, de forma especial, deverá promover sempre: o da liberdade pessoal. Só se defender a liberdade individual dos outros, com a correspondente responsabilidade pessoal, poderá defender igualmente a sua própria, com honradez humana e cristã. Repito e repetirei sem cessar que o Senhor nos concedeu gratuitamente um grande dom sobrenatural, que é a graça divina; e outra maravilhosa dádiva humana, a liberdade pessoal, que - para não se corromper, convertendo-se em libertinagem - exige de nós integridade, empenho eficaz em desenvolver a conduta dentro da lei divina, pois onde se encontra o Espírito de Deus, lá se encontra a liberdade (II Cor III, 17).
O Reino de Cristo é reino de liberdade: não existem nele outros servos além dos que livremente se deixam aprisionar, por amor a Deus. Bendita escravidão de amor, que nos torna livres! Sem liberdade, não podemos corresponder à graça; sem liberdade, não nos podemos entregar livremente ao Senhor, pelo motivo mais sobrenatural de todos: porque nos apetece.
Alguns dos que me escutam já me conhecem há muitos anos. Podem testemunhar que tenho passado toda a minha vida pregando a liberdade pessoal, com igual responsabilidade pessoal. Procurei-a e procuro-a por toda a terra, como Diógenes procurava um homem. E cada dia que passa amo-a mais, amo-a sobre todas as coisas da terra: é um tesouro que nunca saberemos apreciar suficientemente.
Quando falo de liberdade pessoal, não me valho disso como desculpa para abordar outros problemas, talvez muito legítimos, mas que não dizem respeito ao meu ofício de sacerdote. Sei que não me compete tratar de temas seculares e transitórios, que pertencem à esfera temporal e civil, e são matérias que o Senhor deixou à livre e serena controvérsia dos homens. Sei também que os lábios do sacerdote, evitando por completo parcialidades humanas, somente devem abrir-se para conduzir as almas a Deus, à sua doutrina espiritual salvadora, aos sacramentos que Jesus Cristo instituiu, à vida interior que nos aproxima do Senhor, dando-nos a consciência de sermos seus filhos e, portanto, irmãos de todos os homens sem exceção.
Celebramos hoje a festa de Cristo-Rei. E não me afasto do meu ofício de sacerdote quando digo que, se alguém entendesse o reino de Cristo em termos de programa político, não teria aprofundado no fim sobrenatural da fé e estaria a um passo de oprimir as consciências com cargas que não são de Jesus, pois seu jugo é suave e sua carga leve (Mt XI, 30). Amemos de verdade todos os homens; acima de tudo, amemos Cristo; e, então, não teremos outro remédio senão amar a legítima liberdade dos demais homens, numa convivência pacífica e santa.
SERENOS, FILHOS DE DEUS
185 Talvez me digam que são poucos os que querem ouvir estas coisas e, menos ainda, os que desejam pô-las em prática. Consta-me que a liberdade é uma planta forte e sã, que se aclimata mal entre as pedras e os espinhos, ou nos caminhos calcados pelos homens (Cfr. Lc VIII, 5-7). Já o sabíamos antes de Cristo ter vindo à terra.
Lembremo-nos do Salmo II: Por que se amotinaram as nações, e os povos traçaram planos vãos? Sublevaram-se os reis da terra e os príncipes coligaram-se contra o Senhor e contra o seu Cristo (Ps II, 3). Como vemos, nada de novo. Opunham-se a Cristo antes de Ele ter nascido; a Ele se opuseram enquanto seus pés pacíficos percorriam os caminhos da Palestina; perseguiram-no depois e agora, atacando os membros do seu Corpo místico e real. Por quê tanto ódio, por quê este encarniçar-se contra a cândida simplicidade, por quê este universal esmagamento da liberdade de cada consciência?
Quebremos as suas cadeias e sacudamos de nós o seu jugo (Ps II, 3). Quebram o jugo suave, sacodem das costas a sua carga, maravilhosa carga de santidade e justiça, de graça, de amor e paz. Enfurecem-se diante do amor, riem-se da bondade inerme de um Deus que renuncia ao uso das suas legiões de anjos para se defender (Cfr. Ioh XVIII, 36). Se o Senhor permitisse a barganha, se sacrificasse um punhado de inocentes para satisfazer uma maioria de culpados, ainda poderiam tentar um entendimento com Ele. Mas não é essas a lógica de Deus. Nosso Pai é verdadeiramente pai, e está disposto a perdoar milhares de fautores do mal, se houver somente dez justos (Cfr. Gen XVIII, 32). As pessoas dominadas pelo ódio não podem entender esta misericórdia, e afincam-se na sua aparente impunidade terrena, alimentando-se da injustiça.
Aquele que habita nos céus, ri-se, e o Senhor zomba deles. Ele lhes fala então na sua ira, e no seu furor os aterroriza (Ps II, 4-5). Como é legítima a ira de Deus, como é justo o seu furor, e como é grande também a sua clemência!
Eu, porém, fui constituído por Ele Rei sobre Sião, seu monte santo, para promulgar a sua Lei. Disse-me o Senhor: Tu és meu filho, eu te gerei hoje (Ps II, 6-7). A misericórdia de Deus- Pai deu-nos por Rei o seu Filho. Quando ameaça, ao mesmo tempo se enternece: anuncia-nos a sua ira e entrega-nos o seu amor. Tu és meu filho: dirige-se a Cristo e dirige-se a ti e a mim, se estamos decididos a ser alter Christus, ipse Christus, outro Cristo, o próprio Cristo.
As palavras não conseguem acompanhar o coração, que se emociona perante a bondade de Deus. Diz-nos: Tu és meu filho. Não um estranho, não um servo benevolamente tratado, não um amigo, que já seria muito. Filho! Concede-nos livre trânsito para vivermos com Ele a piedade de filhos e também - atrevo-me a afirmar - a desvergonha de filhos de um Pai que é incapaz de lhes negar seja o que for.
186 Há muita gente empenhada em comportar-se injustamente? Sim, mas o Senhor insiste: Pede-me, e eu te darei as nações por herança, e em teu domínio as extremidades da terra. Tu as governarás com vara de ferro, e qual vaso de oleiro as quebrarás (Ps II, 8-9). São promessas fortes, e são de Deus: não podemos disfarçá-las. Não em vão Cristo é o Redentor do mundo; Ele reina, soberano, à direita do Pai. É o terrível anúncio do que nos espera a cada um - quando a vida passar, porque passa - e a todos - quando a História acabar -, se o coração se endurecer no mal e na falta de esperança.
No entanto, Deus, que pode vencer sempre, prefere convencer. E agora, ó reis, atendei: instruí-vos, vós que governais a terra. Servi o Senhor com temor, e louvai-o com tremor. Abraçai a boa doutrina, não seja que no fim o Senhor se aborreça e pereçais fora do bom caminho, quando daqui a pouco se inflamar a sua ira (Ps II, 10-13). Cristo é o Senhor e o Rei. Nós vos anunciamos que Deus cumpriu a promessa feita a nossos pais; cumpriu-a diante de nossos filhos ressuscitando Jesus, como também está escrito no salmo segundo: Tu és meu Filho, eu te gerei hoje...
Agora, pois, meus irmãos, sabei que por Ele vos é anunciada a remissão dos pecados e de todas as manchas de que não pudestes ser justificados pela lei de Moisés: por Ele é justificado todo aquele que crê. Tomai, pois, cuidado, para que não recaia sobre vós o que foi dito pelos profetas: Vede, ó desprezadores, admirai-vos e desaparecei que eu faço uma obra nos vossos dias, uma obra em que não acabareis
de acreditar, por mais que vo-la contem (Act XII, 32-33; 38-41).
É a obra da salvação, o reinado de Cristo nas almas, a manifestação da misericórdia de Deus. Bem-aventurados todos os que a Ele se acolhem! (Ps II, 13). Nós, os cristãos, temos o direito de enaltecer a realeza de Cristo, porque - embora a injustiça seja abundante, embora muitos não desejem este reinado de amor - na própria história da humanidade, que é o cenário do mal, se vai tecendo a obra da salvação eterna.
ANJOS DE DEUS
187 Ego cogito cogitationes pacis et non afflictionis (Ier XXIX, 11). Eu penso pensamentos de paz, e não de tristeza, diz o Senhor. Sejamos homens de paz homens de justiça, praticantes do bem, e o Senhor não será para nós juiz, mas amigo, irmão, Amor.
Que os anjos de Deus nos acompanhem neste caminhar - alegre! - pela terra. Antes do nascimento do nosso Redentor, escreve São Gregório Magno, nós tínhamos perdido a amizade dos anjos. A culpa original e os nossos pecados cotidianos tinham-nos afastado da sua pureza... Mas desde o momento em que nós reconhecemos o nosso Rei, os anjos nos reconheceram como seus concidadãos.
E como o Rei dos céus quis assumir a nossa carne terrena, os anjos já não se afastam da nossa miséria. Não se atrevem a considerar inferior à sua esta natureza que eles adoram, vendo-a exaltada, acima deles, na Pessoa do Rei do céu; e já não tem inconveniente em considerar o homem como seu companheiro (São Gregório Magno, In Evangelia homiliae, 8, 2 (PL 76, 1104)).
Maria, a Mãe santa do nosso Rei, a Rainha do nosso coração, cuida de nós como só Ela o sabe fazer. Mãe compassiva, trono da graça: nós te pedimos que saibamos compor na nossa vida e na vida dos que nos rodeiam, verso a verso, o poema singelo da caridade, quasi flumen pacis (Is XLVIII, 18), como um rio de paz. Pois tu és um mar de inesgotável misericórdia: Os rios vão dar todos ao mar, e o mar não transborda (Eccli I, 7).